“Uma coisa não anula a outra”: a não convalidação das nulidades — Rádio Senado
Legislativo - que poder é esse?

“Uma coisa não anula a outra”: a não convalidação das nulidades

O sétimo episódio do podcast “Legislativo – que poder é esse?” fala sobre um princípio do processo legislativo bem técnico: a não convalidação das nulidades. O consultor do Senado Federal João Trindade Cavalcante Filho explica o que acontece quando há falhas no processo legislativo e uma proposta aprovada fere a Constituição

Encontre a transcrição do episódio aqui: https://cutt.ly/KEqoYXa

Produção: Rádio Senado

23/09/2021, 06h00 - ATUALIZADO EM 28/09/2023, 14h33
Duração de áudio: 31:29
Arte: Hunald Vale

Transcrição
F: Olá, eu sou a Fernanda Nardelli e esse é o podcast Legislativo – “Que poder é esse?”. Uma produção da Rádio Senado. O nosso podcast está apresentando os princípios o processo legislativo. Toda semana o consultor do Senado João Trindade Cavalcante Filho conversa com a gente sobre o funcionamento do Poder Legislativo. Se você está chegando agora, recomendo que volte aos primeiros episódios para nos acompanhar desde o início dessa jornada. Já falamos sobre o princípio democrático, o princípio da oralidade, controle de constitucionalidade, separação dos poderes, simetria... e hoje chegou a vez do princípio da não convalidação das nulidades. F: A gente vem falando aqui no nosso podcast, João, sobre o processo legislativo, né? E que tem várias etapas que estão sendo destrinchadas aqui. E esse processo é, como tudo na vida, sujeito a falhas. Então eu queria conversar com você sobre esse princípio, né? , de hoje, da não convalidação das nulidades, e o que ele tem a ver com a falhas durante o processo legislativo? J: Pois é, Fernanda, esse é o princípio talvez mais técnico que a gente tem, exatamente porque você traduziu muito bem todo o processo... todo conjunto de atos pode estar sujeito a uma falha, né? Então, por exemplo, na fabricação de um carro, na fabricação de um automóvel... você tem lá várias etapas e você tem que ter algum tipo de mecanismo de controle de qualidade para evitar que um veículo montado de forma defeituosa chegue até o consumidor final. Isso também acontece em relação às leis, em relação aos projetos de lei, em relação às proposições em geral. É algo, inclusive, que a gente já discutiu aqui em outro episódio do nosso podcast, quando a gente falou sobre o princípio do controle de constitucionalidade. Mas agora a gente vai mergulhar em uma questão ainda mais específica, que é o seguinte: os erros, os vícios, os defeitos, as falhas que forem identificadas na tramitação de um projeto de lei. Por violação à Constituição, elas admitem correção? Quer dizer, existem erros que a gente diz que são erros que podem ser convalidados. É aquele riscozinho na pintura do carro que você tem como corrigir, tem como dar um polimento e o carro ser vendido. Mas se, por exemplo, o carro foi montado com a porta traseira no lugar da porta dianteira, não tem jeito, aquilo ali vai ter que ser descartado. Então é disso que a gente está falando... de quais erros, de quais falhas do processo legislativo que podem ser corrigidas, que podem ser saneadas, e quais aquelas que não podem, quais aqueles vícios que são tão graves, mas tão importantes, que terminam contaminando um projeto e não admitem, portanto, convalidação. O termo convalidação aqui, a gente pode entender como correção, digamos assim. F: Quais são, assim, os exemplos de uma falha dessas, né? Um vício, enfim, que não aceita correção. J: Basicamente, o grande divisor aqui é: se trata de um vício por contrariedade à Constituição ou se é um vício por contrariedade ao regimento interno. É porque existem essas duas normas, né? Que basicamente regulamentam a tramitação de projetos de lei e de proposições em geral. Existem as regras do processo legislativo constitucional, que estão lá no artigo 59 a 69 da Constituição, e existe o detalhamento disso no nível regimental, que vai estar lá no regimento interno da Câmara, regimento interno do Senado, regimento interno das assembleias e das Câmaras Municipais. Pois bem, se houver um erro por contrariedade meramente, entre aspas, ao regimento interno, esse erro, essa falha pode ser que admita convalidação. Vou te dar um exemplo bem prático. Durante a votação dos projetos, isso a gente também comentou em outros episódios aqui do nosso podcast, os líderes de bancadas têm direito a fazer o chamado encaminhamento da votação. Dizer “o partido tal, vota e encaminha voto sim, o partido tal encaminha não”. Isso é uma prerrogativa que é garantida no regimento interno de cada Casa. Imagine que por um erro do presidente da sessão, ele não tenha passado a palavra a um determinado líder. Ele tem esquecido. Ele abriu o painel de votação depois que todo mundo já tinha votado, mas não passou a palavra ao determinado líder para encaminhar à votação. Ora, isso é um defeito? É um vício? É, mas é um vício obviamente de menor importância, é um vício que contraria uma mera regra regimental. Isso aqui não gera nenhum efeito maior. Então, não vai gerar a nulidade de um projeto de lei aprovado só por conta de uma falha dessa. Agora, quando se trata de uma falha que contraria um dispositivo da Constituição, aí não tem jeito, aí as inconstitucionalidades não se convalidam. Por exemplo, quando uma PEC, uma Proposta de Emenda Constitucional vai ser votada, a Constituição diz que ela tem que ser votada em dois turnos em cada Casa. Então existe a necessidade de duas rodadas de discussão e votação na Câmara e duas rodadas de discussão em votação no Senado Federal. Imagine, porém, que por uma falha, por um erro, foi colocado um determinado texto, um determinado artigo em uma PEC quando ela já ia para o segundo turno de votação. Ora, se você faz uma emenda de mérito, ou seja, um novo texto entre o primeiro e o segundo turno, isso significa que aquele novo texto que foi votado naquela Casa uma vez só. Aquele texto inserido entre a primeira e a segunda votação, obviamente ele não vai ter sido votado duas vezes, e aí existe uma inconstitucionalidade, aí isso viola o parágrafo segundo do artigo 60 da Constituição Federal. Tem uma norma regimental também, mas que basicamente repete a Constituição. O problema aqui é a inconstitucionalidade. E o STF inclusive já declarou a inconstitucionalidade de um caso em que aconteceu isso. Foi na ADI 2135, relatora original a ministra Ellen Gracie. Então aqui, veja, uma coisa é descobrir uma norma regimental, outra coisa é descobrir uma norma constitucional. F: O João se referiu ao julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2135, que pedia a suspensão da vigência do artigo 39 da Constituição, alterado por uma Emenda Constitucional de 1998. Em 2007, o Supremo Tribunal Federal concedeu uma liminar suspendendo o texto por entender que o processo legislativo da Emenda Constitucional não seguiu as regras. O julgamento dessa ação só foi retomado em setembro de 2020, quando a ministra Cármen Lúcia proferiu seu voto. A gente vai entender um pouco desse caso ouvindo um trecho da reportagem que a TV Justiça fez na época. LOC: Terminou há pouco a sessão plenária do Supremo Tribunal Federal em que os ministros debateram a ação que envolve o regime de contratações de servidores públicos. O julgamento foi suspenso após o voto da relatora, ministra Cármen Lúcia. LOC: Hoje os servidores públicos seguem o chamado regime jurídico único, que regula a relação entre os servidores públicos e a administração, e prevê a estabilidade do cargo. Mas a Emenda Constitucional número 19 de 1998 trouxe uma alteração, que excluiu a exigência do regime jurídico único e permitiria a contratação de funcionários públicos via CLT ou pela forma estatutária. Os partidos PT, PCdoB, PDT e PSD entraram no Supremo com Ação Direta de Inconstitucionalidade, alegando que a emenda constitucional foi promulgada sem que as alterações feitas pelo Senado fossem aprovadas em dois turnos pela Câmara dos Deputados. A ADI foi proposta em 2000 e teve liminar confirmada por 8 votos a 3 pelo plenário em 2007 para suspender apenas o caput do artigo 39. Agora, os ministros julgam o mérito da ação. Na sustentação oral, o advogado do PT se ateve à inconstitucionalidade na questão formal da emenda. ADV: Na hora de fazer a redação definitiva, de adequar a redação, o relator então, o deputado Moreira Franco, ele resolveu simplesmente como entendia que não tinha sido aprovada a redação nova do caput, simplesmente resolveu ignorar a redação antiga do caput do artigo 39, e subiu na verdade o parágrafo quarto do artigo 39 para o caput. LOC; Para o advogado geral da União, não houve alterações substanciais no texto aprovado, por isso eles se manifestou pela improcedência da ação. ADV: Passados 13 anos da liminar, a retomada da possibilidade que já existiu por quase 10 anos não traria nenhuma dificuldade. Ao contrário, possivelmente representaria saudável oxigenação, em termos de leque de possibilidades, para os entes em suas respectivas esferas de autonomia. LOC: A ministra Cármen Lúcia votou pela procedência parcial da ação, ou seja, mantendo o regime jurídico único para a contratação de servidores. J: Mas o maior todos os exemplos aqui, Fernanda, de aplicação do princípio da não convalidação das nulidades é o caso em que o Presidente da República, mesmo sancionando um projeto de lei, isso não convalida o eventual vício de iniciativa daquele projeto. Vamos tentar explicar isso daqui. Traduzir isso daqui em bom português. O que a gente está dizendo é o seguinte... a gente também já analisou aqui em outros episódios do podcast que existem determinados projetos que só podem ser votados pelo Legislativo se for por iniciativa do Chefe do Executivo, ou seja, determinados projetos que na esfera federal o Congresso Nacional só pode votar se for a pedido do Presidente, se for por iniciativa do Chefe do Executivo. Pois bem, agora imagine que um deputado federal apresente um projeto de lei desses. Por exemplo, um deputado federal apresenta um projeto de lei para dar aumento aos servidores do Poder Executivo. Uma coisa obviamente inconstitucional, inquestionavelmente violadora do artigo 61 da Constituição Federal. Uma proposta dessa não deveria nem tramitar. O presidente da Câmara dos Deputados deveria devolver essa proposição. Mas imagine que por uma falha não devolveu, isso tramitou... deveria ser rejeitado pelas comissões, não foi... foi votado em Plenário, foi para o Senado, o Senado aprovou, passou... houve uma falha no controle de qualidade do projeto, passou... chegou na mesa do Presidente da República para que ele sancione ou vete. Aí ele olha e diz “pera aí, isso aqui devia ser de iniciativa minha, isso daqui era pra ser meu, isso daqui era pra ser eu que tinha apresentado ao Congresso. Como deputado, isso é inconstitucional. Ah, mas quer saber? Não vou comprar briga com essa categoria de servidores não, vai lá e sanciona”. Olha que interessante, Fernanda, mesmo o Presidente sancionando o projeto, isso não supre aquela falha que houve lá no começo. Isso não convalida o vício de iniciativa, exatamente porque a sanção presidencial não supre a falta de iniciativa. A sanção do Presidente não corrige aquela inconstitucionalidade que o projeto teve. E aí neste caso o projeto vira lei porque foi sancionado, mas vira uma lei que é inconstitucional e que poderá ser questionada no poder Judiciário e que o Judiciário, o Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência tranquila nesse sentido, que o judiciário irá certamente declarar inconstitucional. F: É interessante isso, João, porque mesmo sendo o Presidente, né? Ele que teria que ter a iniciativa, então se ele está sancionando de uma certa forma, ele está com acordando, né? Com aquela falha, como você falou assim “ah, vou deixar passar”, né? Às vezes até por uma economia de tempo “ah, não, senão eu vou ter que apresentar esse projeto para que ele seja votado e tudo”, e mesmo assim, quando isso vai pra justiça, a decisão do Supremo Tribunal Federal é pela inconstitucionalidade. Ou já existiu em um outro tempo uma visão diferente do judiciário de interpretar assim “não, se quem deveria ser o autor da lei está concordando com ela, vamos deixar passar”? J: Olha, Fernanda, essa é uma das discussões mais antigas que existe no processo legislativo brasileiro. E aí você percebeu muito bem os argumentos que existem também para o outro lado, né? Grande autor, professor Menelick de Carvalho Neto, professor da UnB, e já foi professor da UFMG, ele tem, salve engano, a tese de doutorado dele sobre a sanção do procedimento legislativo, e ele defende nessa tese de que a sanção convalidaria sim a falta de iniciativa. Inclusive, ele faz uma análise histórica sobre como surgiu a sanção, como surgiu o veto, etc. Então é realmente um tema interessante, um tema bem polêmico. E como você citou, já houve épocas em que o próprio Supremo Tribunal Federal entendia que a sanção convalidava a falta da iniciativa. O Supremo chegou a editar uma súmula, um enunciado do seu entendimento, a Súmula 5, que é lá de 1963, e que dizia exatamente que a sanção presidencial supria a falta de iniciativa. Depois o STF lá em 1982, no caso oriundo da Guanabara, o STF mudou sua jurisprudência e foi esse sentido que veio até hoje já no sentido da não convalidação. E um debate interessante, um argumento interessante para o debate, foi o argumento que fez o Supremo mudar de posição que é o seguinte... o fato de o presidente sancionar não quer dizer que ele gostaria de ter exercido aquela iniciativa, porque venhamos e convenhamos, quando você aprova aquele projeto de lei e ele está na mesa do Presidente para sancionar ou vetar, você coloca o Presidente contra a parede, né? Digamos assim, uma coisa é o ônus político que o presidente tem de não mandar um projeto de lei para dar aumento a determinadas categorias. É um ônus político que ele tem, porque não dá para dar aumento pra todo mundo, mas é um ônus decorrente de uma omissão, de não mandar o projeto. Já um ônus de pegar um projeto já aprovado em ambas as Casas do Congresso e embarreirar, vetar, aí já é, você há de convir comigo que é um ônus político bem diferente. Então até por conta disso, apesar dessa polêmica, até hoje tem uma discussão gigantesca entre os estudiosos do processo legislativo sobre esse caso específico, mas exatamente por essa questão do ônus político, exatamente pelo fato de que ao dar a iniciativa privativamente ao Presidente, o constituinte originário tentou transformá-lo no senhor do momento, para usar a frase do ministro Celso de Mello, a Constituição deu ao Presidente o juízo de conveniência e oportunidade de quando pautar aquele tema. E aí esse caso se aquele tema é pautado à revelia dele, mesmo que ele depois emparedado, mesmo que ele depois contra a parede, mesmo que ele depois, como se diz lá na minha terra, lá na Paraíba, com a faca no bucho, ele tenha que efetivamente sancionar essa lei, isso não vai suprir aquele vício de iniciar aquilo. F: Para entender melhor essa questão do vício de iniciativa vamos conhecer outra decisão do Supremo Tribunal Federal, de outubro de 2020 quando a corte derrubou uma norma da Constituição de Minas Gerais. LOC: A sanção do Poder Executivo não valida a lei que desrespeitou o processo legislativo. Essa foi a decisão do Supremo Tribunal Federal ao analisar um trecho da Constituição do Estado de Minas Gerais. Quem explica para gente esse assunto é a nossa consultora jurídica aqui da TV Justiça, a Gisele Reis. GISELE REIS: O processo de criação de uma lei precisa respeitar o passo a passo previsto na Constituição Federal para que não haja conflito entre os poderes. Deve ser observado o chamado processo legislativo, que é o caminho previsto para elaboração dos atos normativos. Esse processo envolve a participação do Poder Legislativo e também do Poder Executivo, e é uma das bases da harmonia e separação dos poderes. As regras definem quem tem competência para legislar sobre determinado assunto, ou seja, quem pode iniciar um projeto de lei. Quando a apresentação de um projeto de lei cabe exclusivamente a um poder é iniciado por outro, ocorre o chamado vício de iniciativa e isso a inconstitucionalidade da norma. Em Minas Gerais, um trecho da Constituição do Estado previa que o projeto de lei sancionado pelo governador gerava a validação das leis com vício de iniciativa. Isso foi questionado no STF por uma ação apresentada pelo procurador geral da república julgada inconstitucional na última sessão do plenário virtual. O voto que conduziu a decisão do STF foi da relatora ministra Rosa Weber. Ela disse que a sanção do chefe do executivo ao projeto de lei não tem força para validar o processo legislativo que não observou o caminho traçado pela Constituição Federal, mesmo que se trate de uma usurpação de iniciativa do próprio Chefe do Executivo. A maioria dos ministros decidiu que esse entendimento do STF vale a partir da publicação da decisão e por questões de segurança jurídica, as leis com vício de iniciativa que já foram sanciona pelo governador não serão consideradas inconstitucionais. F: Quando a gente tem uma situação, por exemplo, de quórum, né?, você estava falando da tramitação de uma PEC, em dois turnos e você também tem um quórum para aprovação, que é diferente do projeto de lei ordinária, de projeto de lei complementar, de uma PEC... de repente uma lei complementar, por exemplo, receber lá a votação favorável de apenas maioria simples e passar. Ela foi aprovada, mas com o quórum que contraria a Constituição. Existe essa possibilidade e isso entraria nesses exemplos do princípio da não convalidação das nulidades? J: Esse exemplo que você traz, Fernanda, é excelente exatamente porque ele é uma exceção ao princípio da não convalidação das nulidades. É um caso em que se convalida uma inconstitucionalidade, mas por questão prática. Deixa eu tentar explicar da maneira mais simples aqui para o nosso ouvinte poder concretizar esse cenário. A questão do quórum, do número mínimo de votos que é necessário para aprovar uma proposição, é obviamente um tema central, né. Você saber se tem votos suficientes para aprovar aquela medida, aquela proposição. Pois bem, por ser um assunto central, essa matéria de quórum é tratada na própria Constituição. Todas as regras de quórum, de votação de proposição legislativa estão na Constituição. Aliás, a própria Constituição é que diz no artigo 47 que, a não ser que ela mesma diga o contrário, o quórum de aprovação é de maioria simples, a também chamada maioria relativa. Pois bem, quando há um descumprimento de regra de quórum existe, portanto, uma inconstitucionalidade. Imagine que por exemplo, eu voto uma lei complementar que exige a maioria absoluta nos termos do artigo 69 da Constituição, e aí se obtém apenas a maioria simples, a maioria relativa e mesmo assim se dá a lei complementar como aprovada. Ora, se eu precisava ter a maioria absoluta, 41 votos no âmbito do Senado e tire apenas a maioria simples, a maioria de quem está lá, digamos 31 dos 60 votos, é claro que existe uma inconstitucionalidade. Porém, a exceção ao princípio da não convalidação vem quando eu tenho um descumprimento de regra de quórum porque eu exigi um quórum maior. Então, por exemplo, se determina matéria é uma matéria de lei ordinária, é uma matéria que à luz do artigo 47 da Constituição Federal poderia ser aprovada por maioria simples, maioria relativa. Mesmo assim por um erro, por um engano, se colocou o sarrafo um pouco mais alto, se colocou o sarrafo da maioria absoluta... e mesmo assim o projeto foi aprovado. Ora, se mesmo com o sarrafo mais alto do que precisava o projeto foi aprovado, não tem porquê jogar isso no lixo. E aí nesse caso a jurisprudência do Supremo, o caso líder é o recurso extraordinário 377457 do Paraná, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende que eu posso pegar uma matéria que foi aprovada por maioria absoluta, mas se precisava só de maioria simples eu considerar aprovada como se eu tivesse uma lei ordinária, como se aquilo fosse mesmo uma matéria de maior é simples. Fazendo a analogia com índice Olímpico, imagine que na disputa do salto com vara é preciso saltar, sei lá, quatro metros pra poder atingir o índice olímpico e ir para as Olimpíadas. Ora, se a pessoa colocar o sarrafo mais baixo, três e noventa e a pessoa saltar, obviamente aquele salto não valeu para o índice olímpico, que é de quatro metros. Mas se por um erro o sarrafo estava, na verdade, em quatro metros e quinze, e ainda assim a pessoa saltou, é claro que eu não vou dizer que a pessoa está desclassificada das Olimpíadas, entende? Então assim, a violação a regras de quórum gera inconstitucionalidade, a não ser quando o quórum exigido foi maior do que precisava, quando eu exigi o quórum maior do que constitucionalmente precisava dá para eu admitir, dá para eu aceitar aquele ato normativo como se tivesse sido aprovado efetivamente com que o quórum que a Constituição exige. F: E uma coisa que a gente conversou quando a gente falou do princípio do controle da constitucionalidade e que eu te pergunto aqui também. Em todos esses casos que a gente tá falando, da não convalidação, é preciso ter uma provocação ao judiciário? Como é que funciona esse processo, assim... se ninguém, se uma lei for aprovada, for sancionada com um vício, por exemplo, de iniciativa e ninguém provocar o judiciário com relação a essa lei... ela.... todo mundo deixar passar... como é que fica essa situação? J: Aí é um dos grandes problemas do direito sabe, Fernanda... que é o seguinte: uma norma pode ser inválida, mas mesmo assim continuar no ordenamento, permanecer no sistema jurídico porque não foi questionada por ninguém. O judiciário só age quando provocado, tirando alguma absolutamente excepcionais que nem vem ao caso aqui citar, mas o judiciário não age de ofício. O Judiciário não vê uma lei inconstitucional, chega lá e ele mesmo impugna, não... na verdade, o Poder Judiciário vai analisar a constitucionalidade ou não de uma lei quando for provocado, quando alguém chegar lá e questionar. E aí realmente, se ninguém que foi prejudicado por aquela lei questionar o Judiciário, aquela lei mesmo sendo inválida, mesmo sendo inconstitucional, mesmo tendo um vício, ela vai permanecer no ordenamento, ela vai continuar. Para usar a linguagem técnica, a gente diz que essa lei é inválida, mas apesar de ser inválida ela excepcionalmente é eficaz, quer dizer, produz efeitos, ou seja, no melhor dos mundos, no mundo perfeito, toda lei inválida seria também declarada ineficaz. Mas excepcionalmente pode acontecer, e às vezes acontece mesmo, de uma lei produzida de forma inconstitucional não ser questionada. Ou porque houve um acordo e ninguém quer brigar contra aquela lei, ou porque quem é prejudicado por aquela lei não tem acesso ao judiciário, não tem acesso à justiça. E aí aquela lei fica, mas digamos assim, isso é uma falha do sistema com a qual o sistema tem que trabalhar, que o sistema ele tem que digerir. É como aquelas falhas que tem em um software, entendeu? O Windows tem algumas falhas lá... olha, existem algumas falhas com as quais você vai ter que trabalhar e que o próprio sistema vai ter que dar um jeito de resolver, mas não deixa de ser uma falha. E essa aparente contradição que você traz é também objeto de discussão de grandes estudiosos. Eu estou aqui, obviamente o ouvinte não vai me acompanhar (ver), mas eu estou aqui segurando na minha mão a Teoria Pura, de Hans Kelsen, que é considerado um dos maiores livros jurídicos da humanidade, e no capítulo 8º sobre a interpretação, ele vai tratar exatamente sobre essa temática que você traz, Fernanda. Então acho que realmente você toca em um ponto bastante sensível, não só para o processo legislativo, mas para o direito em geral. F: Agora, essa provocação que precisa ser feita ao Judiciário, ela pode ser feita a qualquer tempo, João? Se a lei foi aprovada, sei lá, cinco, 10 anos e agora alguém resolve questionar... é possível fazer isso? J: É possível. O Supremo Tribunal Federal já decidiu que não existe o fenômeno da constitucionalização superveniente, ou seja, não existe essa questão de uma lei que era inconstitucional se tornar constitucional depois. Então nesse caso, se uma lei é inconstitucional ela pode ser questionada 50, 60 anos depois. Agora, claro que isso é no mundo da teoria, né? Dependendo do tipo da lei, se ela for uma lei de efeitos concretos, aí não tem mais como você desfazer, né? Por exemplo, não tem como eu questionar uma inconstitucionalidade no orçamento geral da União de 1985... simplesmente porque eu não teria mais efeito prático. Mas assim, juridicamente uma inconstitucionalidade não se convalida e isso pode ser questionado, sim, a qualquer tempo. F: E a gente está falando aqui quando o projeto já se transformou em uma lei, né?, e uma lei inconstitucional. Existe a possibilidade, assim, de um projeto ser aprovado na Câmara com o vício, e aí quando ele chega para tramitação no Senado, aí a própria Câmara fala assim “poxa, isso aqui não vai funcionar né? Não vai ser convalidado porque tem um vício, porque vai ser inconstitucional”. Tem como interromper a tramitação desse projeto por conta desse princípio? J: Olha, é uma questão bem polêmica, viu? Eu vou te dizer, Fernanda, que eu já vi isso acontecer, mas isso é mais uma coisa derivada assim de um acordo de cavalheiros entre a Câmara e o Senado do que algo normatizado, sabe... então assim vai muito de uma questão do feeling mesmo, da relação política entre as Casas. Juridicamente não está mais na mão dela, quer dizer, se for o caso fazer emendas saneadoras, emendas para tirar aquela parte que tem uma inconstitucionalidade, por exemplo. Mas eu repito, eu já vi isso acontecer, eu já vi até acontecer mais, eu não vou dizer qual foi a lei, mas já teve lei e lei importante, não era leizinha qualquer, que foi objeto disso. Mas já teve lei importante, que foi aprovada pelo Senado como Casa revisora e mandada para sanção presidencial. E quando se estava na sanção, se percebeu uma falha no texto, o texto que foi mandado para sanção e o texto dos autógrafos não era o mesmo texto aprovado pelo Senado, tinha ali alguns artigos que tinham sido, vamos dizer assim, mal interpretados na mudança dentro do Senado. E aí o Senado pediu para devolver, o Presidente da República devolver os autógrafos, corrigir o texto, mandou de novo e zerou a contagem do prazo para o Presidente vetar. Mas aí já são, assim, práticas que eu posso dizer que são até à margem do Direito, que estão à margem do Direito, não porque sejam ilegais ou inconstitucionais. Mas assim, são questões de relacionamento entre as Casas, questões práticas de relacionamento entre as Casas que não tem exatamente uma previsão normativa de como devem acontecer. F: Esse foi o 7º episódio do nosso podcast, que conta com a participação do professor e consultor do Senado João Trindade Filho. Hoje falamos sobre a não convalidação das nulidades. No próximo encontro o tema vai ser o princípio da unidade de legislatura. O podcast Legislativo – “Que poder é esse?” é uma produção da Rádio Senado, com sonorização de André Menezes e pós-produção de Luana Corrêa. Hoje usamos trechos de reportagens da TV Justiça. Eu sou a Fernanda Nardelli e espero você no próximo episódio.

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