Há 70 anos, chegava ao fim o período de quase uma década em que o Senado esteve banido do cenário político brasileiro. Os senadores finalmente puderam voltar aos gabinetes, às comissões e às bancadas do Palácio Monroe,  no centro do Rio, na tarde de 23 de setembro de 1946.

Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que as palavras que quebraram o silêncio do Monroe foram pronunciadas por Nereu Ramos, o presidente da Casa:

— Senhores senadores, ao instalar a sessão do Senado da República, quero congratular-me com todos os seus membros pelo advento da nova fase de nossa vida democrática. A Constituição que acabamos de entregar ao país restituiu ao Senado sua antiga dignidade.

O golpe de morte contra o Senado foi dado pelo presidente Getúlio Vargas em 1937, com a imposição da ditadura do Estado Novo. A Câmara dos Deputados também foi varrida.

Getúlio caiu em outubro de 1945, mas as duas Casas não voltaram de imediato. Os senadores e os deputados eleitos na fase democrática trabalharam de fevereiro a setembro de 1946 na elaboração da nova Constituição. Cumprida a missão, a Assembleia Constituinte se dissolveu, permitindo o ressurgimento, após nove anos fechados, do Senado e da Câmara.

Numa das primeiras sessões do Palácio Monroe, o senador Plínio Pompeu (UDN-CE) chamou os oito anos do Estado Novo de “vergonhoso e longo período ditatorial”. O senador Hamilton Nogueira (UDN-DF) afirmou que a democracia triunfara graças ao povo, que se aliara aos militares em 1945 para “reprimir e renegar para sempre o ignominioso Estado Novo”.

O fechamento do Senado e da Câmara teve ares de guerra. Na manhã de 10 de novembro de 1937, dezenas de policiais a cavalo e armados cercaram o Monroe e o Palácio Tiradentes, a sede dos deputados. O Brasil engolia uma nova Constituição, de perfil autoritário, redigida às escondidas no Palácio do Catete nos meses anteriores.

Limusines

Eliminado o Congresso Nacional, o chefe do Poder Executivo usurpou as funções do Poder Legislativo e se arrogou a prerrogativa de assinar decretos-leis. As assembleias legislativas e as câmaras municipais também foram extintas. Getúlio ganhou poder para nomear governadores e prefeitos. O povo perdeu o direito de votar e a Justiça Eleitoral deixou de existir. Os partidos logo desapareceriam e os adversários seriam presos e torturados. O presidente, em suma, se converteu em ditador.

A dissolução do Congresso não enfrentou resistência nem sequer de senadores e deputados. Eles, pelo contrário, aplaudiram. Getúlio tinha o costume de receber grupos de parlamentares toda sexta-feira à tarde. Mesmo como ditador, ele abriu seu gabinete uma vez, na sexta após o golpe, para se despedir dos ex-senadores e dos ex-deputados.

— Creio na Constituição outorgada porque estou convencido de que agora o Brasil despertou ante o mundo das realidades — afirmou o ex-senador Pacheco de Oliveira (PSD-BA) a O Jornal.

A imprensa noticiou que eram “bem poucos os projetos de alta relevância a depender do voto dos senadores” e deu destaque à economia de dinheiro “verificada em favor dos cofres públicos” com o fim do Senado, da Câmara e da Justiça Eleitoral.

Outra “boa notícia” foi a remoção das grades de ferro do Senado. Segundo os jornais, o jardim do Monroe deixou de “guardar lugar para o estacionamento das limusines dos senhores senadores” e se transformou num agradável “ponto de recreio” do carioca.

Nos oito anos do Estado Novo, o Palácio Monroe serviu de sede para o Ministério da Justiça. No ano entre a queda da ditadura e a reabertura do Senado, abrigou a Justiça Eleitoral.

Ameaça comunista

Aquele não foi o primeiro golpe de Getúlio. Ele chegara ao poder em 1930, após derrubar Washington Luís e enterrar a República do Café com Leite. Também nessa ocasião o Senado e a Câmara foram fechados. Com poderes de ditador, Getúlio pôde dar início a seu ambicioso projeto de modernização do Brasil. Seu objetivo foi tirar o poder das oligarquias agrárias estaduais, que, para ele, atravancavam o progresso do Brasil, e transferi-lo todo para o governo federal, que impulsionaria a urbanização e a industrialização.

Pressionado pela Revolução Constitucionalista de 1932, Getúlio se viu forçado a reabrir o Congresso e patrocinar a elaboração da Constituição liberal de 1934. O poder presidencial passou a se submeter a uma série de limites, prejudicando os planos do mandatário. O golpe ganhou urgência quando, diante dos candidatos da eleição presidencial de 1938 já na rua pedindo votos, Getúlio viu que precisaria agir rápido para não deixar o Catete.

O pretexto foi a descoberta do Plano Cohen, uma conspiração dos comunistas para tomar o poder. Como o país já vinha do susto da fracassada Intentona Comunista, de 1935, Getúlio não teve dificuldade para convencer os brasileiros de que ele só conseguiria salvar a nação da nova ameaça vermelha se ganhasse poderes ilimitados. Mais tarde, descobriu-se que o Plano Cohen fora inventado.

— A imprensa sofreu censura no Estado Novo, mas apenas a partir da criação do Departamento de Imprensa e Propaganda, [DIP] em 1939. O apoio que os jornais deram ao golpe em 1937 foi espontâneo. Assim como boa parte da sociedade, eles foram levados a crer que era urgente centralizar o poder — explica o historiador Paulo Sérgio da Silva, autor do livro A Constituição Brasileira de 10 de Novembro de 1937 (Editora Unesp).

Sem o Congresso, Getúlio instituiu o salário mínimo, pôs em vigor o Código Penal e a Consolidação das Leis do Trabalho, criou a Aeronáutica e a Justiça do Trabalho e fundou a Vale e a Companhia Siderúrgica Nacional.

— Ao contrário de Salazar, que conduziu um regime conservador e imobilista em Portugal, Getúlio liderou uma ditadura realizadora e desenvolvimentista — compara o historiador Boris Fausto, autor de História do Brasil (Editora Unesp). — Mas temos que nos perguntar: será que não conseguiríamos fazer todos aqueles avanços estando numa democracia, com plena liberdade, sem violência e com respeito à imprensa, aos intelectuais e ao Congresso?

Por ironia, o Senado recém-aberto acolheu aquele que fora seu carrasco. Semanas após ser deposto, na eleição de dezembro de 1945, Getúlio obteve uma vitória consagradora: sete estados o elegeram deputado e dois o elegeram senador. A lei permitia aos políticos concorrer por estados e partidos diferentes. As vitórias se dividiram entre o PSD e o PTB, partidos que ele criara no ocaso do Estado Novo. Foi empossado senador pelo PSD gaúcho.

Nos braços do povo

O Arquivo do Senado guarda o primeiro discurso proferido por Getúlio no Monroe, em dezembro de 1946. Nele, o ex-ditador fez uma defesa enfática do Estado Novo. Ignorando os apartes provocadores da oposição, enumerou os objetivos do extinto regime:

— Primeiro: defender o Brasil. Segundo: levar a termo um programa administrativo de grande envergadura. Terceiro: ampliar o desenvolvimento e a aplicação da justiça social em benefício do trabalhador.

O público das galerias foi ao delírio. Os senadores do PSD e do PTB ergueram Getúlio nos ombros e o carregaram para a Cinelândia, como o vencedor de uma batalha. Acionando a campainha, o presidente do Senado gritou que aquela balbúrdia era um desrespeito à Casa. Os senadores da antivarguista UDN ficaram sem reação.

Foi uma cena premonitória. Em 1950, Getúlio Vargas seria conduzido de novo à Presidência da República — dessa vez, nos braços do povo.


Compartilhar: Facebook | Twitter | Telegram | Linkedin