Cobaias humanas "made in Brazil"

Da Redação | 09/01/2006, 00h00

À medida que as catraias, pequenos barcos usados para o traslado de Santana (AP) às comunidades ribeirinhas, avançam no meio da floresta, parcos casebres de madeira, sustentados sobre plataformas de tábua, surgem às margens do rio Pirativa.

Bandeirinhas de papel de seda colorido enfeitam o barracão, que funciona como salão de festas, para receber os visitantes ilustres. Após uma longa conversa, servem-se café, suco de frutas da Amazônia e bolo de macaxeira, enquanto as mulheres dançam o "Marabaixo".

São Raimundo do Pirativa é uma comunidade quilombola de 175 habitantes, que vive, essencialmente, da agricultura. A renda média mensal das famílias, formadas por, no mínimo, 12 pessoas, é de R$ 300. Lá, é difícil encontrar uma mulher de cerca de 35 anos com menos de 10 filhos.

- Tem muita gente que dá pena, passa fome mesmo - contou Maria Ribeiro Siqueira, líder comunitária do município visitado no último fim de semana pelo presidente da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), Cristovam Buarque (PDT-DF), que foi ao local verificar a situação das cobaias humanas utilizadas em pesquisa financiada por instituições norte-americanas.

Atualmente, as crianças estudam num grupo escolar improvisado. A maioria dos adultos, no entanto, só saber escrever o próprio nome. O posto de saúde mais próximo fica em Santana, a uma hora e meia de barco. Não há saneamento básico, mas há luz elétrica gratuita, "graças a Deus", diz Maria.

A denúncia

Em 2003, segundo contam os moradores, um certo Allan Kardec Gallardo, funcionário da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) cedido à Secretaria Estadual de Saúde do Amapá, acompanhado por um americano que eles não sabem identificar, desembarcou no povoado com uma proposta: por nove noites de trabalho, duas vezes por ano, os ribeirinhos receberiam R$ 108 e, de quebra, contribuiriam para o progresso da ciência ao ajudar a combater a malária.

Em 15 minutos, Kardec arrebatou dez "voluntários", que assinaram, sem ler, um contrato que dizia, em seus itens 6 e 7, o seguinte: "Você será solicitado como voluntário para alimentar cem mosquitos no seu braço ou na sua perna para estudos de marcação-recaptura", acompanhado da advertência: "O risco é que você poderá contrair malária". O termo de compromisso tem o carimbo da Universidade da Flórida.

E, assim, começou o infortúnio de Pirativa. Segundo Rosirene dos Santos Nunes, moradora do local e funcionária da prefeitura de Santana, a incidência de malária aumentou muito depois que a pesquisa começou. Dez pessoas participaram do projeto e todas elas foram contaminadas, mas a doença se espalhou entre os outros ribeirinhos.

- Para se ter uma idéia, em outubro do ano passado, tivemos cerca de 30 casos. Depois que eles foram embora, só registramos quatro contaminados - contou ela. A pesquisa foi suspensa em 14 de dezembro pelo Conselho Nacional de Saúde.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)

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