Comissão especial quer melhorar legislação de incêndios

André Falcão | 26/03/2013, 21h43

A repercussão do incêndio na boate Kiss, ocorrido na madrugada de 27 de janeiro em Santa Maria (RS), foi imediata no Senado. Após as muitas manifestações de pesar e de solidariedade às vítimas e aos familiares, os senadores pelo Rio Grande do Sul — Ana Amélia (PP), Paulo Paim (PT) e Pedro Simon (PMDB) — apresentaram requerimento, aprovado pelo Plenário, para criar uma comissão temporária com a missão de fazer um levantamento da legislação sobre prevenção e combate de incêndios no Brasil e elaborar uma proposta nacional de normas técnicas para melhores práticas de segurança em locais de diversão pública. Além disso, foram apresentados cinco projetos de lei unificando normas de segurança essenciais ao funcionamento de boates, casas de show e similares.

As apurações iniciais indicaram uma sucessão de motivos que se encadearam e potencializaram o resultado da tragédia em que 241 pessoas morreram. Parte dos motivos está ligada ao descumprimento de normas de prevenção de incêndios e de evacuação segura de pessoas em emergências. Outra parte está ligada à ação insuficiente ou à omissão de agentes públicos responsáveis pela fiscalização e autorização de funcionamento de casas noturnas. Havia leis do próprio município de Santa Maria cujo cumprimento teria evitado a tragédia.

A comissão temporária para levantamento da legislação de prevenção e combate a incêndio fará a primeira reunião hoje, às 15h. No requerimento de criação, os senadores alertam que o conjunto de leis hoje existente é numeroso, sem clareza e difícil de aplicar. Foi estabelecido o objetivo de, em 60 dias, fazer uma revisão que dê coerência e uniformidade às regras e estabeleça ­responsabilidades.

—Há muitas leis específicas e soltas, e a maioria das pessoas não conhece seus direitos e deveres com a segurança — argumenta Paim, um dos integrantes da comissão.

Paim adiantou que pretende propor um “pequeno código” relativo ao assunto. Ana Amélia, também integrante da comissão, acredita que, além de tornar mais claras as leis existentes, é preciso investir em medidas práticas e aplicáveis que podem surtir grande efeito. Ela relatou encontro com ­Patrick Lynch, ex-procurador-geral do estado de Rhode Island (EUA), responsável pelo inquérito que apurou um incêndio em condições semelhantes em fevereiro de 2003, na cidade de West Warwick, que resultou em cem mortes.

O ex-procurador deu como exemplo o uso de sinais indicadores de saída no chão, que facilita às pessoas seguirem a orientação de abaixar ou rastejar para evitar a fumaça quando há incêndios em ambientes fechados. Além disso, instruções de como sair em segurança em situações de emergência são prestadas antes de peças de teatro, à semelhança do que ocorre em aeronaves antes da ­decolagem.

— A vistoria de quem concede alvarás não dá noção da realidade do uso do ambiente. À noite, confusas pela bebida e pela pouca luz, as pessoas não enxergam a saída — disse Ana Amélia, defendendo a adoção de medidas semelhantes no Brasil.

Outro tema trazido pelo incêndio da boate é o da confiança na fiscalização realizada pelo poder público.

— A grande questão é a falta de fiscalização. Mesmo os fiscais do trabalho não fazem fiscalização das condições de trabalho nas casas de show e boates. Há uma grande defasagem no número e seriam necessários três vezes mais fiscais — afirmou o senador.

Paim defende que os municípios sejam os responsáveis pela aferição da segurança nos locais de aglomeração e que haja aumento na responsabilidade dos bombeiros. Ele quer também que a lei seja mais dura com os empresários, para que não façam de casas noturnas “verdadeiras armas mortais”.

Os senadores também vão discutir na comissão o sistema de cobrança por comandas, com pagamento na saída. Esse tipo de cobrança foi apontado como uma das causas na demora ao socorro no incêndio em Santa Maria, pois a segurança da boate não queria, de início, permitir que os frequentadores saíssem sem pagar.

A experiência com casos semelhantes em outros países, no entanto, mostra que mesmo uma fiscalização rígida pode não coibir situações de risco que ocorram de forma clandestina. Para Ana Amélia e Paim, falta a cultura de segurança no Brasil.

—Não há cultura da segurança em lugar nenhum. Temos no país um elevado número de vítimas de acidentes de trânsito e do trabalho. As pessoas pensam que não vai acontecer até que acontece — pondera o senador.

Ana Amélia acredita que uma cultura de prevenção é um dever de cidadania e “deveria ser ensinada nas escolas”.

Os senadores também acreditam que tragédias como a de Santa Maria são uma oportunidade para o Brasil corrigir deficiências que se tornam evidentes após as investigações. Paim disse que a comissão temporária vai fazer de tudo para que as mortes sofridas naquele município gaúcho não sejam esquecidas e tornem-se instrumentos para salvar vidas em todo o país. Ana Amélia afirmou que a melhor homenagem à memória da vítimas é concluir os trabalhos de reformulação das leis no prazo delimitado.

Integram a comissão temporária de prevenção e combate a incêndios, além de Ana Amélia e Paim, os senadores Simon, Jorge Viana (PT-AC), Cyro Miranda (PSDB-GO) e Gim (PTB-DF) como titulares, e Romero Jucá (PMDB-RR), Sérgio Souza (PMDB-PR), Inácio Arruda (PCdoB-CE), Eduardo Suplicy (PT-SP) e Eduardo Amorim (PSC-SE) como suplentes.

A primeira reunião da comissão temporária, hoje, vai eleger o presidente e o vice-presidente do colegiado, além de indicar o relator. Será na Sala 15 da Ala Alexandre Costa, no  Anexo 2 do Senado Federal.

Inalação de fumaça tóxica causou todas as mortes

Na noite do incêndio, estava sendo promovida uma festa organizada por estudantes de diversos cursos da Universidade Federal de Santa Maria. Por volta das 3h da madrugada, um dos integrantes do grupo musical que se apresentava acendeu um artefato pirotécnico e as faíscas acabaram por atingir o revestimento acústico da boate. A espuma do revestimento era altamente inflamável e o fogo se alastrou com rapidez. Os músicos tentaram apagar as chamas, mas o extintor de incêndio próximo ao palco não funcionou.

O ambiente foi rapidamente tomado pela fumaça e a falta de alarme de incêndio e de sinalização para a saída agravou a ­situação. Confusas, muitas vítimas se dirigiram aos banheiros da boate e lá ficaram presas. Não havia capacidade de exaustão do ar e as janelas estavam obstruídas. A boate tinha apenas uma porta para entrada e saída e o tamanho era inadequado para a vazão, em casos de emergência, da quantidade de pessoas definida como capacidade máxima.

Além disso, grades de contenção utilizadas para organizar a fila atrapalharam a fuga de quem conseguiu se dirigir até a saída. Houve relato de que, no início do incêndio, seguranças chegaram a reter os que saíam para exigir o pagamento das despesas.

Os estragos causados pelo fogo foram considerados de pequena monta pelos bombeiros. Todas as mortes foram causadas por asfixia. A combustão do poliuretano das espumas do revestimento acústico incendiado liberou gás carbônico e cianeto, que são letais ao serem inalados.

Além de todos esses fatores, a boate Kiss estava com a documentação irregular e houve superlotação no dia do incêndio. A estimativa da polícia civil é de que havia pelo menos 864 pessoas. O alvará de prevenção e proteção contra incêndio do corpo de bombeiros havia determinado a capacidade máxima de 691 pessoas. Estima-se que mais de mil circularam pela boate naquela noite.

O incêndio na boate Kiss é o segundo maior em número de vítimas fatais no Brasil, sendo superado apenas pela tragédia do Gran Circus Norte-Americano, ocorrida em 1961, em Niterói (RJ), que vitimou 503 pessoas. Em casos semelhantes de incêndios em casas noturnas causados por fogos de artifício, é o terceiro maior do mundo, atrás apenas dos incêndios no ­Cocoanut Grove, em Boston, nos Estados Unidos, em 1942, quando morreram 492 pessoas, e em um clube em Luoyang, China, que matou 309 no Natal de 2000.

Projetos sistematizam exigências de segurança para funcionamento de boates


Cinco projetos sobre segurança em boates, casas de show e similares foram apresentados no Senado após o incêndio em Santa Maria. Todos condicionam a concessão de alvará de funcionamento ao atendimento de requisitos como a disposição de extintores de incêndio em quantidade suficiente e em localização adequada e de saídas de emergência sinalizadas e iluminadas.

Os estabelecimentos deverão ficar em locais que facilitem o acesso de viaturas dos bombeiros, ter brigadistas e instalar equipamentos como chuveiros automáticos e exaustores de fumaça, para-raios, dispositivos de alarme sonoro e iluminação de emergência. Fica proibido o uso, na construção, revestimento ou isolamento, de produtos que causem fumaça tóxica.

Boates, casas de show e similares também poderão ser proibidas de usar, em recintos fechados, fogos de artifício, sinalizadores e materiais pirotécnicos. A lotação será determinada pela autoridade local no momento da concessão do alvará e órgãos de fiscalização ficarão obrigados a vistoriar equipamentos contra incêndio e sinalização de emergência uma vez a cada 12 meses.

O PLS 26/2013, de Jorge Viana (PT-AC), obriga a contratação de no mínimo duas pessoas treinadas pelo corpo de bombeiros para manusear os equipamentos contra incêndio e promover a evacuação ordenada.

Os outros quatro projetos — PLS 35/2013, de Gim  (PTB-DF); PLS 36/2013, de Eduardo Amorim (PSC-SE); PLS 37/2013, de Romero Jucá (PMDB-RR); e PLS 53/2013, de Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) — instituem a exigência para casas com capacidade acima de 250 pessoas.

Os prazos para adequação à norma variam de 6 meses (projetos de Gim, Amorim, Jucá e Vanessa) a 18 meses (proposta de Viana). A partir daí, o eventual descumprimento sujeita os estabelecimentos à cassação do alvará e a multa administrativa. Em comum, todas as propostas proíbem a concessão pelo Judiciário de liminar para funcionamento ou obtenção de alvará.

Os cinco projetos ­estão tramitando de forma conjunta na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ).

Ana Amélia convidou o Instituto Sprinkler Brasil para uma audiência em que será apresentado chuveiro automático para ambientes fechados que inibe a propagação do fogo. A reunião vai debater projeto de lei (PLS 491/2011) do senador licenciado Marcelo Crivella (PRB-RJ) que trata de regras para inspeção predial.

Familiares criaram grupo de apoio psicológico

A tragédia na boate Kiss mudou a rotina na cidade de Santa Maria. A maioria das vítimas era de jovens universitários, e os familiares criaram uma associação em busca de apoio psicológico e jurídico.

O empresário Adherbal Alves Ferreira perdeu no incêndio sua filha, Jennefer Mendes Ferreira, que tinha 22 anos e era aluna do 3º ano de Psicologia. Hoje ele preside a Associação dos Familiares das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria

— Eu resolvi trocar o luto pela luta, e é por isso que estou à frente da associação  — diz Ferreira.

A principal atividade da entidade é o amparo psicológico de profissionais a familiares e vítimas. A associação trabalha com apoio da Cruz Vermelha, e estão sendo treinados mais psicólogos para aumentar a capacidade de atendimento. Segundo Ferreira, a seleção de psicólogos voluntários é muito criteriosa, pois o luto é um tema muito difícil de lidar. O empresário conta que somente agora, dois meses depois do incidente, alguns pais estão sentindo o peso das perdas.

— A capacidade de recuperação é diferente para cada um. Agora é que está caindo a ficha, estamos fazendo de tudo para manter o equilíbrio — disse.

A associação está atendendo na sede antiga reitoria da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Há uma sala para reuniões de grupos e também salas reservadas, onde as pessoas podem receber atenção individualizada. Segundo Ferreira, algumas pessoas estão sendo visitadas em suas próprias casas, pois de tão abaladas, não estão sequer se alimentando.

A associação também está atuando no campo  jurídico, com auxílio da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul e de advogados voluntários.

O presidente da associação explica que eles já estão analisando os resultados do inquérito policial, divulgado na última sexta-feira, para decidir qual estratégia seguir no acompanhamento e cobrança de responsabilidade criminal dos envolvidos: “Existem, sim, responsáveis, e isso deve ser apontado.”, afirmou. O inquérito apontou 35 pessoas responsáveis, sendo 16 delas indiciadas criminalmente.

Ferreira faz questão de reconhecer o apoio recebido pelas vítimas. “Santa Maria não é mais a mesma. É uma nova vida que estamos vivendo e o povo corresponde ao sentimento de justiça, e não de vingança. A ajuda nos comove”, diz.

A associação pretende organizar manifestações todos os dias 27 às 18h. No mes de Março, a manifestação durou 15 minutos; os sinos das igrejas tocaram e as pessoas vão buzinaram e bateram palmas. “Estamos à frente para que a tragédia não caia no esquecimento”, conclui.

Saiba mais

Legislação contra incêndio do estado de São Paulo
Perfis das vítimas no site do jornal Zero Hora


Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)

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