"Venham a mim os que têm fome e sede de justiça": o princípio democrático — Rádio Senado
Legislativo - que poder é esse?

"Venham a mim os que têm fome e sede de justiça": o princípio democrático

O primeiro episódio do podcast “Legislativo – que poder é esse?” é sobre o princípio democrático no processo legislativo. O professor e consultor do Senado Federal João Trindade Cavalcante Filho fala sobre as formas de participação popular na elaboração das leis.

Encontre a transcrição do episódio aqui: https://cutt.ly/que-poder-e-esse-episodio-1

12/08/2021, 06h00 - ATUALIZADO EM 10/08/2021, 20h19
Duração de áudio: 34:56

Transcrição
Transcrição Episódio 1: – Venham a mim os que têm fome e sede de justiça”: o princípio democrático F: Olá, eu sou a Fernanda Nardelli e este é o primeiro episódio do podcast Legislativo – “Que poder é esse?”. Uma produção Rádio Senado. Nesta primeira temporada vamos falar sobre os princípios do processo legislativo. Com eles você vai conseguir entender um bocado sobre como se dão as discussões no Congresso Nacional e como são criados, votados e aprovados os projetos que, de uma forma ou de outra, têm impacto no nosso dia a dia. Para nos guiar nessa jornada, eu conto com a participação do professor e consultor legislativo do Senado Federal João Trindade Cavalcante Filho. O João está no Senado desde 2012 e atua na área de direito constitucional, administrativo, eleitoral e processo legislativo. É professor de direito, autor de vários livros, e agora está na podosfera para falar sobre o Legislativo e nos mostrar que poder é esse. Vamos começar, então, João. Essa temporada desse podcast é sobre os princípios do processo legislativo. Eu acho que a gente podia começar esse podcast explicando, né, o que são esses princípios do processo legislativo. A gente vai... a nossa proposta é explicar cada um deles, então, seria interessante a gente falar um pouquinho antes sobre o que são esses princípios. J: Pois é. Um princípio é, vamos dizer assim, uma diretriz. Além daquelas regras específicas que a gente tem, além dos detalhes que a gente tem, de procedimento, de quem pode apresentar uma tal proposta, de quem pode propor emendas em um projeto... além desses detalhes, a gente tem também no direito, no ordenamento jurídico, algumas normas, vamos dizer assim, mais genéricas, algumas normas mais abstratas, algumas diretrizes que vão ter que ser seguidas. E aí no caso aqui, a gente vai, nessa primeira temporada do nosso podcast, a gente vai analisar exatamente essas diretrizes gerais do processo legislativo, exatamente para o nosso ouvinte poder ter uma noção, uma visão panorâmica, sobre como é que funciona esse processo de elaboração das leis no direito brasileiro e aí, depois a gente poder entrar mais nos detalhes. Então realmente essa nossa primeira temporada delicada aos princípios é exatamente pra essa visão panorâmica sobre o processo legislativo e que vai dar uma ótima visão do todo, vai dar uma ótima visão do macro, de como é que funciona esse processo de elaboração das leis. F: E a gente conhecendo esses princípios, entendendo esses princípios, imagino que fique mais fácil de entender também, lá na frente, quando você for a uma regra mais específica, né, com certeza elas têm base nesses princípios. J: Perfeito, Fernanda. Exatamente essa questão. Toda regra, ela nasce de um princípio, entende?! Esse princípio pode estar explícito, pode estar escrito lá, ou pode ser uma coisa que a gente conclui. Pode ser uma coisa que a gente percebe, mas que não está escrito, como a gente fala. Não está positivado, não está explicitado ali. Mas realmente, toda regra tem uma razão de ser. Então, não existe nenhuma regra que está lá aleatoriamente. Se você for pegar, por exemplo, o regimento interno do Senado Federal, vem sendo editado e modificado lá desde mil oitocentos e vinte e seis. Então é óbvio que nenhuma regra está lá à toa. Nenhuma regra está lá impunemente, né. Toda regra está lá com uma razão de ser, por um problema concreto que surgiu e que se tentou colocar aquilo para normatizar as situações futuras. E aí essas regras a gente diz tecnicamente que elas concretizam os princípios, ou seja, ela traz para um caso concreto aquele princípio maior que existe. Então se a gente entende os princípios, a gente fica dispensado, geralmente, de decorar essas regras. A gente entende melhor o funcionamento do sistema, sabe... é como se eu pegasse, por exemplo, assim na jardinagem e dissesse: olha, você tem que regar aquela planta três vezes ao dia. Ou se eu disser “olha, isso aqui você tem que ter cuidado para deixar o solo sempre úmido”. Se eu digo para a pessoa ter cuidado para deixar o solo sempre úmido, ela não precisa se preocupar com quantas vezes ela vai regar aquilo, entende. Quanto mais a gente compreende esses princípios, menos a gente tem que se preocupar tanto com o detalhamento da regra e mais a gente vai entender a razão de ser daquela regra estar ali. F: Eu acho que é o segredo do aprendizado, né. J: Exatamente. F: O nosso primeiro princípio, que nós vamos conversar aqui no nosso podcast, é o princípio democrático. Eu queria que você falasse um pouquinho, assim... eu acho que todo mundo que já teve um contato com a Constituição Federal, né. No comecinho a constituição já traz para gente, né, todo poder emana do povo. Então vamos falar um pouquinho sobre esse princípio democrático? J: Vamos, sim. Olha só, o princípio democrático, ele é um princípio que rege todo o direito brasileiro, né. Toda a vida política do Brasil tem que ser pautada no respeito à democracia. Mas especificamente para o processo legislativo, para o processo de elaboração das leis, essa ideia de democracia, ela ganha especial peso, porque quando gente fala de democracia... e você muito bem situou o nosso ouvinte que quiser depois consultar o artigo primeiro, parágrafo único da constituição, que diz que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente nos termos da própria constituição. Mas quando a gente pega esse conteúdo do princípio democrático, a gente está falando de dois núcleos aqui: o princípio majoritário, ou seja, de que a maioria decide e que as decisões são tomadas de acordo com a vontade da maioria; mas também isso tem que ser combinado com o respeito aos direitos fundamentais das minorias. Então quer dizer, a democracia tal como a gente entende, ela é esse equilíbrio entre respeitar a vontade da maioria, mas também evitar que a maioria esmague a minoria. Quer dizer, nem pode uma minoria impor a sua vontade a uma maioria que discorde, mas também a maioria não pode, vamos dizer assim, esmagar essa minoria, por exemplo. Parece uma coisa bem abstrata, né, parece que a gente está falando uma coisa meio viajante, mas não, na verdade, a gente está falando de algo extremamente concreto. A gente está dizendo que, por exemplo, em uma assembleia de condomínio tem que ser respeitada a decisão da maioria dos condôminos, mas também não pode se juntar noventa por cento dos condôminos para expulsar indevidamente uma pessoa, entende. Então quer dizer, eu tenho que respeitar o princípio da maioria, o princípio majoritário, a vontade da maioria, mas também tenho que equilibrar isso com o respeito aos direitos básicos da minoria, para não tirar também a palavra da minoria. E como eu disse, é, esse é um princípio que informa todo o direito brasileiro, toda a vida política do Brasil. Mas em se tratando do processo de formação das leis, em se tratando do processo legislativo, aí esse princípio democrático, Fernanda, eu diria até que é a razão de ser do processo legislativo. Costumo brincar com os meus alunos, eu pergunto a eles: para que existe o processo legislativo? Aí o pessoal diz “ah, para fazer lei”. Eu digo “não, para fazer leis você não precisa de um processo legislativo. Você não precisa de um parlamento para fazer leis”. Pode parecer estranho eu estar dizendo isso em um podcast do Senado Federal, mas é... quer dizer, por exemplo, na ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, o congresso ficou o tempo todo fechado, de 1937 a 1945. E ainda assim foram produzidas leis, foram produzidos decretos leis. O código penal é dessa época, o código de processo penal é dessa época... então quer dizer, a gente não precisa do processo legislativo para fazer leis. A lei existe muito antes de ter sido criado o processo legislativo. Só que o processo legislativo ele existe para criar leis de uma forma democrática. Para criar leis que sejam a representação da vontade da maioria e não a representação da vontade unipessoal do rei, por exemplo. É por isso que o princípio democrático não só é um princípio importantíssimo, como eu diria que a própria razão de ser do processo legislativo. Por isso que a gente está começando aqui, o primeiro episódio da primeira temporada aqui do nosso podcast, exatamente por esse princípio. F: João, na constituição, é dito que o povo pode exercer, né, esse poder por meio dos representantes e diretamente. Vamos falar um pouquinho sobre isso, assim, quem são esses representantes, né, e como é que o povo pode exercer diretamente. Às vezes as pessoas não conhecem esses instrumentos para participar desse processo legislativo. J: É verdade. Bom, a primeira forma, a forma mais tradicional, digamos assim, é a participação do povo por intermédio dos seus representantes. Então, por exemplo, quando você vota em um deputado, quando você vota em um senador, em um vereador, em um deputado estadual, você vota para que ele represente a sua visão de mundo, a sua ideologia. Isso fica muito claro quando você pega, por exemplo, na Câmara dos Deputados, as várias bancadas que existem. Não só as bancadas dos partidos, mas as bancadas temáticas, né. A bancada evangélica, a bancada ambientalista, a bancada do agronegócio... então, quer dizer, aqui a bancada do funcionalismo público, a bancada da saúde. Aquele pessoal está ali representando a ideia de quem os elegeu, então ele está lá para demarcar posição, ele está lá para tentar impedir que sejam aprovadas determinadas leis ou conseguir que sejam aprovados outros tipos de lei. Então a gente tem essa primeira e mais clássica, mais tradicional forma de representação, que é a representação via eleição de parlamentares. A gente vai ter também outra forma aqui de participação, que é exatamente essa participação popular direta. É por isso, até, que a gente classifica a democracia brasileira como uma democracia semidireta. Nós temos essa representação indireta por meio de representantes, mas nós temos também essa participação popular direta na formação da vontade política. Só que isso é uma coisa mais eventual, é uma coisa mais pontual. Segundo o artigo 14 da Constituição Federal, eu cito aqui também os artigos, para quem quiser depois acompanhar, dar uma lida, concretizar um pouco o que a gente está falando... segundo o artigo 14 da constituição, são formas de participação popular direta: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. Então essas são formas de participação popular na vontade política. O plebiscito, que é uma consulta em caráter prévio. É uma consulta à população em caráter antecedente, quer dizer, antes de ser feita a lei... um exemplo que a gente pode citar que foi o plebiscito realizado, salvo engano, em 2011 sobre o desmembramento do estado do Pará. Havia uma proposta para criar o estado de Tapajós, ali no Pará... separar, tirar um pedaço do estado do Pará para virar o estado de Tapajós. E a constituição manda, no artigo 18, parágrafo terceiro, que nesse caso seja ouvida previamente a população diretamente interessada. E aí a população paraense foi consultada e rejeitou essa proposta. Essa proposta não foi adiante, porque em plebiscito, foi rejeitada pela população. F: Ela sendo rejeitada pela população, o parlamentar não pode nem apresentar, né? J: Isso, exato. Nesse caso, o plebiscito a gente diz que a resposta negativa do plebiscito vincula. Ou seja, o fato de o povo dizer não impede aquele projeto, aquela proposição, de se transformar em lei. No caso do projeto de criação de um estado, não chega nem a ser apresentado o projeto. Quer dizer, é sugerida a ideia, a população, se disser sim, aí vai a matéria para debates no Congresso Nacional. Se a população, como no caso do Pará, disser não, morreu por aí. Como eu brinco com os meus alunos: game over, acabou aí. A proposta, ela é imediatamente arquivada, não segue nem para deliberação do Congresso Nacional. Esse é um exemplo de plebiscito. F: Eu lembrei que também tivemos um plebiscito nacional em 1993, para que a população decidisse se o Brasil voltaria a ser uma monarquia ou se continuaria como república. O jingle da campanha pela monarquia era daquelas músicas que não saem da cabeça. J: Muito bem lembrado, Fernanda. A gente teve o plebiscito, realizado em 1993, cinco anos após a promulgação da constituição, para escolher forma de governo (monarquia ou república) e sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo). Outro plebiscito, né, porque você consulta a população para saber o que ela quer e dependendo do que ela quiser, você aí é que vai apresentar o projeto, a proposta de emenda à constituição... e aí ganhou deixar como estava, ganhou realmente manter a forma republicana de governo e o sistema presidencialista de governo. Mas esse é um ótimo exemplo, que é um exemplo de plebiscito em âmbito nacional, né. Outro que teve âmbito nacional, mas aí foi o referendo, foi o do estatuto do desarmamento... acho que algumas pessoas lembram. Se eu não me engano foi em 2005, por aí, que a gente teve o plebiscito... o referendo, desculpe, para ver se entraria em vigor um artigo do estatuto do desarmamento da lei 3826 de 2003, que proibia a comercialização de arma de fogo e munição em todo o Brasil. Quer dizer, era proibição absoluta de qualquer tipo de venda de arma de fogo no Brasil. Como se tratava de consultar a população em relação a uma lei já aprovada, para saber se a população concordava ou não, aí foi feito o referendo no Brasil. A diferença entre plebiscito e referendo é o momento da realização. Plebiscito antes, referendo depois que a lei está pronta. E aí nesse caso, a população brasileira, por uma maioria até mais confortável do que as pesquisas de opinião apontavam, rejeitou essa proibição absoluta, rejeitou essa proibição de comercialização de arma de fogo e munição no direito brasileiro. F: Uma reportagem da Rádio Senado lembrou o resultado dessa consulta popular: Você quer perder sua liberdade? Quer abrir mão de um direito seu? Você acha que a polícia tem condições de proteger e população? Você acha que o bandido vai ser desarmado? Então, dia 23, diga “não”. Defende seus direitos. Contra a proibição, vote, vote “não”. No dia 23 de outubro de 2005, a população respondeu “não” ao fim do comércio de armas de fogo e munições em todo o país. A votação teve um placar folgado: 63% dos votos, e aconteceu porque o estatuto do desarmamento, aprovado no final de 2003, previa uma consulta popular sobre esse disposto. J: Mas diretamente em relação, ao processo legislativo, o instituto da democracia semidireta mais importante é a iniciativa popular. O que é essa iniciativa popular... é o poder do povo, poder e uma parcela dos cidadãos, de propor projetos de lei ao legislativo. O poder do povo de pautar o processo legislativo, de solicitar do poder legislativo, que delibere sobre um determinado tema. Que aprecie um determinado projeto de lei. Quer dizer, é realmente o exercício do poder da iniciativa, o exercício do poder da propositura, por iniciativa de uma parcela da população. É uma coisa que é muito exercitado em outros países, principalmente na Áustria, Itália e Suíça... no Brasil, ainda tem na esfera federal uma baixíssima utilização pelo fato de que o número de assinaturas exigido é um número muito alto, mas está lá previsto na constituição. Aliás, uma coisa que pouca gente lembra, é que a nossa constituição prevê a iniciativa popular de leis, a possibilidade de o povo propor projetos de lei em todas as esferas da federação. Então existe a possibilidade de o povo propor um projeto de lei federal, está lá no artigo 61, parágrafo segundo da constituição... que existe a possibilidade de o povo propor um projeto de lei estadual, apresentado perante assembleia legislativa, que segundo as regras da constituição de cada estado, está lá no artigo 27, parágrafo 4º da Constituição Federal. E ainda tem a possibilidade de 5% do eleitorado municipal se reunir, subscrever um projeto de lei para apresentá-lo à Câmara Municipal. Isso está lá no artigo 29, inciso 13 da Constituição Federal. Então assim, são algumas possibilidades de participação popular direta na formação da vontade política F: No caso da esfera federal, como você falou, a pessoa pode pensar assim “ah, então quer dizer que eu posso apresentar um projeto de lei, né. Eu posso protocolar lá no Congresso Nacional e a minha lei vai começar a tramitar”. Não, a constituição determina que seja um percentual do eleitorado e que também esteja distribuído nacionalmente isso, não é, João? Como é que é, quais são os critérios para essa apresentação de uma proposta de iniciativa popular. J: Pois é. Em se tratando da esfera federal e de apresentar um projeto de lei federal ao Congresso Nacional, o artigo 61, parágrafo segundo da constituição coloca três condições. Você tem que primeiro, recolher assinaturas que equivalham a 1% do eleitorado nacional. O que já é gente para... dedéu. É gente para você não botar defeito na quantidade de assinaturas. É... estima-se que hoje a gente tenha no Brasil 120 milhões de eleitores. A gente está falando de 1,2 milhão de assinaturas. Essas assinaturas têm que ser distribuídas em pelo menos cinco estados, quer dizer, você não pode recolhe-las todas em um estado só. E além disso, elas têm que equivaler a 0,3% do eleitorado de cada estado. Então por exemplo, se você recolher assinaturas no estado de São Paulo, o número de assinaturas em São Paulo tem que dar 0,3% do eleitorado do estado de São Paulo. Então são três condições cumulativas tão difíceis, tão exigentes, Fernanda, que levaram uma grande autoridade em matéria de processo legislativo no Brasil, professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho, professor emérito da USP, a dizer no seu livro do processo legislativo que isso se trata de um instituto decorativo, que é quase um faz de conta. Realmente se você for olhar em outros países, por exemplo, na Áustria, você tem 50 mil pessoas se juntando, podendo propor um projeto de lei. Tudo bem que 50 mil pessoas na Áustria é uma parcela relevante da população. Mas se você for comparar, por exemplo, 50 mil pessoas na Áustria ser 1,2 milhão de pessoas no Brasil, aparentemente nós temos aqui uma desproporção. Eu não vou dizer driblar, mas assim, para fazer frente a essa situação, os órgãos legislativos, tanto a Câmara dos Deputados quanto o Senado Federal, instituíram, fizeram um mecanismo bem interessante de chamar a população, que são as comissões de legislação participativa. Na Câmara você tem a CLP, a Comissão de Legislação Participativa, e no Senado Federal você tem a CDH, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa. Essas comissões, elas podem, inclusive, receber sugestões colhidas com um número bem menor de assinaturas, depende do regimento interno de cada casa. Sugestões que, se encampadas pela comissão, passam a constituir um projeto de lei, não de projeto de lei de iniciativa popular, que precisaria dessas milhões de assinaturas. Mas um projeto de lei de autoria da comissão. Olha, quem tiver alguma ideia de um projeto de lei, mande para cá, que a gente analisa. Se a gente achar que uma boa ideia, a gente pega um atalho. A gente pega e apresenta esse projeto, essa sugestão, virando um projeto de lei de autoria da comissão. No site inclusive, do Senado, quem quiser pode apresentar uma ideia legislativa, e aí realmente é individual mesmo... se essa ideia atingir o número mínimo de apoios, ela é apresentada na forma de sugestão para ser analisada pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa. F: Essa ideia legislativa fica ali, disponível na internet, e esse apoio pode vir de todo o país, ou se tem também uma exigência, como no caso de uma lei de iniciativa popular... de ser distribuído, de ter pelo menos cinco estados, né. De ter gente de cinco estados, ou no caso das sugestões legislativas, isso não importa. J: Não, no caso exatamente de sugestões legislativas, isso daí não é exigido. São exigidas apenas as questões regimentais, mesmo. Apenas questões de detalhamento de um número mínimo de apoios, entendeu. Esse número mínimo de apoios é um apoio feito pela internet, mesmo, uma coisa bem menos formal, exatamente porque o projeto, nesse caso, não vai ser apresentado juridicamente como um projeto de iniciativa popular. Ele vai ser apresentado se a sugestão foi encampada como um projeto de autoria da comissão. E as comissões no Brasil podem apresentar esses projetos de lei em nome próprio, então, exatamente assim, para pessoa é apresentar isso para comissão para pegar atalho, para própria comissão poder apresentar. Nesta semana, três sugestões alcançaram mais de 20 mil apoios no site e vão ser analisadas pela Comissão de Direitos Humanos... De autoria de Vanessa Negrini, do Distrito Federal, a sugestão foi enviada ao Senado pelo portal e-cidadania e obteve em apenas três dias, as 20 mil assinaturas de apoio necessárias... Sugestão apresentada no site e-cidadania, que prevê o aumento do fundo eleitoral, foi acolhida pelos senadores da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa. J: Enquanto a gente conversa, eu estou aqui no site do Senado, no programa e-cidadania, e tem já aqui na página inicial, quem quiser ir lá, na página inicial do site do Senado, tem “Proponha uma lei”. Aí vai para a página, aqui, de ideia legislativa. Você pode apresentar uma ideia e olha que diz aqui “ao receber 20 mil apoios online, a ideia se transformará em uma sugestão legislativa, que será, então, debatida pelos senadores. Então o caminho é esse... você apresenta uma ideia, se essa ideia chegar a 20 mil apoios, ela vira uma sugestão, e aí a CDH. Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa vai debater. Se ela concordar, ela apresenta isso como se fosse um projeto da comissão, mas aí você não precisa daqueles milhões de assinaturas. Tem até que bem interessante, uma questão de várias ideias legislativas que se transformaram em projetos de lei ou em propostas de emenda constitucional. Então é uma questão bem interessante, é um mecanismo bem importante de participação popular no processo legislativo, aqui no caso especificamente, da esfera federal. F: E a sugestão já chega com o peso dos apoios que ela recebe, né. Se é uma sugestão que chega com mais do que o número mínimo, né. J: Sim, já chega forte. Juridicamente, por exemplo, um projeto de lei de iniciativa popular, mesmo com esses milhões de assinaturas, é um projeto de lei como outro qualquer, que pode ser aprovado, rejeitado, aprovado com emendas... é um projeto como outro qualquer. Só que, politicamente falando, é claro que chega com peso diferente, né. Quando você vê lá o projeto com 1,3 milhão de assinaturas, a mesma coisa que com sugestão. Uma coisa é uma ideia que uma pessoa vai lá e coloca no site. Outra coisa é uma ideia que já teve, por exemplo, tem uma aqui que já teve 66 mil apoios, já chega com peso político bem mais relevante. F: Você falou dessa questão do apoio, das assinaturas... só lembrando aqui, foram poucos os projetos, as leis de iniciativa popular aprovadas no Brasil, né. Mas a gente fala muito da Lei da Ficha Limpa... ela foi realmente um projeto de iniciativa popular? J: Pois é, a Lei da Ficha Limpa, tecnicamente falando, ela não foi de iniciativa popular. A Lei da Ficha Limpa foi um caso bem interessante, porque ela tinha o número mínimo de assinaturas, ela tinha realmente o número mínimo constitucional exigido, só que, como ela ia, ainda, ela estava em cima da hora para ser aprovada para valer para as próximas eleições de 2010 isso, porque não sei se todos os ouvintes sabem ou se lembram, existe uma regra na constituição que vai dizer que a lei que altera regras de eleição, ela tem que ser aprovada até um ano antes da eleição, exatamente para pegar de surpresa. Então a lei da ficha limpa, como já estava em cima da hora, tanto que, aliás, não deu tempo de ser aplicada na eleição de 2010, ano em que ela foi aprovada... então como já estava em cima da hora, terminou que um grupo de deputados assumiu a autoria, como a gente fala. Quem for lá no site da Câmara dos Deputados e pesquisar pelo número da norma gerada, a Lei Complementar 135 de 2010, que é a Lei da Ficha Limpa, vai ver lá: autor, Antônio Carlos Biscaia e outros. Antônio Carlos Biscaia que foi exatamente esse deputado que assumiu a autoria. Então assim, é uma lei que dá para gente dizer que é uma lei de inspiração popular, mas que não chegou a ser um projeto de iniciativa popular, juridicamente falando. Hoje em dia aprovada no Brasil, a gente só tem uma lei de iniciativa popular que é a Lei do Sistema Financeiro de Habitação Popular, que é uma lei até bem pouco conhecida, mas que é uma lei que foi apresentada logo no comecinho da vigência da constituição e que depois se tornou lei e terminou sendo aprovada, virando lei efetivamente, tá. Mas é o único caso também de projeto de lei de iniciativa popular aprovado. Outros casos, que até houve o recolhimento de assinaturas, mas por conta dessa extrema dificuldade de fazer a conferência de um milhão e tantas assinaturas, o mais frequente é um deputado chegar dizendo “não, me dá aqui que eu assino e eu proponho esse negócio parar pegar um atalho e apresentar logo, sabe... F: Sim, porque aí é aquilo que a gente estava falando antes, né. Já é um projeto com forte apelo popular, né... e aí o representante ali do povo, né, aproveita... aproveita no bom sentido, né, de comprar essa ideia, né, de assumir essa ideia e dar celeridade ao processo. J: Exato, exatamente. Quer dizer, aí é um jogo de ganha-ganha, né, porque é bom para o parlamentar, porque ele está lá tendo visibilidade, encampando aquela ideia da população, e é muito bom também para população, até porque torna mais rápido o processo, né. Se você for depois conferir assinatura por assinatura, é uma coisa bem burocrática. O importante para quem quer aquela lei, né, o importante é que ela seja aprovada o mais rápido possível. Se vai ter o carimbo lá de que é de iniciativa popular ou não, isso é o menos relevante, tanto que, veja que a Lei da Ficha Limpa não é tecnicamente de iniciativa popular, mas todo mundo comenta como se fosse um exemplo de iniciativa popular realmente. F: E como é que funciona essa conferência das assinaturas, João? Assim, é... é uma loucura isso, né. Um milhão e tanto de assinaturas... como que é feita essa conferência? J: Pois é. Essa conferência é feita na Câmara dos Deputados, que é quem recebe o projeto, quem vai verificar o preenchimento das condições... e ela é feita até onde me consta, em convênio com os tribunais eleitorais. Como você quando assina, tem que colocar o título de eleitor, etc., ninguém vai verificar salvo alguma denúncia específica, verificar a gênese da assinatura, né. Se o “J” está parecido ou não, né... Não é uma conferência de cheque. Mas vão ser batidos esses dados “olha, o eleitor fulano que assinou aqui, o título eleitor, o número é esse?”, e aí, o que vai tendo alguma inconsistência vai sendo, vamos dizer assim, desconsiderado. Que é uma coisa que, mesmo com sistemas informatizados, etc., é uma coisa bem manual, é coisa bem artesanal, quase. A gente teve um caso interessante, que foi no caso do projeto de lei das 10 medidas contra a corrupção, que era uma campanha do Ministério Público para combater a corrupção. As famosas 10 medidas contra a corrupção, que na verdade eram 27... e que foram recolhidas assinaturas, e aí exatamente para não demorar, um grupo de deputados apresentou o projeto em nome próprio e aí, depois que foi votado na Câmara e a Câmara, vamos dizer assim, rejeitou várias das proposições, houve um mandato de segurança do Supremo, e o Supremo, o ministro Luiz Fux, mandou voltar a tramitação, mandou ré autuar o projeto não como iniciativa de deputado, mas como iniciativa popular, o que também de resta ia fazer um total de zero impacto na tramitação. E aí foi cumprida essa ordem e isso atrasou, se eu não me engano, um ano o projeto, exatamente que é o tempo de você levar e conferir as assinaturas. Então é uma coisa realmente, assim, que precisa até ser repensada, sabe. A gente poderia ter é, sei lá, 50 mil assinaturas... já é um número bem relevante. E até porque, de qualquer jeito projeto, o projeto mesmo sendo de iniciativa popular, ele vai ter que ser debatido, vai ter que passar pelas comissões, vai ter que passar pela Câmara, pelo Senado. Pode ser emendado, pode ser rejeitado, vai sofrer controle e constitucionalidade. Quer dizer, ele é um projeto como outro qualquer. Talvez a gente não precisasse ser tão exigente assim nos requisitos para o povo participar da formulação de ideias. F: Sim, para não ficar só pra inglês ver, como você falou... assim, de estar ali na constituição, mas é tão difícil de cumprir que o próprio parlamento adota, aí, outros meios, né. Essa iniciativa que você citou aí, do portal e-cidadania, né, de alguma forma, o povo poder participar de uma forma mais célere, né. J: Exatamente. Quer dizer, se a gente, a constituição é de 1988, a gente está aí com uns bons 30 e tantos anos de vigência dela, se a constituição nesses mais de 30 anos de vigência só teve dois projetos de iniciativa popular efetivamente apresentados na esfera federal, talvez esteja na hora de a gente flexibilizar essa regra, né. Deveria ter, na minha opinião, uma PEC, uma Proposta de Emenda Constitucional para tornar mais fáceis esses requisitos. F: Você ouviu o professor e consultor legislativo do Senado Federal João Trindade Cavalcante Filho, que falou hoje sobre o princípio democrático e a participação popular na elaboração das leis. No próximo episódio, vamos conversar a respeito do princípio do controle de constitucionalidade. O podcast Legislativo – “Que poder é esse?” é uma produção da Rádio Senado, com sonorização de André Menezes e Josevaldo Sousa. Hoje usamos trechos de reportagens da Rádio Senado, além do jingle “Vote no Rei”, da campanha pela monarquia no plebiscito de 1993. Eu sou a Fernanda Nardelli e espero você no próximo episódio.

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