Por 100 anos, analfabeto foi proibido de votar no Brasil

Ricardo Westin | 04/11/2016, 20h56

Apesar da incompatibilidade ideológica, João Goulart e Castello Branco concordavam em um ponto. Papéis históricos sob a guarda do Arquivo do Senado mostram que tanto o presidente de esquerda derrubado pelos militares quanto o marechal de direita alçado pelo golpe à Presidência tentaram dar aos analfabetos o direito de votar.

Eles não tiveram sucesso. Os iletrados só depositariam o voto na urna em novembro de 1985, na primeira eleição após a ditadura, para escolher prefeitos de capitais, estâncias hidrominerais e cidades em área de segurança nacional.

Nestas três décadas, entre as eleições municipais de 1985 e as do mês passado, o total de brasileiros incapazes de ler e escrever caiu de 19 milhões para 13 milhões — de 25% para 8% da população adulta.

Na mensagem presidencial enviada ao Congresso em março de 1964, Jango escreveu: “Considerando-se que mais da metade da população é constituída de iletrados, pode-se avaliar o peso dessa injustiça. O quadro de eleitores já não representa a nação”.

Castello recorreu a outro argumento na proposta que apresentou aos congressistas em junho do mesmo ano: “Em nossos dias, pelas novas técnicas da comunicação e da convivência, o analfabeto já se informa, já tem consciência de colaborar na existência coletiva pelo seu trabalho e já pode participar da vida cívica”.



Não era contraditório que o primeiro presidente do regime militar defendesse o sufrágio universal. No início, os artífices do golpe não pretendiam eliminar a eleição direta nem implantar a ditadura. O plano era afastar o perigo comunista e devolver o poder aos civis em 1966.

O desejo de Jango não vingou porque ele foi destituído duas semanas após enviar a mensagem. O Congresso rejeitou a proposta de Castello.

Os analfabetos votaram durante a maior parte da história do Brasil. Na Colônia, as Ordenações Filipinas diziam que, não sabendo os eleitores escrever, “ser-lhes-á dado um homem bom que com eles escreva” e “que não descubra o segredo da eleição”.

Elite sem escola

Após a Independência, continuaram votando. Isso não quer dizer que os pobres fossem aceitos na vida política do Império. O principal requisito para ser eleitor era dispor de uma renda líquida de pelo menos 100 mil réis por ano.

De qualquer forma, seria um absurdo estabelecer a alfabetização como exigência, porque até a elite seria impedida de ir às urnas. Mais de 90% dos brasileiros eram iletrados no início do Império.

A guilhotina caiu sobre os analfabetos em 1881, depois que a Câmara e o Senado aprovaram a Lei Saraiva, com a exigência do letramento.

— A ignorância, porque se generaliza, adquire o direito de governar? — argumentou o ministro da Justiça, Lafayette Rodrigues Pereira, em 1879. — Se há no Império oito décimos de analfabetos, direi que eles devem ser governados pelos dois décimos que sabem ler e escrever.

O projeto que deu origem à Lei Saraiva foi redigido pelo jovem advogado e deputado geral Ruy Barbosa (BA).

— Ruy dizia que escravos, mendigos e analfabetos não deveriam votar porque careciam de ilustração e patriotismo e não sabiam identificar o bem comum — diz Walter Costa Porto, ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral e autor de A Mentirosa Urna.

Entre 1881 e 1985, todas as tentativas de acabar com a exclusão dos iletrados naufragaram. A proposta feita por Castello Branco em 1964 era cautelosa. Para vencer a resistência, liberava o voto do analfabeto só nas eleições municipais. Não adiantou.

— Jamais se deve premiar o analfabeto — argumentou o senador Miguel Couto (PSD-RJ). — Antes de se consentir que o ignorante decida os destinos do Brasil, mesmo que restrito ao pleito municipal, com todas as forças deve-se obrigá-lo a ler e escrever, tirá-lo das trevas da ignorância.

Cédulas adaptadas

Os analfabetos só tornariam a votar graças a uma emenda à Constituição aprovada por deputados e senadores em maio de 1985. A histórica liberação figurou entre as primeiras medidas democratizantes tomadas pelo Congresso após a ditadura. Fazia três semanas que Tancredo Neves morrera.

Na votação, o deputado Ronan Tito (PMDB-MG) disse:

— Precisamos dar ao analfabeto escola, mas também força para que reivindique escola para si e para os seus. Como passará a ser cidadão pleno e ter direito? Quando tiver acesso ao voto. Aí passará a ter forças inclusive para reivindicar, exigir escola. Hoje é cidadão de segunda classe.

O deputado Gerson Peres (PDS-PA) lembrou que o Código Civil via o iletrado como totalmente capaz:

— O analfabeto é responsável pelo pátrio poder, presta serviço militar, fecha contrato de compra e venda, testamenta antes de morrer. A legislação até lhe permite votar e ser votado no sindicato. Por que não pode votar nas eleições para o poder público?

Muitos parlamentares reclamaram que a emenda aprovada deu ao analfabeto só metade do direito. Ele votaria, de forma facultativa, mas não se candidataria. A Constituição de 1988 manteve os termos da decisão de 1985.

As cédulas foram adaptadas. Como os analfabetos têm mais familiaridade com números do que com letras, a votação passou a ser por meio de algarismos.

O cientista político José Carlos Brandi Aleixo, autor de O Voto do Analfabeto, cita uma razão para que os iletrados tenham demorado tanto para recuperar o voto e até hoje não possam disputar eleições:

— Eles têm vergonha da sua condição, se escondem e, por isso, têm dificuldade para se unir e lutar por direitos. Aos olhos do país, são invisíveis.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)

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