Desconfiança e preconceito da sociedade dificultam ressocialização de presos
thbohm | 26/09/2017, 10h58
Quem vê o semblante tranquilo do garçom Raimundo Freitas Gomes, de 45 anos, não consegue imaginar a vida que ele deixou para trás. Antes de chegar à maioridade, as drogas e os roubos o levaram à internação socioeducativa. Aos 18, depois de reincidir, passou para a prisão.
— Um abismo chama outro abismo, e eu fui enveredando por esse mundo obscuro — lembra.
Dentro do Complexo Penitenciário da Papuda, em Brasília, ele começou a se interessar por cursos oferecidos pela Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso (Funap), como elétrica predial e instalação e manutenção de placas fotovoltaicas. Em 2008, foi para o regime semiaberto. Em 2011, para o aberto. Empregado na sede da Funap, hoje também é bolsista do curso de direito de uma faculdade particular.
— Estou apostando tudo nessa oportunidade — afirma Gomes.
O garçom comprova que a ressocialização é possível, mas o exemplo dele é apenas uma exceção. Embora a Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984) tenha na privação da liberdade o instrumento capaz de oferecer ao infrator um intervalo durante o qual reflita sobre seu crime, as condições dos presídios levam ao desperdício desse tempo. Raramente o preso recebe a orientação e a capacitação necessárias para o seu retorno à sociedade.
Quando entram nas penitenciárias, os condenados passam a fazer parte de um submundo com regras próprias, dominado por facções, independentemente da gravidade da ação cometida.
— O sistema tem duas escolas: a do crime e a de Deus — sentencia Gomes.
Violência institucional e superlotação de celas são duas formas comuns de violação dos direitos da população carcerária. No Brasil, 622 mil presos se amontoam em apenas 371 mil vagas — um deficit de 250 mil lugares.
Nesse cenário, a ressocialização não é prioridade. Mesmo que as ações educativas e produtivas estejam previstas na Lei de Execução Penal, o número de presos assistidos é pequeno. Apenas 20% trabalham e 13% estudam. A reinserção social se resume às saídas temporárias, concedidas aos presos com bom comportamento, e às visitas de familiares e religiosos.
Saidão
O mecanismo das saídas temporárias, conhecido popularmente como saidão, encontra resistência na sociedade. Num país onde são registrados anualmente 60 mil homicídios e mais de 45 mil mulheres são estupradas, a insegurança faz parte do dia a dia. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 76% da população tem medo de ser assassinada. O sentimento é intensificado quando se anuncia um saidão, normalmente em datas como o Natal e a Páscoa.
Apesar do número de evasões ser pequeno, se comparado ao de presos beneficiados, não existe nenhum tipo de monitoramento sobre como os presos se comportam ao gozar esse direito. Por isso, o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP) quer tornar mais rígidas as regras para as saídas temporárias. O PLS 120/2016 institui para os saidões o uso de tornozeleiras eletrônicas pelos presos condenados por crimes violentos, de grave ameaça à pessoa ou hediondos.
O projeto prevê ainda aumentar o tempo de cumprimento da pena requerido para o gozo do saidão. Atualmente, os infratores podem sair após cumprir um sexto da pena (ou após um quarto, no caso dos reincidentes). O texto de Alcolumbre propõe o cumprimento de um terço da pena (ou metade, no caso dos reincidentes).
— Não buscamos simplesmente dificultar a concessão da saída temporária do condenado, mas mostrar-lhe a importância de cumprir a pena com comportamento adequado para ser beneficiado com novas autorizações — argumentou o senador.
Preconceito
De volta ao convívio social — no saidão, no regime semiaberto ou aberto ou então em liberdade —, o transgressor encontra o preconceito. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 57% da população brasileira em 2015 concordava com a frase “bandido bom é bandido morto”.
— Quando o sujeito sai [da prisão], mesmo já tendo cumprido a pena, ele muitas vezes não é aceito pela família nem pela comunidade e muito menos pelo mercado de trabalho. O preconceito é muito grande. As pessoas acham que, por ter cometido o crime uma vez, ele vai ser eternamente criminoso — diz o psicólogo e professor do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília (UnB) Mário Ângelo Silva.
Se por um lado a reinserção necessita do perdão da sociedade, como assinala o coordenador-geral de alternativas penais do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), Talles Andrade de Souza, por outro é preciso considerar o efeito provocado no imaginário dos cidadãos pela ideia de conviver com autores de crimes.
— Nós precisamos acreditar que todos os sujeitos têm condição de rever suas trajetórias — propõe Andrade de Souza.
O sociólogo Lúcio de Brito Castelo Branco contrapõe:
— Você daria emprego a um bandido acusado de estupro, latrocínio?
A opinião do sociólogo, vista com antipatia por pessoas que creem na ressocialização, é mais parecida com a do senso comum.
— Quem tem preconceito em relação à sociedade é o bandido. Com essa história romântica e de alta periculosidade dos chamados direitos humanos que defendem o banditismo, o crime, convencionou-se dizer que a sociedade é preconceituosa, que a pobreza é culpada do crime. Isso é um absurdo — opina.
O professor Silva, da UnB, admite que a vulnerabilidade social não é justificativa para a criminalidade. Por outro lado, vê no combate à pobreza um ingrediente para a diminuição da criminalidade.
— É preciso investir em políticas sociais para que o cidadão possa ter uma vida normal, sem precisar transgredir. Pobre tem muita dificuldade de acesso à educação, à saúde e ao trabalho — frisa o psicólogo.
De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), 75% dos encarcerados estudaram somente até o ensino fundamental.
A pesquisa aponta que apenas 12% das pessoas presas cometeram crimes hediondos. A maioria, 66%, foi condenada por tráfico (28%), roubo (25%) ou furto (13%). Ainda assim, o pequeno traficante de drogas é chamado pelo mesmo qualificador atribuído a assassinos e estupradores: bandido.
— O que se vê nas prisões é um acúmulo de pessoas com perfis muito diferenciados, desde o ladrão de um xampu no supermercado até o assaltante de banco. Essa convivência lá dentro faz com que haja resistência. É preciso separar o joio do trigo — analisa Silva.
Reincidência
O medo entranhado na sociedade se reflete nas perspectivas de reinclusão do infrator, mesmo que ele tenha um nível de periculosidade baixo. O Depen não tem nenhum dado oficial que aponte a taxa de reincidência criminal no país, mas Andrade Souza estima que 70% dos egressos voltam a cometer crimes.
— O sistema funciona como um catalisador, aprofundando as vulnerabilidades sociais e muitas vezes motivando as dinâmicas criminais — afirma.
Em 2015, o Ipea publicou uma pesquisa sobre reincidência. O estudo abrangeu apenas a reincidência legal (aquela em que o indivíduo é condenado por um novo crime até cinco anos após a extinção da pena anterior). Entre os 817 processos analisados, foram constatadas 199 reincidências do tipo legal — média de 24,4%.
Ressocialização
Em Brasília, o trabalho de reinserção social começa na Funap. A entidade oferece cursos de capacitação profissional aos presos nos regimes fechado, semiaberto e aberto, por meio de parcerias com o governo local e empresas privadas.
Atualmente, 1,3 mil condenados exercem algum tipo de atividade remunerada. Para conseguir essas parcerias, um incentivo é dado às empresas, que são isentas do 13º salário, das férias e de toda a carga previdenciária. Os presos recebem 75% do salário mínimo.
Segundo a diretora da Funap, Dilma Imai, o regime de contratação de presos não precisa estar submetido à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
— O reeducando custa para a empresa em média R$ 770. Hoje nós temos cerca de 80 contratos com empresas públicas e privadas e estamos procurando mais empresas — informa Dilma, chamando a atenção para o fato de que 700 presos aguardam a oportunidade.
Embora não garanta vida longe da transgressão, o trabalho colabora muito para diminuir a reincidência, afirma a assistente social da Funap Sara Tardin:
— Falar de estatística é complicado, mas, pela minha expertise, nós conseguimos ressocializar 50% [dos presos assistidos] de forma que não reincidam.
Senado
Tramitam no Senado dois projetos que tratam de atividades dentro do sistema prisional. O PLS 117/2017, da senadora Maria do Carmo Alves (DEM-SE), institui o cultivo de hortas orgânicas nas dependências dos estabelecimentos penais. Ela sugere que a produção seja consumida na própria unidade ou enviada a instituições de caridade.
— O trabalho nas hortas funciona como medida terapêutica, além de contribuir para a reconstrução dos laços sociais do detento quando ele retomar uma função na sociedade — afirma.
A senadora Ângela Portela (PDT-RR), relatora do projeto, deve apresentar seu parecer — favorável — à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) ainda nesta semana.
— O trabalho, além de ser um meio de ressocialização do condenado, propicia que ele participe do desenvolvimento social e econômico da comunidade no qual está inserido, ocupando de forma produtiva o tempo ocioso no interior do estabelecimento prisional e, consequentemente, diminuindo os efeitos criminógenos da prisão — argumenta Ângela.
O PLS 208/2017, do senador Cristovam Buarque (PPS-DF), estabelece a redução da pena por meio da leitura de livros. A medida já vem sendo executada com base em uma portaria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mas o senador quer garanti-la em lei.
Cristovam propõe a redução de quatro dias de detenção a cada livro comprovadamente lido. Atualmente, a Lei de Execução Penal só permite a diminuição de pena no caso em que o condenado estude formalmente ou trabalhe, descontando um dia de prisão a cada 12 horas de frequência escolar ou três dias trabalhados.
— A simples leitura não é suficiente para recuperar o preso, mas ajuda. O estudo permite que ele encontre uma maneira de se inserir na sociedade depois que sair do sistema — disse o senador.
O projeto está na CCJ, onde aguarda designação do relator
Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)