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Novo coronavírus impõe batismo de fogo a governos e sistemas de saúde

Nelson Oliveira
Publicado em 28/4/2020

Apesar da perplexidade que varre o planeta desde o início de março, quando a covid-19 tornou-se uma emergência em quase todos os países, as autoridades de saúde já haviam sido alertadas em setembro do ano passado da possibilidade de uma pandemia por estudiosos reunidos em um programa de pesquisa da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos: o Índice Global de Segurança em Saúde, GHS Index, na sigla em Inglês.

Esse, entretanto, foi o alerta mais recente. Doze anos antes, o risco de epidemias provocadas por coronavírus do tipo SARS-CoV, semelhante à que atingiu a China em 2003, havia sido detectado em estudos científicos.

Já o risco de uma catástrofe global provocada por um vírus foi objeto de advertências posteriores, sendo a do então presidente dos Estados Unidos,  Barack Obama, em 2014, e a de Bill Gates, dono da Microsoft, em 2015, as mais badaladas.

Esses avisos, entretanto, não foram tomados com o grau de seriedade que mereciam, a não ser em correntes de público especializadas.

O vírus era uma hipótese, sim, mas a magnitude do contágio, seus efeitos no organismo humano e as consequências para os sistemas de saúde não se desenharam nem nos piores pesadelos de governantes, profissionais de saúde e cidadãos comuns. No Brasil, houve tempo e cabeça até para brincar o carnaval deste ano antes que o vírus desembarcasse de vez, vindo da Europa. Muita gente estava em viagens de turismo pelo mundo, de avião ou em idílicos cruzeiros. Quando a Itália começou a se configurar como um país em dificuldades, uma família brasileira confirmou a repórteres de TV que seguiria com seus planos de visitar o país, já que o pacote estava pago.

Poderá — e muito provavelmente haverá — um tempo em que apareça uma doença que seja transmissível pelo ar e que será muito mortífera. Uma nova estirpe de gripe, como a gripe espanhola, em cinco ou dez anos. Numa era de globalização, em que as pessoas conseguem atravessar o mundo num dia, é essencial prepararmo-nos para uma coisa que sabemos que vai acontecer. Para lidar com isso de forma eficaz, precisamos criar infraestruturas, a nível global, que nos permitam identificar rapidamente o problema, isolá-lo rapidamente e dar uma resposta rápida. Esses são bons investimentos, investimentos inteligentes.  — Barack Obama, em discurso no Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, em 2 de dezembro de 2014
Se algo vier a matar 10 milhões de pessoas nas próximas décadas, é mais provável que seja um vírus altamente infeccioso, mais do que uma guerra. Não mísseis, mas micróbios.  — Bill Gates, em palestra na Technology, Entertainment and Design (TED), empresa de disseminação de conhecimento em 3 de abril de 2015)

Os alertas em torno de uma pandemia, primeiramente expressos em artigos científicos publicados em 2007 por cientistas chineses na revista da Sociedade Norte-americana de Microbiologia, evoluíram para a sistematização em farta produção acadêmica e passaram a fundamentar a estruturação de bancos de dados para medir a capacidade de resposta de administrações que vão dos superpoderosos Estados Unidos e China às modestas Libéria e Serra Leoa.

 Sabe-se que os coronavírus sofrem recombinação genética, o que pode levar a novos genótipos e surtos. A presença de um grande reservatório de vírus do tipo Sars-CoV em morcegos-ferradura, juntamente com a cultura de comer mamíferos exóticos no sul da China, é uma bomba-relógio. A possibilidade de reemergência da SARS e outros vírus novos de animais ou laboratórios e, portanto, a necessidade de preparação não deve ser ignorada. Vincent ChengSusanna Lau, Patrick WooKwok Yung Yuen, no artigo “Coronavírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave como Agente de Infecção Emergente e Reemergente”, publicado na revista da sociedade Americana de Microbiologia, em 2007.

O Índice Global de Segurança em Saúde, elaborado pelo Centro de Segurança da Saúde da Johns Hopkins começou a se estruturar em 2017. É um pioneiro e abrangente levantamento junto a 195 países que se submetem ao Regulamento Sanitário Internacional (RSI), com o objetivo de estimular os governos e a iniciativa privada a melhorarem a capacidade internacional de resposta a surtos de doenças infecciosas que possam levar a epidemias e pandemias. 

“Como as doenças infecciosas não conhecem fronteiras, todos os países devem priorizar e exercer as capacidades necessárias para prevenir, detectar e responder rapidamente a emergências de saúde pública”, alertam os responsáveis pelo GHS em sua página. “Todo país também deve ser transparente sobre suas capacidades para garantir aos vizinhos que pode impedir que um surto se torne uma catástrofe internacional”. A tarefa se estende a líderes globais e organizações internacionais com “responsabilidade coletiva”.

Exército realiza ações de desinfecção no aeroporto de Brasília (foto: Leopoldo Silva/Agência Senado)

A ideia é que, ao se mirarem no espelho oferecido pelo GHS, países e organizações tenham uma medida do quanto fizeram e do quanto precisam fazer para não deixar que uma epidemia ganhe corpo em seus territórios e, também, para que não se alastre para outros países. O GHS inclui indicadores da capacidade de os países reduzirem o que os pesquisadores nomearam de Riscos Biológicos Catastróficos Globais (GCBRs, na sigla em inglês). São riscos biológicos de uma escala nunca vista antes, por causa da interconexão entre os países, o gigantismo da atividade humana, ao lado da devastação da natureza, da falta de ações adequadas no trato com animais selvagens e da manipulação intencional ou não de estruturas genéticas em laboratórios.

“Os GBRs podem causar danos graves à civilização humana em nível global, minando o potencial de longo prazo da civilização. Estes são eventos que poderiam acabar com os ganhos no desenvolvimento sustentável e saúde global devido ao seu potencial de causar instabilidade regional, conseqüências econômicas globais e ampla morbimortalidade”, alertava o relatório da Johns Hopkins de setembro do ano passado, três meses antes, portanto, da divulgação dos primeiros casos da covid-19 na China.

Não era uma predição, apesar do tom profético. Era o resultado de uma cuidadosa análise da situação mundial, mesmo que prejudicada pela inconsistência de dados enviados aos pesquisadores: “as consequências de tais eventos podem ser um desastre generalizado repentino, além da capacidade coletiva de governos nacionais e internacionais e do setor privado de controlá-la.

Tais eventos podem levar a um grande sofrimento e perda de vidas. O dano sustentado aos governos nacionais, relações internacionais, economias, estabilidade social ou segurança global pode exacerbar ainda mais o efeito mortalRelatório do GHS, setembro de 2019

O relatório divulgado pelo organismo em setembro de 2019 trazia, junto com esses avisos, uma avaliação pouco favorável do quanto cada Estado nacional, separadamente, e todos, em conjunto, estavam prontos para enfrentar uma pandemia: “os países não estão preparados para um evento biológico globalmente catastrófico, incluindo aqueles que poderiam ser causados ​​pela disseminação internacional de um patógeno novo ou emergente ou pela liberação deliberada ou acidental de um agente perigoso ou de engenharia ou organismo”.

De acordo com o relatório, a biossegurança, seja do ponto de vista sanitário, seja do ponto de vista do manejo científico em laboratórios, não é priorizada pelos governos quando têm de elaborar e executar políticas de segurança em saúde. Além disso, “as conexões entre os atores do setor de saúde e segurança na resposta a surtos são fracas”. Conforme os responsáveis pelo GHS, havia poucas evidências àquela altura de que a maioria dos países havia testado suas “capacidades de segurança em saúde ou demonstrado que elas funcionariam em uma crise”.

Cinco meses depois, com o novo coronavírus fazendo estragos em vários continentes, já não havia dúvida de que os países estavam “testando suas capacidades” em verdadeiros batismos de fogo. E era evidente que, no atacado, a avaliação dos membros do GHS coincidia com a realidade. Com base nas conclusões desses estudiosos, percebe-se uma ambiguidade de sentido na frase “ninguém estava preparado”, bastante repetida atualmente.

Na cidade italiana de Bolonha, bandeira do país em uma janela traz a inscrição "Tudo ficará bem" (foto: Pietro Luca Cassarino)
A segurança nacional da saúde é fundamentalmente fraca em todo o mundo. Nenhum país está totalmente preparado para epidemias ou pandemias, e todos os países têm lacunas importantes para resolver Relatório do GHS, setembro de 2019

Os principais achados dos pesquisadores, a partir das informações enviadas pelos países indicavam, entre outros aspectos, que:

  • A pontuação média geral do GHS totalizava 40.2 de uma possível pontuação de 100
  • 116 países de renda alta e média não pontuavam acima de 50
  • 92% dos países não mostravam evidências de exigir verificações de segurança para o pessoal com acesso a materiais ou toxinas biológicas perigosas
  • 85% não mostravam evidências de terem concluído, no ano anterior, um exercício de simulação do Regulamento Sanitário Internacional (RSI) com foco em ameaças biológicas com a Organização Mundial da Saúde (OMS)
  • Menos de 5% consideravam testar seu centro de operações de emergência pelo menos anualmente
  • 89% não demonstravam ter um sistema para prover atendimento médico durante uma emergência de saúde pública
  • Apenas 19% registravam pelo menos um epidemiologista de campo treinado por 200 mil pessoas

Diante desse quadro, os especialistas do GHS fizeram uma série de recomendações, que, infelizmente, os países só terão condições de atender depois de vencerem a emergência da pandemia atual. A primeira delas é um comprometimento com a necessidade de enfrentar os riscos à segurança da saúde, por meio de uma política própria, transparente e medida com regularidade, com publicação de resultados pelo menos uma vez a cada dois anos.

Outro esforço deve ser o de melhorar a coordenação, especialmente no que diz respeito aos vínculos entre as autoridades de segurança e saúde pública. “Os países devem testar suas capacidades de segurança sanitária e publicar análises pós-ação, pelo menos anualmente”, diz o documento, que contém também uma formulação para ações em nível multilateral: um novo fundo global de segurança sanitária e a expansão das verbas da Associação Internacional de Desenvolvimento (AID), vinculada ao Banco Mundial.

“O secretário-geral da Organização das Nações Unidas [ONU] deve convocar uma cúpula em nível de chefes de Estado até 2021 sobre ameaças biológicas, incluindo um foco no financiamento e resposta a emergências”, orientava o GHS, agregando outra responsabilidade à ONU: a designação de uma unidade permanente para eventos biológicos de alto potencial danoso. Do setor privado, pedia-se que investisse uma porcentagem de seus portfólios de desenvolvimento sustentável e segurança da saúde na área de biossegurança.

Reunião de gestores de saúde do Irã com representantes da OMS em Teerã (foto: Hossein Velayati)

Caso as recomendações dos especialistas venham a ser implementadas, o mundo será bem mais seguro. Mas não está claro quando esse cenário virá, e se virá, assim como não está clara a estratégia viável de reconstrução da economia abalada pelo novo coronavírus, algo que influenciará, aliás, a reestruturação dos investimentos em saúde.

Por enquanto, os países tentam, cada um à sua maneira, enfrentar a onda de contágio pelo vírus e dar atendimento médico aos infectados. E, em alguma medida, buscam avaliar no que erraram e no que acertaram.

Era, afinal, possível terem agido de maneira tecnicamente mais adequada? Nesse sentido, um dos fatos mais lembrados é a demora de alguns países em determinar medidas de isolamento mais duras. A Itália teria nessa hesitação um dos fatores do grande número de mortos pela covid-19, assim como os Estados Unidos, cujo governo teria sido alertado dos riscos da pandemia por relatório secreto pouco antes de ela irromper. Ambos miraram a possibilidade de saírem relativamente ilesos da crise sanitária sem afetar por demais a atividade econômica.

Muitos se referem àquele vídeo que circulava com o título #MilãoNãoPara. Era 27 de fevereiro, o vídeo estava explodindo nas redes, e todos o divulgaram, inclusive eu. Certo ou errado? Provavelmente errado. Ninguém ainda havia entendido a agressividade do vírus, e aquele era o espírito. Trabalho sete dias por semana para fazer minha parte, e aceito as críticas —  Giuseppe Sala, prefeito de Milão, em 27 de março

No Brasil, o dilema entre decretar o isolamento e manter atividades econômicas em funcionamento é uma das marcas da pandemia, especialmente por ter colocado em lados opostos o governo federal, contrário ao fechamento do comércio, os estados e os poderes Legislativo e Judiciário. Além do mais, o presidente Jair Bolsonaro em mais de uma ocasião divergiu publicamente do seu então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, médico ortopedista, e defendeu a livre circulação de pessoas.

As avaliações do GHS levaram o contexto governamental em conta em uma categoria chamada “riscos políticos e de segurança”, na qual o Brasil obteve nota 71,4, em contraste com a média mundial de 60,4. Ou seja, avaliação que o GHS tinha do ambiente político no Brasil relacionado ao combate a uma epidemia era relativamente boa. E a razão é que o país não estava em guerra ou guerra civil e não havia turbulências que perturbassem de forma significativa a própria administração pública. Aparentemente, as informações recebidas pelos pesquisadores não indicaram que outros problemas de natureza política poderiam afetar a condução da saúde pública.

No entendimento dos estudiosos, baixa confiança pública no governo afeta “a capacidade dos governos de retransmitirem mensagens eficazes durante crises biológicas”. Por essa razão, situações de conflito podem exacerbar epidemias e pandemias. Países em conflitos sérios, por exemplo, podem estar em maior risco de propagação descontrolada de doenças devido à maior probabilidade de seus sistemas de saúde serem fracos, com interrupções da rotina de atenção à saúde e de vacinação.

O caso do Brasil, no que se refere ao seu ambiente político mostra que muitas vezes a discrepância entre como os países se viam, o que informavam ao GHS e o que a realidade da pandemia demonstrou podem levar a questionamentos sobre o retrato que foi traçado pelo índice, mas o próprio relatório observa que trabalhou com dados providos pelos próprios países. E que as informações nem sempre pareceram as mais precisas, obrigando a equipe a checagens e rechecagens.

Conceitos

1. PREVENÇÃO: Prevenção do surgimento ou liberação de patógenos, incluindo aqueles que constituem um risco extraordinário à saúde pública, de acordo com a definição internacionalmente reconhecida de Emergência em Saúde de Interesse Internacional.

Os indicadores nesta categoria avaliam a resistência antimicrobiana, zoonótica, biossegurança, biossegurança, pesquisa e cultura de dupla utilização da ciência responsável e imunização.

2. DETECÇÃO E RELATÓRIOS: Detecção e notificação precoces de epidemias de possíveis preocupação internacional, que podem se espalhar além das fronteiras nacionais ou regionais.

Os indicadores nesta categoria avaliam sistemas de laboratório; vigilância e relatórios em tempo real; força de trabalho em epidemiologia; e integração de dados entre os setores de saúde humana, animal e ambiental.

3. RESPOSTA RÁPIDA: Resposta rápida e mitigação da propagação de uma epidemia.

Os indicadores nessa categoria avaliam a preparação para emergências e o planejamento de respostas, exercícios de planos de resposta, operação de resposta a emergências, vinculando autoridades de saúde e segurança públicas, comunicação de riscos, acesso à infraestrutura de comunicações e restrições de comércio e viagens.

4. SISTEMA DE SAÚDE: Sistema de saúde suficiente e robusto para tratar os doentes e proteger os profissionais de saúde.

Os indicadores nesta categoria avaliam a capacidade de saúde em clínicas, hospitais e centros de atendimento comunitário; contramedidas médicas e implantação de pessoal; acesso à saúde; comunicações com profissionais de saúde durante uma emergência de saúde pública; práticas de controle de infecção e disponibilidade de equipamento; e capacidade de testar e aprovar novas contramedidas.

5. CUMPRIMENTO DAS NORMAS INTERNACIONAIS: Compromissos para melhorar a capacidade nacional, planos de financiamento para suprir lacunas e aderência às normas globais.

Os indicadores nesta categoria avaliam relatórios de adequação a normas do Regulamento Sanitário Internacional (RSI) e redução de riscos de desastres; acordos transfronteiriços de resposta de emergência em saúde pública; compromissos internacionais; conclusão e publicação das avaliações no âmbito de vários acordos de monitoramento da saúde pública, inclusive pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA) e Organização dos Serviços Veterinários (PVS; financiamento; e compromisso com o compartilhamento de dados e amostras genéticas e biológicas.

6. AMBIENTE DE RISCO: Ambiente geral de risco e vulnerabilidade do país a ameaças biológicas.

Os indicadores nesta categoria avaliam o risco político e de segurança; resiliência socioeconômica; a adequação da infraestrutura; riscos ambientais; e vulnerabilidades de saúde pública que podem afetar a capacidade de um país prevenir, detectar ou responder a uma epidemia ou pandemia e aumentar a probabilidade de que a doença e surtos se espalharão pelas fronteiras nacionais.

      Informações completas estão disponíveis na metodologia GHS em www.ghsindex.org.

Mesmo elogiando a área de atenção à saúde no Brasil e o preparo do país na área epidemiológica, o senador e ex-ministro da Saúde Humberto Costa (PT-PE) classifica como “sofrível” a resposta do país à pandemia:

— Temos uma área de vigilância em saúde muito boa, com técnicos excelentes, com capacidade de identificar doenças e surtos com grande agilidade e eficiência. O problema é que o ex-presidente Michel Temer e o atual, Jair Bolsonaro, reduziram as verbas para o setor.

Costa também elogia o programa de vacinação brasileiro — “um dos melhores do mundo” — e os programas para combater doenças infecciosas, como a Aids.

O parlamentar do PT disse considerar o isolamento recomendado pela pasta à época do ministro Luiz Henrique Mandetta uma “medida importante”, embora “não tão precoce quanto deveria ter sido, mas mesmo assim não tão atrasada”. Especialmente porque conquistou a adesão da sociedade “pelo convencimento”. O senador, entretanto, considera que o enfrentamento à epidemia foi “um pouco lento”. E citou como exemplo a montagem de leitos de UTI.

No entender da senadora Zenaide Maia (Pros-RN), os efeitos da Emenda Constitucional que estabeleceu um teto de gastos orçamentários, limitando investimentos em áreas sociais (Emenda Constitucional 95, de 2016) não afetaram apenas a área da saúde, mas também a da ciência, o que está prejudicando enormemente o enfrentamento da crise. Quando o ex-presidente dos EUA, Barack Obama, discursou em 2014 no Instituto Nacional de Saúde, estava defendendo justamente verbas para o combate ao vírus ebola. Ele apresentou ali uma profissão de fé na ciência, contra “boatos e rumores”.

— O que a gente tem, e pouca gente tem no mundo, é o Sistema Único de Saúde (SUS), presente em todos os municípios, com equipes multidisciplinares, com a presença do agente de endemia, do agente de saúde, que visita todas as casas, médicos e enfermeiras. Temos equipe, mas não o suficiente para enfrentar uma pandemia. Precisamos incentivar, investir nesse sistema, porque só o sistema privado de saúde também não tem como resolver — adverte Zenaide, que vê como uma vantagem a não ser desperdiçada pelo Brasil o fato de o contágio ter começado aqui depois da Europa, o que ajudaria na preparação para o seu enfrentamento.

Humberto Costa e Zenaide Maia criticam corte de verbas para a saúde (fotos: Jefferson Rudy/Agência Senado e Edilson Rodrigues/Agência Senado)

Apenas em meados de abril, o Ministério da Saúde anunciou a criação de uma plataforma para acompanhar, em tempo real, a disponibilidade de leitos em unidades de terapia intensiva (UTIs) no país face à crise do novo coronavírus, monitorando e emitindo alertas para estados e municípios, levando em conta também com os dados sobre o total de infectados.

 Linha do tempo

1º de dezembro de 2019
Primeiro paciente apresenta sintomas do que seria a futura covid-19 em Wuhan, China

8 de janeiro
Cientistas na China anunciam a descoberta de um novo coronavírus.

9 de janeiro
A OMS confirma que o novo coronavírus foi isolado a partir de uma pessoa que havia sido hospitalizada.

9 de fevereiro
34 brasileiros residente na cidade chinesa de Wuhan, epicentro do novo coronavírus, são repatriados.

26 de fevereiro
Confirmado primeiro caso de coronavírus no Brasil.

28 de fevereiro
Ministério da Saúde lança campanha publicitária de prevenção ao coronavírus e inicia política de enfrentamento

11 de março
Mais de 118 mil casos de covid-19 são confirmados em 114 países, com 4.291 mortes. A OMS declara pandemia de coronavírus.

13 de março
Ministério da Saúde regulamenta critérios de isolamento e quarentena.

20 de março
Senado aprova reconhecimento de calamidade pública pedido pelo governo federal diante da pandemia de coronavírus.

24 de março
O presidente Jair Bolsonaro critica o pedido para que as pessoas fiquem em casa, contrariando especialistas e autoridades sanitárias de todo o mundo. Bolsonaro culpa os meios de comunicação por espalharem "sensação de pavor" e diz que, caso ele mesmo contraísse o vírus, seria apenas uma “gripezinha”.

16 de abril
Jair Bolsonaro exonera o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. O médico oncologista e empresário Nelson Teich assume a pasta em seu lugar.

21 de abril
Taxa de letalidade do coronavírus no Brasil é de 6,3%. Número de óbitos passa para 2.741, entre os 43.079 casos de covid-19 registrados.

23 de abril

O Ministério da Saúde informa que 26.573 pessoas haviam conseguido se recuperar da covid-19. Uma taxa de 53% das 49.492 pessoas diagnosticadas com a doença. Os mortos são 3.313, ou seja, 6,7% dos casos.

27 de abril

Segundo dados do Ministério da Saúde, há 66.501 casos de covid confirmados, com 4.543 óbitos (7%), 31.142 pacientes recuperados (47%) e 30.816 em acompanhamento (46%). Existem ainda 1.136 óbitos em investigação. Entre 26 e 27 do mês, registram-se 4.613 casos novos e 338 novos óbitos.

No mundo os casos chegam a 3,06 milhões e os mortos, a 212 mil

Confira as estatísticas do Ministério da Saúde sobre o novo coronavírus

Acompanhe a evolução dos casos de covid-19 pelas estatísticas da Johns Hopkins University

Fontes: Sanar/MED/Wikipédia, Johns Hopkins

Outro aspecto negativo na ação do governo brasileiro, na opinião de Humberto Costa, foi a demora em comprar material de proteção para os trabalhadores da saúde e equipamentos básicos, como respiradores. Houve lentidão ainda no envio de recursos aos municípios, apesar dos R$ 5 bilhões acrescidos ao Orçamento da Saúde por emendas parlamentares.

A dependência do país em matéria de equipamentos e suprimentos médicos também vem dificultando o combate à covid-19. Houve atrasos em encomendas e até o cancelamento de compras por interferência de outros países. As disputas por respiradores (equipamentos essenciais no tratamento em UTIs) se reproduziu internamente quando o governo federal determinou que teria preferência para aquisição sobre os governos estaduais, o que gerou disputas judiciais. Decisão da Justiça Federal impediu, por exemplo, que a União ficasse com mais de 200 ventiladores pulmonares adquiridos pela prefeitura de Recife.

Na falta de material de proteção, que inclui luvas, a garantia do isolamento social é essencial, segundo a senadora Zenaide Maia, que condena a postura do presidente Jair Bolsonaro favorável à volta ao trabalho e outras atividades:

— Temos um presidente da República que desmerece [o cargo]. Para mim, é grave quando o presidente vai para televisão dizer que a covid-19 é uma “gripezinha”, mesmo vendo o exemplo do mundo, o índice de mortalidade altíssimo, ele ainda insiste que estão fazendo terror.

A parlamentar lamenta a incompreensão do fato tão mencionado pelas autoridades de saúde no mundo de que o isolamento serve para impedir o colapso do sistema hospitalar, tanto no âmbito público quanto privado. E elogia o papel do Congresso Nacional, que sustentou o ponto de vista do ex-ministro Mandetta sobre o assunto. Sobre a atuação do Congresso, o senador Humberto Costa diz que o Parlamento “está cumprindo seu papel, com decisões e iniciativas, inclusive que seriam de iniciativa do governo.”

Remessa de respiradores pulmonares chega a Recife (foto: Andréa Rêgo Barros/PCR)

Já com o médico Nelson Teich no comando do Ministério da Saúde, o governo mantém sua disposição de ter o controle sobre o nível de atividade econômica e social durante a pandemia. Em 22 de abril, a Advocacia-Geral da União (AGU) pedia ao Supremo Tribunal Federal (STF) que fosse revista a decisão do ministro Alexandre de Moraes que deu aos estados e municípios poder para adotar medidas de enfrentamento à covid-19. Em sua nova solicitação, a AGU reforçou “a necessidade de esclarecimentos para garantir que os governos de estados, Distrito Federal e municípios observem diretrizes gerais editadas pela União”.

Para o senador Marcelo Castro (MDB-PI), que também defende o isolamento social, a capacidade de resposta do Brasil, como de outros países, deve ser ponderada pela gravidade da pandemia do coronavírus, na avaliação dele uma das mais importantes e danosas da história. Mas o parlamentar vê dois erros na condução da política de enfrentamento à crise: o Brasil até agora não massificou os testes para identificar os portadores assintomáticos do vírus, numa tentativa de reduzir a contaminação. E não estimulou o uso de máscaras, como nos países do Oriente, onde isso já é hábito e contribui para reduzir de contágio:

— Se pudesse fazer alguma observação, faria no sentido de que, honestamente eu acho que houve uma demora muito grande na aquisição dos testes. Isso foi um erro elementar que o Brasil cometeu.

Marcelo Castro defende o isolamento social como forma de combater a propagação do coronavírus (foto: Marcos Oliveira/Agência Senado)

Na ausência de kits para testes, o Brasil tem feito diagnóstico, no sistema público, basicamente de quem já apresenta sintomas e procura os hospitais. No sistema privado, a orientação é a mesma, mas exames avulsos são possíveis, por R$ 300. Como a testagem é fundamental para o fim do isolamento e a retomada de algumas atividades, alguns governos começam a se movimentar. No dia 21, o Distrito Federal instalou um sistema "drive thru" para testagem em massa, inclusive de pessoas que não apresentam sintomas. No segundo dia de funcionamento, foram registrados 41 resultados positivos num total de 3.359 testes. Está prevista a aplicação de 100 mil exames.

E o governo do Distrito Federal baixou, no dia 23 de abril, decreto que torna obrigatório o uso de máscaras. Os infratores estão sujeitos a penas que vão da multa de no mínimo R$ 2 mil e podem responder pelo crime de facilitar a propagação de doença contagiosa.

Num país em que há pouca cultura de prevenção, disciplina em emergências e obediência a protocolos de segurança, onde até treinamentos de incêndio são episódicos, a decisão sobre o uso das máscaras também variou ao longo da crise. Na ausência desse equipamento, optou-se por restringir seu uso a profissionais de saúde. Temia-se que a população, pela falta de costume, não soubesse manipulá-las e acabasse se contaminando. Num misto de anseio por proteção e oportunidade econômica, as pessoas passaram então a fabricar e vender máscaras caseiras. Não restou alternativa às autoridades de saúde e sociedades de infectologia a não ser admitir o uso das versões caseiras, com instruções sobre a maneira segura de fazê-lo, alertando para a eficácia limitada dessas peças.

A pandemia mostrou ainda os efeitos da falta de investimentos na pesquisa e na produção de testes, levando a esforços de última hora por parte de instituições como a Universidade de Brasília (UnB), que, mesmo sem recursos, está cooperando com o governo do DF. Em Minas Gerais, pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) desenvolvem um pioneiro teste nacional rápido e barato (R$ 5) para a covid-19. Para isso, criaram uma vaquinha, por meio da qual pretendem arrecadar R$ 1,5 milhão.

Governos e instituições investem em iniciativas para ampliar capacidade de diagnóstico da covid-19 (fotos: Renato Alves/Agência Brasília e Divulgação/UFMG)

Envolvido no trabalho de salvar vidas, o infectologista Julival Ribeiro, membro da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal, vê como positivo o desempenho geral do Brasil na avaliação do GHS (59,7), inclusive na comparação com a média global e a aferida na América do Sul. Ele chama a atenção para a capacidade de detecção de ameaças biológicas, quesito no qual o Brasil obteve 82,4 pontos — contra uma média global de 41,9.

— O sistema de laboratórios brasileiro recebeu nota 100. É muito importante frisar. Temos instituições de pesquisas de referência internacional, como a Fundação Oswaldo Cruz, o Instituto Evandro Chagas, o Instituto Adolfo Lutz, bem como o Instituto Butantã.

O infectologista vê o Brasil bem preparado para mitigar a disseminação da epidemia. O que falta “um pouco” na resposta do país é uma coordenação única, “que fale a mesma linguagem”, nos quatro níveis federativos (federal, estadual, municipal e distrital).

— Como ocorreu na Copa [do Mundo de futebol, em 2014], nós temos que ter esses exercícios, para, diante quer de uma calamidade pública quer de uma epidemia, saber também como nós iremos agir — receitou Ribeiro.

O médico diz que não só a nota obtida pelo Brasil no quesito sistema de saúde, mas o próprio desempenho na crise, apontam claramente a urgência de reforçar o atendimento hospitalar e ambulatorial, com a aplicação de “recursos muito altos”.

— Precisamos melhorar o padrão de saúde pública deste país, quer a nível de assistência hospitalar, quer a nível de assistência primária. Sobretudo investindo maciçamente nas universidades para pesquisa e também nos laboratórios — aconselha Ribeiro.

No dia 23 de abril, quando os dados do Ministério da Saúde indicavam a cura de 26.573 pessoas (53% das 49.492 pessoas diagnosticadas oficialmente com a doença) e a morte de 3.313 (6,7%) dos casos, o ministro Nelson Teich anunciou um mapeamento da doença no país, inclusive com o teste de assintomáticos, para chegar a critérios capazes de guiar estratégias de saída do isolamento ou a sua manutenção: “A gente defende o que é melhor para a sociedade. Se o melhor for o isolamento, é o que vai ser. Se eu puder flexibilizar, dar autonomia para as pessoas, uma vida melhor, e isso não influenciar na doença, é o que eu vou fazer".

O estudo deve trazer detalhes de um retrato que deve confirmar as desigualdades regionais. O Distrito Federal registrava, já no dia 27 de abril, 1.146 casos confirmados, 27 mortes, ou 2,4% do total, e ocupação de 31% dos leitos de UTI reservados para o tratamento da covid-19. Já o Amazonas, com suas autoridades em desespero, tinha 3.928 casos notificados, 320 mortos, letalidade de 8,1% e 96% dos leitos de UTI ocupados. Ou seja, estava com o sistema de atendimento à beira do colapso 

Além de incentivo à pesquisa científica, Ribeiro diz que seria prudente melhorar o que chamou de infraestrutura e o aparato industrial, de modo que o Brasil não dependa de testes e equipamentos importados.

— Nós não sabemos quando vai ocorrer outra pandemia, mas é certeza que ela virá e, portanto, nós temos que estar bem preparados.

Julival Ribeiro: país precisa reforçar atendimento hospitalar e ampliar investimento em pesquisa e laboratórios (foto: Davidyson Damasceno/Iges-DF)

A explosão dos números de casos de síndrome respiratória aguda grave (SRAG) em 2019 corrobora o ponto de vista de Ribeiro e do senador Marcelo Castro com relação às falhas na testagem. Na 16ª semana do ano, o Infogripe (sistema de coleta e análise de dados do Ministério da Saúde) e a Fundação Oswaldo Cruz haviam registrado 11.112 casos de SRAG, 760% mais casos que na mesma época em 2019, quando houve 1.291 registros.

O percentual é semelhante ao divulgado pelo Conselho Regional de Medicina da Paraíba (CRM-PB), que observou aumento de 754% nas internações por SRAG entre 2019 para 2020, de acordo com o Boletim Epidemiológico da Secretaria Estadual de Saúde da Paraíba (SES) de abril. O documento revela que, entre a 10ª e a 14ª semana epidemiológica, o número de hospitalizações por SRAG no estado passou de 42 em 2019 para 359, em 2020.

Segundo o CRM-PB, os casos de SRAG necessitam de internação e são notificados no Sistema de Informação de Vigilância da Gripe (Sivep-Gripe) do Ministério da Saúde. Nesse quadro, os pacientes podem apresentar sintomas como dispneia (dificuldade de respirar caracterizada por respiração rápida e curta) ou desconforto respiratório, pressão persistente no tórax, saturação de oxigênio menor que 95% em ar ambiente e coloração azulada dos lábios ou rosto.

Além de notificar os casos de síndrome respiratória aguda grave, os médicos também devem informar os casos de síndrome gripal, mesmo leves, tratados como suspeitos da covid-19. “Sabemos que temos uma quantidade enorme de casos subnotificados da covid-19 em todo o Brasil. Então, em vez de olharmos apenas para a curva de novos casos da doença, é preciso olhar para a curva de SRAG. Esta vem crescendo rapidamente, sendo muito maior que a do ano passado, mesmo não se tendo um diagnóstico preciso para o coronavírus”, destacou o presidente do CRM-PB, Roberto Magliano de Morais.

Ele lembra que a demora no resultado dos exames contribui para a dificuldade no diagnóstico. “Alguns exames demoram até 30 dias em processamento. Além disso, a sensibilidade dos testes é em torno de 70%, ou seja, 30% deles podem dar negativo e o paciente ter o vírus. Também existem os casos de coinfecção [duas infecções simultâneas] com o coronavírus. Isso significa que dar positivo para [a gripe] H1N1 não exclui o coronavírus, por exemplo”, explicou o presidente do CRM-PB.


Reportagem: Nelson Oliveira
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