“A matéria vai à Câmara dos Deputados...”: o bicameralismo — Rádio Senado
Legislativo - que poder é esse?

“A matéria vai à Câmara dos Deputados...”: o bicameralismo

O décimo e último episódio da primeira temporada do podcast “Legislativo – que poder é esse?” fala sobre o bicameralismo. O consultor do Senado Federal João Trindade Cavalcante Filho conversa com a jornalista Fernanda Nardelli sobre como se dão as discussões e votações das leis no Congresso Nacional, que conta com duas casas legislativas.

Encontre a transcrição do episódio aqui: https://cutt.ly/WEd92zA

Produção: Rádio Senado

14/10/2021, 06h00 - ATUALIZADO EM 31/08/2023, 14h42
Duração de áudio: 36:00
Arte: Hunald Vale

Transcrição
F: Olá, eu sou a Fernanda Nardelli, e este é o podcast Legislativo – “Que poder é esse?”. Uma produção da Rádio Senado. Estamos chegando ao final da primeira temporada do nosso podcast. Hoje, no décimo e último episódio, vamos falar sobre uma característica que, no Brasil, só o Congresso Nacional tem: o bicameralismo. Quais são os papéis da Câmara dos Deputados e do Senado Federal no processo legislativo? O professor e consultor do Senado João Trindade Cavalcante Filho nos explica. João, hoje a gente vai falar sobre o princípio do bicameralismo, né? A gente já falou de vários princípios do processo legislativo e agora a gente chega nessa questão bicameral, porque o nosso sistema tem o Senado e a Câmara, né? Vamos explicar um pouquinho como é que funciona isso? J: Pois é, Fernanda, isso daí é um princípio que é bem específico da esfera federal, né? Na esfera municipal, estadual e distrital você tem um legislativo que tem a estrutura unicameral, ou seja, que existe apenas uma casa legislativa. A Câmara Municipal, a Assembleia Legislativa, no caso do estado, e a Câmara Legislativa no caso do Distrito Federal. Mas na esfera federal, não. Na esfera federal é, seguindo a lógica que a maioria dos países que adotam a forma federativa segue, na federal a gente tem esse legislativo com estrutura bicameral, ou seja, com duas casas legislativas atuando: a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. Isso tem uma série de razões de ser que a gente pode também debater, mas isso significa na prática que uma lei, um projeto pra virar lei no direito brasileiro, ele tem que ter a concordância não apenas da Câmara dos Deputados, mas também tem que ter a concordância por parte do Senado Federal. Aí uma dessas casas vai fazer o papel que a gente chama de casa iniciadora, a casa que vai fazer o primeiro debate sobre o projeto de lei e a outra casa vai fazer o papel de casa revisora. No caso de aprovação do projeto vai fazer um segundo debate, uma segunda análise. É interessante notar também que esse bicameralismo no Brasil, ele tem algumas peculiaridades, algumas características. Uma delas, bem interessante, é o fato de que no Brasil não existe um papel fixo de caso iniciadora ou de casa revisora. Tanto a Câmara quanto o Senado alternam, na verdade, esses papéis de casa iniciadora e de casa revisora. Se você pega, por exemplo, na Alemanha, nem todos os projetos passam pelo equivalente ao nosso Senado. E também lá quando o Senado atua, ele vai atuar com o papel de casa revisional, de segunda casa sempre. No caso brasileiro, não. No caso brasileiro se tem esse papel podendo ser exercido ou pela Câmara ou pelo Senado Federal. Vai depender de quem é que está propondo aquele projeto, de quem é que está apresentando. O mais frequente, o mais comum, é que a Câmara desempenhe esse papel de casa iniciadora e ao Senado caiba o papel de casa revisora. Mas também acontece o contrário, também acontece de o Senado atuar caso a iniciadora e a Câmara atuar como casa revisora. (LOC): De autoria do senador Marcelo Castro, do MDB do Piauí, o texto seguirá para análise da Câmara dos Deputados. (LOC2): Quarta-feira, um projeto de lei que amplia de dois para três anos, o período máximo de estágio profissional enquanto durar a pandemia. O projeto segue para a Câmara dos Deputados. (LOC3): Surgiu após a divulgação de trechos de um julgamento de estupro em Santa Catarina, em que o advogado do réu usou termos desrespeitosos para descrever a suposta vítima. O projeto da Câmara também aumenta a pena para a coação no curso de processo que envolve crime contra a dignidade sexual. Essa proposta deverá ser votada brevemente pelo Senado. (LOC4): Deputados, o PL 1409 de 2020 chega ao Senado para fazer parte da lista de projetos em análise que tratam de medidas de combate ao novo coronavírus. F: O caso do Senado como casa iniciadora é somente quando um projeto é de iniciativa do de um senador, João? Assim, se for um projeto, por exemplo, de iniciativa do Presidente da República... J: Pois é. Na verdade é mais fácil a gente seguir essa linha de raciocínio que você propõe, mesmo. Para a gente quais são os casos em que o projeto começa pelo Senado, para entender, porque todos os demais vão começar pela Câmara dos Deputados. A gente tem três situações em que um projeto vai começar pelo Senado... vai ter no Senado Federal a sua casa iniciadora. O primeiro exemplo é como citou e é o caso mais frequente, que é de projeto de lei de autoria de senador. Então, o projeto de lei de autoria de um senador da República vai começar naturalmente a tramitar pelo Senado. Mas a gente também tem o caso de projeto de lei de autoria de comissão do Senado. Então um projeto de lei proposto por uma comissão do Senado Federal vai ter no Senado a sua casa iniciadora. E a gente ainda tem um outro exemplo, um terceiro exemplo possível de ser citado, que é o projeto de lei de autoria de Comissão Mista, porque projetos de lei de autoria de Comissão Mista, ou seja, comissão formada por deputados e senadores, ele vai começar alternadamente entre Câmara dos Deputados e Senado Federal. É uma questão bem interessante, quer dizer, quando se trata, então, de projeto de lei de autoria de uma Comissão Mista, aí ele vai começar alternadamente. Ou seja, se o último começou pela Câmara, o próximo começa pelo Senado Federal e assim, sucessivamente. E aí nesse caso nós temos a situação em que, ou há situações em que o projeto de lei vai começar pelo Senado Federal. Em todos os outros casos, em todos os demais casos, o projeto realmente vai começar a tramitar pela Câmara dos Deputados. Então, projeto de lei de autoria de Comissão da Câmara, projeto de lei de autoria de deputado, projeto de lei de autoria do Presidente da República, dos tribunais, do Procurador Geral da República, etc., sempre vão começar pela Câmara dos Deputados. Eu até estava procurando aqui... eu achei o artigo 142 do regimento comum do Congresso Nacional, que vai dizer “os projetos elaborados por Comissão Mista serão encaminhados alternadamente ao Senado e à Câmara dos Deputados”. Então é um caso interessante dessa alternância. Em termos de frequência, é muito mais frequente a Câmara exercer esse papel de casa iniciadora, que é uma coisa que se para uma PEC, por exemplo, para uma proposta de emenda constitucional não faz tanta diferença, para um projeto de lei ser casa iniciadora é algo de natureza decisiva. Então é muito importante verificar qual das casas vai exercer esse papel de casa iniciadora. F: Como é que é esse caminho do projeto, né? A casa iniciadora tem essa importância, né? Ela propõe o projeto, analisa primeiro, e aí quando esse projeto vai para a casa revisora... e se o a casa revisora mudar esse projeto? O que acontece? J: Nesse caso a gente tem que diferenciar sabe, Fernanda, e nossos ouvintes. A gente tem que diferenciar é a tramitação de um projeto de lei, seja de um projeto de lei ordinária ou de um projeto de lei complementar, com a tramitação de uma PEC e uma proposta de emenda constitucional, porque o projeto de lei segue a lógica do que a doutrina chama de bicameralismo mitigado. O que é uma coisa mitigada? É uma coisa relativizada, é uma coisa atenuada. Então, quer dizer, na tramitação de um projeto de lei, existe a necessidade de as duas casas concordarem com o projeto, porque se uma das duas casas disser não, se uma das duas casas rejeitar o projeto é imediatamente arquivado, mas elas não precisam concordar na íntegra, elas não precisam concordar como eu brinco, com cada vírgula do projeto. Por quê? A gente tem aqui cinco cenários. Primeiro cenário: o projeto foi votado na casa iniciadora e foi rejeitado... ele nem vai pra casa revisora, como eu brinco com os meus alunos, né? Se no casamento um dos noivos diz não, você não precisa ouvir o outro, né? Se alguém disser não, já era, já encerra a cerimônia por ali. Então, beleza. O segundo cenário é o caso em que a casa iniciadora aprova o projeto e ele segue para casa revisora e a casa revisora rejeita o projeto. De novo, se qualquer um disser não, o projeto é arquivado. No terceiro cenário, as duas casas aprovam o projeto na mesma versão. Então a casa iniciadora aprovou o projeto, foi para a casa revisora, que também aprovou o projeto sem mudanças substanciais, como a gente chama sem emendas de mérito, né? Só com emendas de redação, só com emendas que não afetam o conteúdo normativo do projeto. Bom, se as duas casas aprovaram o projeto na mesma versão, esse projeto é encaminhado para a próxima etapa, que é a etapa de sanção ou veto por parte do Presidente da República. Agora, a gente tem o cenário quatro e o cenário cinco, que vão responder exatamente essa sua dúvida. O que acontece quando o projeto é alterado na casa revisora? Quer dizer, no cenário quatro, o projeto foi aprovado pela casa iniciadora, foi para casa revisora, onde ele foi aprovado com emendas. Ele foi aprovado com modificações. O que vai acontecer? O projeto retorna para a casa iniciadora, mas atenção, ele volta para a casa iniciadora não é para que ela reanalise o projeto inteiro... é só para que ela reanalise as emendas feitas na casa revisora. Ela vai reanalisar apenas o que houve mudança, ela vai decidir dar a palavra final sobre as modificações que a casa revisora fez. E aí, qualquer que seja a decisão dela, da casa iniciadora, ela pode aceitar as emendas, ela pode rejeitar as emendas, são os cenários quatro e cinco, aí essa redação final dada pela casa iniciadora não volta mais para a casa revisora. Essa decisão final, essa final na casa iniciadora já segue para sanção ou veto do Presidente da República. E eu vou dar um exemplo para tentar concretizar mais isso daqui, mas o nosso ouvinte já percebe, Fernanda, que existe um bicameralismo. Quer dizer, se uma das casas disser não, o projeto é rejeitado, mas é um bicameralismo menos exigente, digamos assim, né? É um bicameralismo em que há uma certa superioridade da casa iniciadora. Inclusive o professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho, professor emérito da USP, ele chama isso também de um bicameralismo desigual, tem um bicameralismo em que as casas tem poder diferente em relação ao projeto de lei. E eu acho que um exemplo bem legal para gente entender é a lei de licitações, a lei 14133 de 1 de abril de 2021. Essa chamada nova lei de licitações foi de autoria de uma comissão do Senado, foi de autoria da Comissão Especial do Desenvolvimento Nacional. Sendo de autoria de comissão do Senado teve como caso iniciadora o Senado. O famoso PLS 559 de 2013. O Senado aprovou, isso foi à Câmara dos Deputados em 2017... neste exemplo, a Câmara exerceu o papel de casa revisora. A Câmara aprovou o projeto, mas aprovou o projeto na forma de um substitutivo. A gente já falou sobre substitutivo aqui em outros episódios do podcast, mas para rememorar, um substitutivo é uma nova versão do projeto. É uma emenda que visa a substituir aquele texto do projeto por novo texto global. O que aconteceu com esse projeto, aprovado na casa revisora com emendas, voltou para o Senado. Para o Senado, no papel de casa iniciadora dar a palavra final sobre a redação. Escolher se ficava com a sua redação original ou se ficava com a redação feita pela Câmara dos Deputados. Ou seja, a redação do substitutivo. E aí a o Senado acolheu quase que na íntegra o substitutivo feito pela Câmara e aí isso foi para a sanção ou o veto do Presidente da República. Acho que esse exemplo da lei 14133 vai ilustrar um pouco mais esse papel da casa iniciadora e da casa revisora quando se trata de projeto de lei ordinária, ou seja, nos casos do chamado bicameralismo mitigado relativizado ou desigual. F: Eu recuperei aqui, áudios da época em que o substitutivo que tratava da nova lei de licitações foi aprovado pelo Senado, em dezembro de 2020. O relator do texto, senador Antônio Anastasia, comemorou a conclusão da tramitação da proposta, que levou tantos anos para virar lei. (Anastasia): Felizmente chegamos ao final dessa longa novela, com a aprovação dessa nova lei de licitações de contratos administrativos muito mais moderna, mais dinâmica, mais desburocratizante, permitindo fórmulas alternativas para compras mais baratas, mas ao mesmo tempo, mais eficientes, e dando de fato possibilidades para que o poder público no Brasil tenha, ao mesmo tempo, mais segurança jurídica e ofereça mais à sociedade brasileira. F: A gente também vê uma situação, quando acompanha o dia a dia do congresso, em que o projeto está tramitando e há uma certa pressa para que ele seja sancionado, e assim, às vezes o projeto vem da Câmara para o Senado, e aí o Senado que quer mudar alguma coisa... e nas negociações, com acordos e tal, eles firmam um acordo de veto de algumas partes que o Senado não está concordando ali, para que o projeto seja logo enviado para sanção, e aí o Presidente da República corrija, entre aspas, esse projeto de acordo com o que o Senado quer, justamente para que o projeto não volte para a Câmara e não demore mais a tramitação. Você que está no dia a dia, isso é uma prática comum no congresso? J: É, é uma prática até eu diria, Fernanda, mais comum do que a gente gostaria, sabe? Porque assim, na teoria isso não deixa de ser um certo, vamos chamar assim, de um desvio do que seria esperado em relação ao bicameralismo. Quer dizer, você cria duas casas legislativas, entre outras coisas, para que em um acaso ela possa rever com calma, posso rever com mais atenção aquilo que foi feito pela casa iniciadora. Não é a única razão pra gente ter o bicameralismo, mas é uma das razões. Eu vou pegar aqui emprestado do professor Paulo Mon, um exemplo que ele dá, citando inclusive George Washington, que quando dos debates acerca da constituinte americana, ele chegou a dizer que você teria a elaboração, a adoção de uma casa revisora pra ter como se fosse o pires em relação a xícara. Quer dizer, você deixa lá aquilo dali pra aquilo esfriar um pouco, digamos assim, pra ter uma lei mais refletida, ter uma legislação mais refletida. Então, assim, às vezes a casa revisora que mais frequentemente é o Senado, quer tirar algumas coisas do projeto. Diz “olha, eu concordo com esse projeto, mas eu queria fazer emendas supressivas. Eu queria rejeitar, por exemplo, o artigo segundo, o artigo 8º e o artigo 19”. E aí, se fizer essas emendas supressivas, isso precisa voltar pra casa iniciadora, que o nosso exemplo seria a Câmara dos Deputados. O que as vezes faz o projeto demorar mais, etc. Então aí surge isso que você falou, chamado Acordo de Veto, que é o que? O Senado ou quem exerça o papel de casa revisora dizer “olha, eu vou aprovar esse projeto, mas eu vou aprovar, mas eu discordo dos artigos, vou chutar segundo, 8º e 14. Então eu aprovo esse projeto com o compromisso de que o Presidente da República vai vetar esses artigos, ou seja, seria quase que um atalho dentro do processo legislativo, né? Em vez de aquilo voltar para a casa iniciadora com a emenda supressiva e depois ir pra sanção ou veto você já leva direto pra sanção ou veto do presidente, com o acordo político costurado de que vão ser vetados aqueles dispositivos com os quais a casa revisora não concordava. Por que a gente diz que isso não é o ideal, embora aconteça muito, mas não é o ideal do ponto de vista do processo legislativo. Primeiro porque não deixa de ser uma gambiarra, né? Quer dizer, não é não é esse o papel. Se a casa revisora discorda de um determinado trecho, faça a emenda supressiva e volta aquilo para a casa iniciadora. Se a casa iniciadora tiver com muita pressa, tem mecanismos regimentais pra deliberar rápido sobre isso. E também é um problema aqui, que é um problema, digamos assim, de confiança, né? Você leva aquilo com compromisso de veto... tudo bem. Mas e se o Presidente da República quebrar o acordo? E se o Presidente da República sancionar aquilo? O que você faz com aquilo? Como é que você faz? Como é que a casa revisora vai dizer “não, mas eu aprovei, mas era uma aprovação com ressalvas”. Não existe isso no processo legislativo. A gente viu isso acontecer, Fernanda, inclusive com o chamado pacote anticrime. Veio o pacote anticrime de autoria do Poder Executivo, portanto, tendo como casa iniciadora a Câmara, a Câmara colocou algumas coisas ali dentro do pacote anticrime com as quais uma boa parte do Senado não concordava. E aí entrou em jogo essa história do acordo de veto: “mas não, não se preocupem que esses pontos aqui que a Câmara inseriu, o Presidente da República se compromete a vetar. Podem aprovar que o presidente vai vetar o artigo terceiro C, o artigo tal”. O que aconteceu? O presidente não vetou nada, nada desses pontos que haviam sido objetos de acordo. Sancionou, virou lei e aí como é que fica a casa revisora? Fica a ver navios. Então assim, isso é uma coisa que na prática acontece com bastante frequência, mas do ponto de vista da qualidade deliberativa, do papel da casa revisora, definitivamente não é o ideal, não é o recomendável, digamos assim. F: A gente está falando até agora dos projetos de lei, né? Os projetos de lei ordinária. Eu sempre fico fazendo essa reflexão, comparando com o dia a dia, né? Me veio aqui a questão das medidas provisórias, que têm um prazo pra que a tramitação seja concluída no congresso, né? Se não for concluída em um determinado tempo, aquela medida provisória deixa de valer. E aí a gente vê muito os senadores reclamando que as medidas provisórias chegam ao Senado já com esse prazo praticamente esgotado e que aí, o Senado estaria fazendo um papel de um mero carimbador de um texto sem discutir com profundidade e tal. Então eu queria que a gente falasse um pouquinho sobre essas diferenças, né? Você falou que o projeto de lei ordinária tem um uma lógica ali das casas revisoras, como é que funciona nesse caso ou em outros casos também? J: Pois é, Fernanda, nesse caso das medidas provisórias realmente a gente tem um problema concreto, porque nelas o Senado exerce um papel, aí sim um papel fixo, papel de casa revisora sempre. Porque como ela é de autoria do Presidente da República, a própria Constituição vai prever que ela começa a tramitar pela Câmara dos Deputados. E aí o que acontece às vezes? Como a MP, como você explicou, ela tem um prazo pra ser votada senão ela cai, senão ela é rejeitada, às vezes chega ao MP já no final do prazo para o Senado Federal analisar. E aí o Senado fica numa encruzilhada, porque se ele operar a MP, se ele fizer qualquer modificação, qualquer emenda, ela vai ter que voltar pra Câmara dos Deputados. E nessa volta à Câmara não vai dar tempo de votar aquelas modificações do Senado. Então o Senado muito frequentemente se vê obrigado na prática a escolher entre rejeitar a MP toda, deixar passar o prazo e “olha, desculpa, tem o fazer”, ou aprovar a MP do jeito que veio da Câmara, que também não é o que ele queria. E aí já se tentaram várias formas de solucionar essa questão... já chegou a haver um acordo de cavalheiros, de que o Senado não pautaria medidas provisórias que chegassem lá faltando menos de 10 dias pra escoar o prazo, mas isso funciona até a página três, né? Porque aí depois quando chega alguma MP muito relevante, o Senado se vê nessa situação de ter que aprovar a medida provisória. Também se tentou resolver isso por intermédio de uma PEC, a PEC 91 de 2019, que em vez de colocar um prazo geral à medida provisória, colocava alguns checkpoints, alguns prazos parciais pra cada casa ter que cumprir. Mas também essa PEC terminou que gerou uma disputa entre o Senado e a Câmara dos Deputados sobre a redação final e ela não foi promulgada. Então até hoje a gente tem este problema: o papel como casa revisora nas medidas provisórias fica fortemente prejudicado por essa questão do prazo realmente. F: Quem acompanha as notícias sobre os trabalhos no Senado Federal certamente já ouviu discussões sobre o prazo apertado para votação das medidas provisórias. Em 2020, quando o governo editou várias MPs para enfrentar a pandemia do novo coronavírus, não foi diferente. Vamos ouvir um trecho de uma reportagem da Rádio Senado sobre isso: (LOC): Senadores reclamam que as diversas medidas provisórias apresentadas pelo governo durante a pandemia estão chegando para análise dos senadores com prazo apertado. Se a Câmara levou, por exemplo, 118 dias para votar a proposta, resta ao Senado apenas dois para fazer a sua votação. O senador Marcos Rogério, do Democratas de Rondônia, lamenta o fato. (Marcos Rogério): Todos sabem justamente do cenário em que se encontra, por mais justa que seja a argumentação, é do estrangulamento que estamos enfrentando com relação à prazo. A medida provisória vem ao Senado Federal já sem prazo para inovação legislativa sem que ocorra o prejuízo da caducidade da medida. (LOC): Opinião compartilhada pelo senador Veneziano Vital do Rêgo, do PSB da Paraíba. (Veneziano): Nós estamos nesses últimos meses com situações recorrentes. E aí fica até meio que, o totalmente enfadonho quando a gente fala sobre discutir medidas provisórias estando nos seus momentos últimos de apreciação, o que nos leva a uma situação indesejável. Ou se vota favoravelmente a mesma, perdendo de vista aquilo que é nosso dever de aperfeiçoá-la, de aprimorá-la, de melhorá-la ou então estaremos vendo-a caducar com outros prejuízos também. F: Tem algum outro tipo de proposição legislativa que tenha um uma tramitação diferente? J: Nós temos o caso das PECs, né, das Propostas de Emendas à Constituição, que seguem um bicameralismo um pouco diferente, o que a gente chama de bicameralismo puro. Na verdade PEC e Projeto de Decreto Legislativo, que são aprovados por ambas as casas. E aí na PEC a gente tem realmente um bicameralismo mais exigente, em que as duas casas têm que concordar na íntegra sobre o texto aprovado. Quando se trata de uma PEC, não há superioridade da casa iniciadora, não há essa história de que a casa iniciadora vai dar a palavra final sobre a redação em caso de emendas. No caso da PEC, a gente brinca dizendo que na prática é o regime de tramitação pingue-pongue, né? Em que a PEC fica indo e voltando entre as duas casas do Congresso Nacional até que se chegue a uma redação aprovada em ambas as casas, quer dizer, até que se chegue a uma redação de consenso. Até por isso mesmo, por conta dessa exigência maior de bicameralismo quando se trata de uma proposta de emenda à Constituição, é que se criou algo que alguns ouvintes já devem ter ouvido falar, que é a PEC paralela... é um regime de você fazer quebrar a PEC em dois pedaços. Quando há concordância sobre um pedaço da PEC e discordância acerca de outro aspecto dela, você quebra aquela PEC em duas partes, aprova aquela parte que as duas casas concordam, e aquilo em que há discordância volta pra outra casa pra ficar no pingue-pongue. Então realmente, esse trâmite que a gente falou em que a casa iniciadora tem uma certa superioridade, o trâmite do bicameralismo mitigado vale para os projetos de Lei Ordinária e de Lei Complementar, e também para a Medida Provisória. Mas quando se trata de PEC, aí não, aí se tem essa dinâmica diferenciada, esse regime de tramitação pingue-pongue, esse regime do bicameralismo puro. F: Na prática, quando acontece esse pingue-pongue, se esse pingue-pongue não tiver fim, aí a proposta simplesmente não é aprovada? Continua passando e de repente fica parada em uma das casas sem tramitar? J: Isso, exatamente. Ela fica tramitando até que se chegue em uma redação de consenso, sabe? Ela vai ficar realmente, assim, em um pingue-pongue eterno até que se chegue numa redação em que ambas as casas concordem. Isso acontece muito com reformas de previdência, né? Que geralmente são matérias muito extensas e muito complexas... é difícil você chegar numa redação consensual entre as duas casas. Aí você teve, por exemplo, o caso da reforma da previdência do primeiro governo Lula, que resultou na Emenda Constitucional 41 de 2003... a parte incontroversa, a parte de concordância. E aí o restante ficou neste pingue-pongue. A PEC paralela ficou nesse pingue-pongue e só virou a emenda constitucional em 2005, dois anos depois, é a Emenda 47. E há casos em que essa parte controvertida simplesmente não há concordância e aquilo não é aprovado nunca. Aquilo ali termina sendo, tendo por destino alguma gaveta do Congresso Nacional. São digamos assim, destinos possíveis pra essa parte em que há controvérsia. Até porque a gente está falando de uma coisa bem séria, né? A gente está falando de mexer no próprio texto da Constituição, então é como se dissesse “ó, só vai alterar o texto da Constituição se houver concordância de ambas as casas sobre esse conteúdo". F: É... o quórum para aprovar já é alto, já exige dois turnos, né? E ainda tem essa proteção, vamos dizer assim. J: Exatamente, faz parte desse de proteções para tornar mais dificultosa a alteração da Constituição. F: O João citou a reforma da Previdência do governo Lula, que teve uma PEC paralela aprovada dois anos depois. Essa solução de aprovar uma parte da proposta e deixar questões polêmicas para um texto paralelo também foi usada na reforma previdenciária do governo Bolsonaro, em 2019. Só que, nesse caso, a PEC paralela foi aprovada no Senado, mas ainda não foi votada pela Câmara dos Deputados. Eu resgatei uma reportagem da época em que a proposta da reforma da Previdência nem tinha chegado ao Senado, mas os senadores já discutiam a ideia de fazer uma PEC paralela pra incluir pontos que ainda não eram consenso, como a mudança das regras para estados e municípios. (LOC): O senador Roberto Rocha, do PSDB do Maranhão, sugeriu que o Senado aprove o texto da forma como vier da Câmara e aprove outra proposta, uma espécie de PEC paralela, para incluir estados e municípios. (Roberto Rocha): Se alterar, devolver para a Câmara lá pra novembro, dezembro, significa que não aprova esse ano. O melhor caminho, de fato, é fazer uma PEC paralela, que já tem precedentes. A gente promulga aquela que vem da Câmara, altera e faz o texto que tem que ser feito. F: Não, a gente falou, tá falando aqui sobre o processo legislativo, sobre esse sistema, esse bicameralismo... vamos falar rapidinho aqui as diferenças entre as duas casas, né? A Câmara e o Senado... a diferença, até, das eleições dessas casas, né? O número de parlamentares, né... vamos dar uma pincelada aqui sobre isso? J: Vamos sim, até porque aqui mereceria um podcast e um episódio à parte pra gente trabalhar com essas diferenças, mas assim, em linhas bem gerais, a gente tem uma diferença de tamanho das casas, né? O Senado é formado, hoje, por 81 senadores a Câmara por 513 deputados, mas para além disso há uma mudança de forma de composição, mesmo. Enquanto no Senado os membros são eleitos pelo sistema majoritário, ou seja, você disputa uma eleição em nome próprio e quem tiver mais votos é eleito, na Câmara, não. Na Câmara a eleição se dá pelo chamado sistema proporcional, em que você distribui a quantidade de cadeiras, a quantidade de vagas proporcionalmente à força eleitoral de cada partido. Então é uma coisa mais coletiva e no Senado há uma eleição mais individual. Isso inclusive se reflete também na questão da forma de negociação, né? Na Câmara dos Deputados você negocia com liderança, você negocia em bloco... no Senado não. No Senado a negociação política é mais individual, você tem que ir geralmente negociando a alteração no texto, negociando a aprovação do texto individualmente. E também há uma outra diferença, duas outras diferenças que eu citaria, a questão do mandato, né? O deputado fica por quatro anos, o Senador fica por oito anos, tem um mandato que é o dobro... tudo bem que em ambos os casos é possível haver reeleição, mas de toda sorte é manter um mandato que é o dobro de tempo dá um pouco mais de estabilidade pra composição do Senado. E também a questão de ter uma mudança gradativa, né? Na Câmara dos Deputados todos os 513 mandatos são renovados a cada quatro anos. No Senado, não. No Senado a Constituição determina uma mudança sempre alternada. Numa eleição você elege um terço dos senadores, na outra elege dois terços... sempre assim, alternadamente. Isso faz com que as mudanças de composição no Senado sejam bem mais brandas do que as mudanças de composição da Câmara dos Deputados. Até uma curiosidade pro ouvinte que gosta de arquitetura, urbanismo... as cúpulas do Congresso Nacional são viradas pra lados diferentes, né? Uma é pra cima e a outra é pra baixo por conta disso daí... a Câmara dos Deputados é aquela cúpula aberta, né? Virada pra cima pra captar anseios da sociedade, quer dizer, é uma casa mais responsiva aos anseios da sociedade. E o Senado é aquela cúpula virada pra baixo, exatamente pra ter uma deliberação mais interna, pra ter uma deliberação mais refletida sobre o tema. Então é bonito ver como esses papéis de cada casa, para o qual cada casa foi pensada, se refletem nessa questão arquitetônica. Além do que a Câmara é conhecida como a Casa do Povo, né? A casa que representa a população. Enquanto que o Senado é mais uma casa que representa os estados da Federação. Isso faz até com que o número de deputados por estado varie, mas o número de senadores por estado seja igual. Então realmente são dois mundos bem diversos. Eu sempre brinco com o pessoal que tem muita gente que confunde Senado e Câmera, né? Tipo Chitãozinho e Xororó, né? Mas no caso, quem vive isso daí sabe que são casas com dinâmicas bastante diferentes. F: Exatamente, é fascinante conhecer esse universo. Como a gente tá aqui, hoje, encerrando a nossa primeira temporada, João, eu vou considerar que isso daí foi um aperitivo pra quem sabe, uma segunda temporada aí do nosso podcast. J: Opa perfeito. Já entendi isso também como um convite que já estará plenamente aceito, então, espero que dê certo pra gente ter uma segunda temporada e agradeço demais o convite da Rádio Senado, a sua mediação e claro, aos nossos ouvintes que estão aí acompanhando esse podcast que nos deu tanto prazer ao produzir. F: Nós é que agradecemos. Foi fantástico. Aprendemos bastante por aqui também. E assim, a gente encerra a primeira temporada do nosso podcast. Ao longo de 10 episódios, o professor e consultor do Senado João Trindade Cavalcante Filho falou sobre os princípios do processo legislativo. Se você ouviu todas as nossas conversas, já tem uma boa ideia de qual é o papel do Poder Legislativo, como é o trabalho dos parlamentares e como é o caminho para um projeto se transformar em lei. O podcast Legislativo – “Que poder é esse?” é uma produção da Rádio Senado, com sonorização de André Menezes e pós-produção de Luana Corrêa. No episódio de hoje, usamos trechos de reportagens da Rádio Senado. Eu sou a Fernanda Nardelli, espero que você tenha gostado da nossa primeira temporada e que a gente ainda se encontre em outros podcasts.

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