"Eles não querem saber de gente; só querem saber de mosquito"

Da Redação | 09/01/2006, 00h00

Francisco Siqueira do Nascimento tem 65 anos e, antes de ser "cobaia humana", nunca tinha pegado a doença.

- Agora, não posso mais trabalhar. Tenho mulher e sete filhos - lamenta.

O caso de Francisco, que teve de ser operado devido às complicações da enfermidade e quase perdeu a vida na mesa de cirurgia, foi o mais grave. Ele não recebeu nenhuma espécie de assistência por parte dos pesquisadores. Os ribeirinhos se responsabilizaram pelo seu tratamento.

- O contrato que nós assinamos dizia que médicos iriam cuidar de nós, e isso não aconteceu. Podíamos ter morrido. Mas eles não querem saber de gente; só querem saber de mosquito - protesta Sidney Siqueira, agente de saúde voluntário, que também serviu de cobaia.

"Tortura"

Sidney foi quem usou a palavra "tortura" para descrever como se dava o processo de alimentação do "carapanã", o mosquito transmissor da malária.

- Quando nós estávamos capturando, colocávamos em um recipiente como aquele lá (mostrou o copo de plástico coberto com tela, cheio de mosquitos). Depois, colocávamos a borda do copo em nossos braços e pernas, e os mosquitos nos picavam. Eram 25 por vez, até completar os cem. Alimentamos esses mosquitos durante nove noites - explicou ele, narrando o que ele chamou de "ato desumano".

Segundo Raimundo Picança, a dor, às vezes, era insuportável, e alguns desistiam antes de atingir a meta de cem mosquitos. Nesses casos, eles não recebiam a diária.

- Não faziam nem um curativo. O curativo era a gente chegar na beira do rio e passar uma água, para ver se abaixava aquela coceira, que era demais - lembrou ele.

"Por que participar, então?", pergunta um jornalista. "Porque achávamos que a pesquisa traria benefícios para a comunidade", respondeu Sidney, sem hesitar, confirmando o que já havia afirmado a líder Maria Siqueira, segundo a qual Allan Kardec Gallardo, coordenador da pesquisa no Amapá, havia prometido um posto de saúde para o povoado.

Denúncia

Cientes de que estavam sendo explorados, os moradores passaram, então, a se mobilizar para reverter a situação, tentando reunir provas do que havia acontecido, com a ajuda de um advogado voluntário. A visita do promotor Haroldo Franco, de Santana, que foi a Pirativa em novembro de 2005 investigar outro assunto, revelou-se a oportunidade ideal para romper o silêncio.

O promotor imediatamente notificou Kardec e comunicou o caso ao Ministério Público Estadual e ao Ministério Público Federal. Apesar de ainda não ter recebido nenhuma resposta, ele continua tomando depoimentos dos moradores.

- Não se pode fazer esse tipo de pesquisa que coloca a vida em risco. A malária é uma doença séria. O projeto original dizia que eles usariam sangue de animais domésticos presos em gaiolas - revelou ele.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)

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