Regras mais rigorosas no Fies são necessárias, mas governo não foi transparente, dizem debatedores

Elina Rodrigues Pozzebom | 28/04/2015, 16h57

O Programa de Financiamento Estudantil (Fies) democratizou o ensino, possibilitou a chegada de milhões de estudantes à educação superior, mas precisava de regras mais rígidas. As mudanças impostas pelo Ministério da Educação, porém, não foram debatidas com a sociedade e ocorreram "de última hora" e de forma "pouco transparente". Como resultado, podem prejudicar os estudantes mais pobres. Esta foi a tônica do debate desta terça-feira (28), na Comissão de Ciência e Tecnologia (CCT), sobre os limites impostos pelo governo ao programa que financia a educação superior.

A maioria dos participantes da audiência pública criticou o modo como o Ministério da Educação conduziu a alteração das regras, com pouca divulgação e pouco tempo para as faculdades particulares e alunos se ajustarem.

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A procuradora da República Maria Cristina Manella chegou a afirmar que as portarias editadas pelo governo na virada do ano, a seu ver, ferem a Constituição.

— Essas novas regras sobre a média aritmética das provas do Enem, antes zero e agora igual ou superior a 450 pontos, e de redação, que não pode ser zero, instituídas em dezembro de 2014 e que passaram a valer em fevereiro de 2015, ferem frontalmente um dos princípios constitucionais que gerem a atividade administrativa: o da publicidade do ato administrativo, que impõe ao administrador o dever de dar ampla divulgação de seus atos — declarou.

Para ela, a observância ao princípio da publicidade não se restringe a mera publicação do ato do Diário Oficial, já que o ato administrativo, para ser válido, precisa ter eficácia e legitimidade, e isso só se alcança com o efetivo conhecimento de todos de seu conteúdo por todos.

As mudanças foram tão polêmicas, continuou Maria Cristina Manella, que o Ministério Público recebeu mais de 200 representações sobre o tema, quando foram ajuizadas ações civis públicas para garantir a prorrogação do período de renovação dos contratos.

Ela também criticou a limitação do aumento das mensalidades das instituições de ensino ao Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), atualmente em 6,41%, pois não haveria amparo em qualquer ato normativo. Além disso, essa restrição está afetando “barbaramente” a possibilidade de renovação dos contratos. Maria Cristina ainda considerou absurda a restrição à operação do Fies a um sistema eletrônico/site que funciona precariamente. E a demora no anúncio da prorrogação do prazo para o aditamento dos contratos já em vigor.

'Sonho'

Elizabeth Guedes, da Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup), defendeu a imposição de algumas barreiras para a obtenção do financiamento, além de fiscalização às instituições, mas afirmou ser preciso cuidado para não prejudicar quem mais precisa destes recursos: os mais pobres.

Ela disse haver casos de alunos de classe média alta financiando 100% cursos de medicina, por exemplo,  enquanto viaja para o exterior e troca de carro. Mas a maioria dos que recorrem ao Fies são pardos e negros (54,8%), que estudaram a maior parte da educação básica na escola pública, com renda familiar de menos de R$ 1.900 (82%), com pais que só tem até o ensino médio (80,8%). O que faz desses estudantes os primeiros da família a ter acesso à educação superior. "Mexer demais" com o Fies é destruir a possibilidade dessa parcela da população obter o sonho do ensino superior, disse a representante das universidades particulares.

Financiamento próprio

O “descaminho no Fies”, com a mudança de regras em cima da hora e a pouca transparência tem levado as instituições particulares a desistir do Fies, disse a presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep), Amábile Pacios. As escolas buscam fundos próprios para financiar o estudante, em parceria com instituições financeiras.

— Vamos sair do Fies, vamos reduzir ao mínimo o número de bolsas dentro das nossas instituições — disse.

Ela também criticou a postura do governo de culpar as faculdades privadas pela dificuldade de aditamento de contratos, sob o argumento de que as instituições que teriam aumentado as mensalidades acima do permitido. Amábile Pacios afirmou que os reajustes não são "aleatórios", são regulados por lei e obedecem a uma planilha de custos, considerando aumento de impostos e outras tarifas e investimentos realizados pelas faculdades privadas.

Amábile disse que as instituições vão “buscar os direitos” dos alunos que fizeram vestibular em novembro, ainda sob as regras antigas, e que não conseguiram seus contratos pelo Fies.

Estudantes

Patrick Lima, diretor de relações institucionais da União Nacional dos Estudantes (UNE), criticou fortemente a retroatividade das medidas e afirmou que as novas regras só deveriam valer para os pedidos feitos após o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2015. Ele também disse ser necessário fiscalizar as atividades e a qualidade do ensino das instituições privadas.

Já Ricardo Holz, da Associação Brasileira dos Estudantes de Educação a Distância (ABE/EAD) criticou o governo por, durante a campanha, induzir os estudantes a pensar que haveria vagas para todos, que o Brasil precisava qualificar mão de obra, e depois restringir o acesso "sem qualquer transparência". Conforme Holz, os alunos não foram chamados a discutir as novas políticas e o governo deveria simplesmente admitir que não teria mais dinheiro para os financiamentos.

Na mesma linha, Julliene Cabral, do Movimento em Defesa do Fundo de Financiamento Estudantil, afirmou que o ensino superior é como uma "alforria" nesta época de “escravidão intelectual”, e que o governo deveria ter avisado com antecedência dos cortes, para que a população não contasse com o Fies para planejar seus estudos.

— O governo cometeu um grave erro, e as pessoas não podem arcar com ele. O governo tem que arcar. Se não houve a transparência necessária, não peça ao povo que entenda ou que aceite essa ou aquela medida — disse.

Nara Teixeira, da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino, qualificou de péssima a qualidade de ensino de grande número das universidades particulares e considerou absurda a existência de universidades privadas que eram até 100% bancadas com verbas do governo federal, já que só contava com alunos beneficiários do Fies ou de outros programas educacionais.

Lentidão

Antônio Corrêa Neto, diretor de gestão de fundos e benefícios do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), ligado ao Ministério da Educação, reconheceu problemas de lentidão e queda no sistema que permite a renovação dos contratos do Fies, mas prometeu melhorias.

— O sistema ficará mais ágil e todos vão conseguir aditar seus contratos — prometeu.

Ele culpou a procura simultânea, "bem acima da média", pela baixa performance da página eletrônica do Fies e as constantes quedas do sistema. Em 2014, no período de renovação, eram oito mil acessos simultâneos. Este ano foram 60 mil, justificou.

Entretanto, Correa Neto confirmou que não será possível a assinatura de novos contratos em 2015 e lembrou que o país atravessa um período de ajuste fiscal, com redução de recursos para o setor.

— Apesar dos investimentos do governo federal para a educação terem sido grandes nos últimos anos, não dá pra resolver 500 anos em 5 anos ou em 50 — lamentou, lembrando que enquanto houve recursos, o governo concedeu as bolsas.

Antônio fez um histórico do crescimento do Fies ao longo das últimas duas décadas, que saltou de 564 mil financiamentos durante todo o período de 1999 e 2008, quando a gestão era da Caixa Econômica — com juros altos, baixos períodos de carência e curtos prazos de pagamento —  para 732 mil somente em 2014. Novos preceitos como a não exigência de fiador para os mais carentes e a dilatação dos prazos de carência e pagamento foram responsáveis por tanta atratividade, disse. O Fies é cumpre o papel de democratizar o acesso à educação superior, frisou.

— Dos estudantes do Fies, 97% são das classes C, D e E, sendo a grande maioria D e E. E 91% tem renda per capita familiar de até dois salários mínimos — revelou.

Reembolso

O presidente da CCT, senador Cristovam Buarque (PDT-DF) afirmou que preparará um documento com os pontos levantados na audiência pública e que talvez sejam necessários novos encontros para detalhar a política de financiamento da educação superior. O senador defendeu investimentos e fortalecimento da educação de base. Cristovam também leu dezenas de mensagens de internautas que participaram por meio do e-cidadania, preocupados com o futuro do programa e com questões como a de se terão direito ao reembolso pelas matrículas feitas antes de o contrato do Fies ser rejeitado.

O senador Marcelo Crivella (PRB-RJ) criticou a postura de "demonizar" as universidades particulares pelos problemas do Fies. Para ele, dizer que elas são culpadas por terem aumentado as mensalidades não contribui para a solução dos problemas. O senador José Medeiros (PPS-MT) afirmou que o governo federal deveria admitir, de forma transparente, que não há mais recursos para bancar novos contratos do Fies.

Já Valdir Raupp (PMDB-RO) defendeu o programa de financiamento, disse que ele tem falhas pontuais e precisa de uma correção de rumos, mas que foi essencial para os brasileiros e que esses ajustes não devem prejudicar a população mais carente.

Incêndio em Santos

Antes da audiência pública, os parlamentares votaram requerimentos para a realização de audiência para discutir as consequências econômicas e sociais do incêndio que atingiu a empresa Ultra Cargo, localizada no terminal portuário de Santos (SP).

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)