Cora Coralina: a mulher da casa da ponte

Nelson Oliveira | 11/04/2012, 10h33

"Dizem que quando a gente se identifica com o comprador do livro, a dedicatória sai em linhas retas".

A frase dirigida a um jovem poeta e estudante de jornalismo partiu da escritora Cora Coralina no longínquo feriado de carnaval de... 1982?

É o ano mais provável. De todo modo, não teria como consultar, na redação, o exemplar de Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais que me foi vendido pela própria Cora na casa velha da ponte, fincada desde os 1700 às margens do rio Vermelho, na Cidade de Goiás.

Três anos depois do encontro, ela se deixaria ir, quase centenária, plena de vida e realização literária.

O objetivo da viagem a Goiás era só uma aventura com amigos, mas o jovem poeta se lembrou, em meio à balbúrdia do carnaval, que na cidade morava a escritora mencionada em artigo publicado por Carlos Drummond de Andrade no hoje lendário Caderno B do Jornal do Brasil.

Anos depois, voltaria a Goiás para redescobrir Cora em seu museu, e tomaria contato com a sua atividade de cronista e contista, na qual ela supera a veia poética: transpõe para o livro todo um mundo insuspeitado de memórias próprias e histórias que remontam o tempo dos bandeirantes.

O Tesouro da Casa Velha e Estórias da Casa Velha da Ponte são dois livros extraordinários para quem quer conhecer a prosa de Cora e o universo da cultura tradicional goiana. Tudo é contado de uma maneira muito viva, cheia daquele entusiasmo das avós quando reúnem os netos em volta de bacias de biscoitos.

Tesouros ocultos num porão, lavrados de famílias que se vão numa enchente, amores proibidos, procissões noturnas, disputas políticas, emboscadas, maracutais do fiscal d'El Rey, lições à base de palmatória, labutas e rebeldias de escravos, nobres que perdem a pompa, assombrações, crianças espreitando tigelas de doce.

Toda essa relíquia emana das duas obras, que podem ser adquiridas no museu - uma visita obrigatória para quem visita uma cidade que deveria obrigatoriamente ser visitada por todo brasileiro.

Cora, como diz sua filha Vicência Brêtas Tahan, autora do livro biográfico Cora Coragem Cora Poesia, foi "uma mulher à frente do seu tempo", o que provam seu casamento com um homem já casado, sua visão social dos mais pobres e marginalizados, e, acima de tudo sua literatura, por meio da qual fala de maneira franca, embora elegante.

Em acréscimo, poderia se dizer que é mulher de todos os tempos, pois também preservava o passado contra as traças do esquecimento e vivenciava as lutas do presente com a garra de quem sabia extinta a riqueza familiar obtida nos tempos da escravidão.

Essa força e segurança a fez refutar de maneira enérgica a associação que o Poeta Maior arriscara entre o seu nome-pseudônimo e o ambiente marítimo. Não. Cora Coralina referia-se ao vermelho do coração.

Sua energia era de fato a da coragem, e tinha algo da perenidade da mina que até hoje abastece a casa velha da ponte, vinda de algum ponto obscuro da serra Dourada. A bica está instalada no porão, onde muito antigamente guardavam-se mantimentos e dormiam os escravos. É o único cômodo da casa que pode ser fotografado. E da água também se pode beber.

Eu bebi.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)

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