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O caminho entre o projeto e a lei começa e termina com os parlamentares. São eles que apresentam e votam as ideias que se transformam na legislação do país. Entre essas extremidades, por trás das cortinas, há um batalhão de pessoas cujas impressões digitais também estão no processo. Servidores do Congresso Nacional pastoreiam cada documento, garantindo a integridade do produto final.
A produção de leis é a atividade-fim do Congresso, sua principal razão de ser. Os parlamentares são o núcleo dessa operação, mas os servidores que supervisionam e conduzem o processo legislativo orbitam cada etapa. Pela natureza do trabalho, são profissionais apegados a regulamentos, atenciosos a rotinas. Enquanto os políticos se preocupam com o “quê”, os servidores se ocupam do “como”.
Com a chegada da pandemia, a cadeia de procedimentos legislativos do Senado precisou passar por uma revisão de emergência. Na construção de uma nova forma de legislar, em meio à maior crise das suas carreiras, os funcionários que costuram o passo a passo dos projetos de lei experimentaram um grau incomum de contato com o horizonte do seu trabalho.
A máquina parlamentar parece ser um mecanismo que, deixado aos próprios desígnios, se move sozinho, mas o funcionamento remoto do Senado em 2020 não foi um fenômeno natural. Não havia um manual de instruções, ou um vidro para quebrar em caso de emergência. Não havia precedente. Se as rotinas não fossem reinventadas, não haveria um Senado. Os servidores foram cruciais para essa transição e assim puderam sentir, palpável como nunca, a sensação de botar em marcha, com o próprio esforço, os afazeres do Congresso.
O secretário-geral da Mesa do Senado em 2020, Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho, relata que o cargo lhe ensinou uma noção de urgência. Responder aos acontecimentos com presteza e senso de oportunidade é uma habilidade valiosa.
— No processo legislativo, a tempestividade da resposta às vezes é mais importante do que a completude — reflete.
A posição de secretário-geral, que lida diretamente com os senadores, demanda mais jogo de cintura nesse sentido, mas a máxima também vale para os outros níveis da organização. Os servidores do processo legislativo precisaram reagir sem instrumentos ao novo panorama de demandas à sua frente, armados apenas com as premissas que fundamentam o seu trabalho — a eficiência, a transparência, a legitimidade. Assim, nenhuma fase da tramitação dos projetos escapou incólume de ser modificada.
Quando um projeto nasce no Senado, a sua pia batismal é a Secretaria Legislativa. Nessa seção da Secretaria-Geral da Mesa (SGM), os novos textos (assim como sugestões de modificações, como emendas e destaques) são registrados pela primeira vez, numerados e colocados no rumo da tramitação.
Esses passos são informatizados, com o Sistema de Envio de Documentos Legislativos (Sedol), mas, em tempos normais, a presença física de um representante do gabinete é necessária para completar a entrega. O senador, pessoalmente ou por meio de um assessor, precisa comparecer aos escritórios da Secretaria Legislativa, de posse da sua assinatura e de um código de identificação gerado pelo Sedol. A apresentação desse código permite a confirmação do recebimento eletrônico e materializa o projeto.
Com os servidores em trabalho remoto, a entrega virtual virou o único eixo da transação. A mudança foi implementada, em caráter provisório, por uma instrução normativa da SGM do dia 19 de março, véspera da primeira sessão remota. A entrega presencial não foi apenas dispensada, mas completamente vetada. Além do protocolo pelo Sedol, os gabinetes passaram a fazer a confirmação por e-mail. As regras foram efetivadas numa segunda instrução normativa, publicada em maio.
O diretor da Secretaria Legislativa, Fernando Sachetti, explica que a adaptação foi facilitada pelo uso consolidado do Sedol. A prática adquirida já ditava que nenhum documento seria aceito sem a passagem pelo sistema. Mesmo matérias de última hora, fabricadas à mão, como emendas apresentadas durante votações, precisam receber a bênção eletrônica assim que possível para serem oficializadas.
O que também facilitou a nova rotina foi a relação estabelecida com as assessorias parlamentares.
— Foi uma continuação do que já fazíamos. Contatamos os gabinetes e dissemos que seria retirada uma das etapas, o resto eles já sabiam fazer. As pessoas com quem lidamos são as mesmas. Houve dúvidas no começo, porque foram habilitados mais usuários no sistema, e a coordenação de equipes depende de como cada gabinete está trabalhando. Pegaram a prática com o tempo.
Um caso especial de apresentação de proposições são as propostas de emendas à Constituição (PECs) e os requerimentos para instalação de comissões parlamentares de inquérito (CPIs). Em ambos os casos, os documentos dependem do apoio de 27 senadores. No modelo tradicional, o senador autor da proposta leva à Secretaria Legislativa a lista de assinaturas, para conferência. Em vez disso, os parlamentares foram orientados a encaminhar, pelo sistema eletrônico, requerimentos individuais de assinatura, fazendo referência ao código de identificação da proposta original. Quando se atingisse o quórum mínimo para uma proposta, ela poderia seguir viagem.
A segunda parada de um projeto de lei seriam as comissões temáticas, onde eles passam pela primeira análise dos senadores. Em 2020, porém, as comissões não puderam funcionar, e com isso todos os novos projetos foram encaminhados diretamente para o Plenário.
Fernando Sachetti conta que isso tornou o trabalho da Secretaria Legislativa muito mais volumoso. Se antes o time de 15 pessoas passava a bola para as comissões e lidava com o rescaldo, agora se defrontavam com as versões cruas dos projetos e todas as intervenções dos senadores.
— Todos os projetos nascem e morrem em Plenário. Tínhamos entrega de emendas, relatórios e outras peças nas comissões, e ficava alguma coisa residual para nós. Agora, ficou tudo concentrado na Mesa. Isso botou um pouco de pressão na gente.
A administração de prazos foi a novidade mais movimentada. Para que a pauta de votações pudesse ser viabilizada, a SGM estabeleceu um cronograma rígido para a instrução dos projetos, que não podia ser conhecido de antemão: ele era ancorado no próprio dia da votação. Até as 14h seriam aceitas as emendas ao projeto; até as 15h deveria ser apresentado o relatório final; e até as 16h era o prazo para os destaques de trechos que poderiam ser votados separadamente. Às 16h, em ponto, começaria a sessão.
— Não fazíamos esse controle de prazos antes. Esses documentos eram apresentados durante a sessão e cuidados pelo pessoal do Plenário, sem prazos fixos. Passamos a receber uma grande quantidade em momentos próximos à deliberação.
Novamente, a prática com o sistema eletrônico mostrou o seu valor. Como toda a circulação de papeis se tornou virtual, a organização do material encaminhado para a sessão deliberativa dependia apenas de cliques. A equipe, de casa, podia remeter diretamente para dentro da sessão qualquer novo desenrolar protocolar de um projeto em análise.
A Secretaria Legislativa escreve a história de cada projeto, registrando cada movimento, cada complemento técnico, cada participação parlamentar com pareceres, emendas, destaques, requerimentos. Tendo se convertido em uma linha de frente, o núcleo absorveu as novas responsabilidades e não espera retroceder.
— Acredito que é um sistema de entrega [de projetos] que traz muita vantagem para os senadores. Eles não precisam estar fisicamente em Brasília, podem fazer isso quando estiverem nas suas bases. Antevejo que a gente vá continuar com esse sistema, muito provavelmente permitindo a entrega física mas desencorajando-a — acredita Sachetti.
O Senado tem uma reforma geral do seu Regimento Interno nos planos, algo que foi interrompido pela pandemia. As novas experiências pesarão nessa discussão, e o aprimoramento do processo legislativo digital, com uso mais difundido, deve estar no topo da lista de prioridades.
Uma vez que chegue ao Plenário, o projeto estará no palco maior do processo legislativo. A adaptação da principal estrutura de deliberação do Senado para o trabalho remoto foi um experimento delicado, que precisou equilibrar os objetivos frios do Senado com sensibilidades políticas.
O “bunker” criado numa sala da Secretaria de Tecnologia da Informação (Prodasen) foi o início de tudo. Depois da primeira sessão remota da história do Congresso brasileiro, no dia 20 de março, era preciso deixar o feito para trás e transformar o inédito em cotidiano. A partir de então, aquele espaço funcionaria três dias por semana, por tempo indeterminado, e precisaria dar conta de tudo que fosse exigido do Legislativo brasileiro, sem perder o traquejo de uma sessão presencial.
No espaço físico do bunker acomodaram-se o secretário-geral da Mesa, Luiz Fernando Bandeira, e seus três secretários adjuntos: Sabrina Nascimento, Waldir Miranda e José Roberto de Matos. Durante uma sessão deliberativa normal, essa equipe se dividia entre quatro tarefas: Bandeira fazia o assessoramento direto da presidência; Sabrina era sua “sombra”, pronta para substitui-lo a qualquer momento; Zé Roberto monitorava o andamento legislativo de cada sessão; e Waldir controlava a lista de oradores e atendia senadores e assessores nas várias eventualidades do Plenário.
Eis como as funções foram traduzidas:
Sabrina assumiu o assessoramento da presidência desde o primeiro dia — Bandeira passou as primeiras duas semanas em isolamento, devido ao diagnóstico positivo para covid-19 do então presidente, Davi Alcolumbre. Na Mesa, improvisada a partir das estações de trabalho do Prodasen, ela e o presidente sentaram-se lado a lado na posição central, de frente para o painel eletrônico.
Uma responsabilidade nova para quem assessora diretamente o presidente passou a ser a administração dos diálogos importantes para a sessão. Senadores discutem com o presidente as providências que são tomadas no andamento de cada votação, por meio de questões de ordem. Pelo sistema remoto, sem acesso direto à Mesa, eles fazem o pedido de fala pelo chat da videoconferência e dependem da liberação do microfone virtual. Cabe ao secretário alertar o presidente para essas intervenções e “sentir” cada diálogo, mantendo o canal aberto até a sua conclusão.
A secretária adjunta manteve essas funções mesmo com o retorno do secretário-geral. Durante as primeiras sessões remotas, Bandeira se viu incessantemente demandado pelos senadores e suas equipes, que se adaptavam aos poucos aos sistemas de videoconferência e de votação virtual e pediam orientações sobre os projetos em pauta (que os parlamentares estavam vendo, em muitos casos, pela primeira vez). Ele se concentrou nessa tarefa, para não interferir na condução da sessão.
Na extremidade da mesa, Waldir operava a lista de oradores de forma diferente da habitual, atento aos ícones de mãos levantadas que indicavam inscrições para falar, discutir projetos e orientar votações, e liberando os microfones. Também controlava o tempo de fala de cada um com um sinal sonoro emitido nos segundos finais do prazo.
Atrás da presidência, em uma cadeira avulsa, José Roberto manteve-se responsável pelo andamento da sessão, acompanhado de pastas com os documentos do dia e municiado por uma impressora que disparava qualquer providência de última hora.
As funções podiam se revezar entre os quatro secretários, dependendo das necessidades do dia ou de eventuais ausências.
A formação da “mesa diretora” se completa com um senador no papel de secretário parlamentar da sessão (ele e o presidente ganharam cadeiras e microfones trazidos direto do Plenário principal) e um consultor legislativo, que presta assessoria sobre os projetos do dia. O bunker ainda conta com duas mesas de apoio técnico e as câmeras e holofotes da TV Senado.
A sessão em si perdeu um componente importante: o tempo que os senadores tinham, antes e depois das votações, para proferir discursos. Era o momento para eles tratarem de assuntos de interesse dos seus estados, dialogarem com categorias da sociedade e afirmarem posicionamentos políticos. Como as sessões virtuais foram arquitetadas apenas para votações, todas as sessões começam às 16h (horário da ordem do dia), vão direto ao assunto e encerram-se assim que a pauta é esgotada.
Os senadores, desde o início, pediram uma solução à SGM. O problema era espinhoso. Alongar o funcionamento do bunker exigiria mais tempo de expediente e mais funcionários. Logo, mais presença e contato físico. Logo, mais risco. Por outro lado, o direito ao pronunciamento é parte essencial da atividade do parlamentar.
Um meio-termo satisfatório foi construído envolvendo a TV Senado. Os senadores poderiam gravar vídeos curtos emitindo suas falas, e eles seriam inseridos nas faixas de programação logo antes da sessão. Oficiais, os pronunciamentos seriam incluídos até mesmo no programa A Voz do Brasil. Para garantir a qualidade, a TV até providenciou um curso relâmpago de técnicas cinematográficas para as equipes dos gabinetes, dando dicas para melhorar a captação de sons e imagens, enquadramentos e iluminação.
Esse tipo de negociação é ilustrativo da coreografia que a equipe de plenário da SGM tinha que executar conforme a música. Toda a prática de anos, lastreada em um Regimento Interno cinquentenário, teve que ser repensada. Sabrina Nascimento observa que era como se o processo legislativo, quase um dogma dos servidores, tivesse de repente quedado-se obsoleto.
— As proposições não tramitam mais. É como se todas elas estivessem em regime de urgência — destaca, citando o modo emergencial de análise de proposições previsto no Regimento para casos especiais
Sabrina oferece uma perspectiva interessante: ela foi nomeada para o corpo de adjuntos da mesa diretora em fevereiro de 2020, dias antes do estouro da pandemia. Assim, vivenciou o cargo exclusivamente através da ótica do trabalho remoto. Ela, que trabalha na mesa desde 2014, teve as expectativas subitamente subvertidas.
— Temos o conhecimento técnico, regimental, do processo, mas de um ano para cá foi feita uma releitura de tudo. Ninguém tinha vivido um momento como este.
Mas foi justamente a experiência da SGM que segurou as pontas e evitou que o trabalho remoto fosse um salto no escuro. Bandeira avalia que o trabalho de secretário-geral da Mesa depende de bagagem e de prontidão. É na síntese entre essas duas características que o profissional encontra o seu melhor trabalho.
— Você aprende, sobretudo, a ter resiliência — diz Bandeira.
O secretário-geral é, também, uma espécie de ator político instrumental. Desfalcados do contato diário, os senadores recorreram muito a Bandeira em momentos decisivos da articulação. Depois que o colégio de líderes definia pautas e prefaciava acordos, era preciso irradiar essas decisões para os demais senadores. Habitualmente, isso seria feito nas prévias da sessão, nos gabinetes e corredores, em rodas de conversa em volta das tribunas e microfones. Agora, o secretário-geral tinha que virar o distribuidor dessas mensagens.
— Este papel cresceu em importância. Muitos senadores deixam para resolver as coisas com o presidente, os líderes, ali no Plenário. Sem os encontros, todo o diálogo fica meio amarrado. É muito comum o secretário-geral fazer a ponte, ter esse papel de ligação entre os senadores e deles com a administração da Casa.
Estar pronto e disposto para prestar esse atendimento demonstra o tipo de preparação que manteve de pé o trabalho legislativo em um contexto como o do ano da pandemia, quando a única referência com a qual os pilotos de plenário do Senado podiam contar eram as próprias horas de voo.
Não haveria projetos para apresentar, discutir e votar sem a contribuição da Consultoria Legislativa. O núcleo de assessoria acadêmica aos senadores e aos órgãos do Senado está presente desde os primeiros rascunhos até a versão final de cada proposição, e também experimentou transformações no seu modus operandi.
Os especialistas da Consultoria, distribuídos em 22 áreas temáticas, desenvolvem trabalhos por demanda para os gabinetes, suprindo-os de pronunciamentos, projetos e pareceres. Também produzem estudos técnicos por iniciativa própria: teses, pesquisas, análises, boletins sobre toda sorte de assuntos, tanto que já estejam em discussão no Congresso quanto que possam vir a cair no radar Legislativo.
Essa descrição pode fazer parecer que o propósito dos consultores é uma solitária atividade de escritório, mas na verdade ele é extremamente dependente da interação com os parlamentares. Danilo Aguiar, consultor-geral do Senado e chefe do setor, explica a dinâmica.
— Para ser completo, o trabalho de assessoramento tem que ter o contato pessoal. A presença em Plenário é frequente, sempre temos reuniões com os gabinetes para esclarecer e desenhar melhor as ideias dos senadores.
A relação é uma triangulação entre o consultor, o senador e a sua assessoria. Todo parlamentar conta com auxiliares de confiança, que podem ser versados em áreas do conhecimento, mas que, principalmente, conhecem o senador em suas bandeiras, seus posicionamentos, suas estratégias de comunicação e sua relação com as bases políticas. O trabalho do consultor precisa também encontrar sintonia com esses pontos, que são, afinal, a fonte da legitimidade de cada mandato.
No trabalho remoto, não apenas esses encontros ficaram mais difusos como o tempo de contato com cada proposta foi drasticamente reduzido. Tudo tinha a ver com a urgência da pandemia: projetos novos chegavam em sucessão e precisavam ser alinhavados pelos consultores em prazos, não raro, de algumas horas. Quando o colégio de líderes os colocava em pauta, vinham as emendas e a necessidade de novos pareceres. Sem contar que cada votação trazia textos com os quais a maioria dos senadores não estava familiarizada — e recorria à consultoria para destrinchar o assunto de supetão.
— No início, foi tudo muito experimental. O perfil de demandas ficou mais concentrado, mais urgente, o que exigiu capacidade de resposta maior dos consultores. Trabalhamos com um tempo médio de entrega de quatro a cinco dias úteis, mas em 2020 os trabalhos relacionados à pandemia estavam com média de um dia, sendo que um quinto deles era entregue no mesmo dia - conta Danilo.
O consultor-geral ocupou um assento fixo no bunker, algo que não era usual nos tempos de Plenário físico. Consultores iam e vinham conforme a necessidade, conversando com todos os senadores. No modelo remoto, o setor optou por deixar cada consultor vinculado ao seu projeto da vez, em contato dedicado com o relator. Para oferecer uma presença de referência aos demais senadores e fazer o meio-de-campo com a Mesa, o posto fixo da consultoria foi montado a algumas cadeiras de distância do presidente.
Integrar a equipe da sessão legislativa não foi a única novidade na agenda do consultor-geral. Ele voltou a assessorar pessoalmente um projeto, o que não faz parte da rotina do cargo que ocupa desde 2016. O programa federativo de enfrentamento à covid-19, aprovado em maio, liberou mais de R$ 100 bilhões para estados e municípios, na forma de transferências diretas e suspensão de dívidas. A sua passagem pelo Senado traz exemplos da relação azeitada que precisou ocorrer entre a Consultoria, os parlamentares e a direção.
O projeto teve a particularidade de ser relatado pelo então presidente da Casa, o senador Davi Alcolumbre, o que também é raro. Originalmente um plano de ajuda financeira aos entes da federação sem qualquer ligação com a pandemia (o projeto era de 2019), ele veio da Câmara dos Deputados, mas foi rapidamente assumido pelo Senado, em razão da sua natureza: no Congresso Nacional, o Senado é a casa da federação, encarregado das relações entre os entes e a União.
O texto da Câmara foi casado com um projeto do Senado, que incorporou o tema e ganhou prioridade na tramitação; o seu parecer determinou o arquivamento da proposta da Câmara. Com esse movimento, o Senado se tornou a Casa de origem da iniciativa e ganhou o poder da palavra final sobre o programa. De fato, os senadores exerceram a prerrogativa de rejeitar mudanças feitas pelos deputados.
Todo esse processo dependeu da combinação entre a decisão política do relator (depois acordada com os demais senadores) e a adequação do conteúdo feita pela consultoria. Essas duas forças precisaram andar em consonância para viabilizar um projeto de tal sensibilidade e escopo.
Para Danilo Aguiar, o auxílio aos estados é exemplo, ainda, da consciência que a consultoria tomou sobre a relevância do seu trabalho. O tempo reduzido de tramitação dos projetos relacionados à pandemia esticou os expedientes, mas também significou que o tempo entre a atuação do consultor e a efetividade da lei que ele ajudou a produzir se tornou muito menor. Com isso, os servidores perceberam com mais clareza a causalidade entre o seu esforço e o resultado refletido na sociedade.
— O processo legislativo precisa ser naturalmente lento, mas isso gera um descasamento entre o seu trabalho e o resultado, que vem muito depois. Nem sempre é fácil enxergar o efeito concreto. Na pandemia, com a urgência e aceleração dos projetos tivemos condição de ver isso. Foi a grande lição, ver que o nosso trabalho importa e faz diferença.
A grande lacuna nas deliberações do Senado em 2020, já apontada por diversos personagens, foram as comissões. Em essência, foram três os motivos para que elas permanecessem interditadas durante o ano da pandemia. Politicamente, a SGM não queria transformar o Sistema de Deliberação Remota (SDR) numa ferramenta corriqueira, pau para toda obra. Administrativamente, a direção do Senado preferiu não manter mais núcleos de atividade presencial funcionando (cada comissão precisaria ter o seu próprio “bunker”, com servidores comparecendo). Tecnicamente, o Senado não tinha assinaturas do aplicativo de videoconferência (que são pagas) em número suficiente para atender todos os colegiados.
Os colegiados foram pegos de surpresa pela interrupção das atividades, o que se evidencia pelas 15 reuniões de comissões permanentes agendadas entre os dias 16 e 19 de março que terminaram canceladas — fora comissões mistas, de medidas provisórias e CPIs. Mesmo assim, o setor se alinhou às diretrizes da SGM e não pressionou pela reabertura. É o relato de Bruno Cunha Lima, coordenador de Comissões Permanentes do Senado.
Segundo explica, os senadores nunca deixaram de insistir na retomada das comissões, responsáveis por viabilizar várias diligências importantes para o exercício do mandato, como audiências públicas e fiscalização do Executivo. No entanto, mesmo com os colegiados fechados para deliberações, eles ainda podiam conduzir atividades.
— O protagonismo [nas votações] passou aos líderes, mas consultamos os presidentes das comissões quando as matérias iam ao Plenário, procurando sempre um alinhamento. Dependendo do perfil de cada um, eles poderiam influenciar a pauta.
O Senado possuía, em 2020, 13 comissões temáticas, cada uma com uma equipe dedicada de servidores que pode variar entre duas e nove pessoas, dependendo da complexidade e volume de projetos e atividades. Um quadro comum inclui um secretário, um adjunto, um assessor técnico, alguns servidores efetivos em número variável e um pequeno destacamento de assessores trazidos pelo presidente do momento.
Durante a inatividade legislativa das comissões, essas equipes dedicaram-se a uma miríade de tarefas de bastidores que continuaram movimentando o setor. Se o Plenário convocasse uma matéria antiga, a comissão onde ela se encontrava deveria preparar a documentação para a análise e votação. Remessas de informações ou documentos oficiais pedidos pelos senadores, bem como respostas de outros órgãos a ofícios parlamentares, não param de chegar, e precisam ser processados. Os senadores podiam continuar apresentando emendas a proposições paradas. Por fim, havia o atendimento a demandas variadas da imprensa e da sociedade sobre o estado de projetos e de discussões.
Por todo o ano senadores tentaram de várias formas movimentar as comissões em algum grau, principalmente sugerindo a realização de audiências públicas completamente virtuais. Alguns organizaram eventos assim, mas todos foram iniciativas individuais, e nenhum recebeu a chancela de compromisso oficial da comissão — mesmo que o senador organizador fosse um presidente.
As pequenas tarefas administrativas, por mais que tenham a sua função, não são a alma das comissões e nem de longe preenchem a sua ausência aos olhos de senadores e servidores. Os parlamentares se ressentiram da falta de oxigenação política que o trajeto das comissões traz para o projeto. Os funcionários do processo legislativo no Senado também foram afetados. Para a SGM, os projetos ficaram muito mais expressos, e chegavam ao Plenário mais crus para a votação. Já os consultores perderam o seu habitat natural, onde trabalham com mais desenvoltura, por se dedicarem aos seus nichos de especialidade e por estarem entre senadores de vieses e experiências próximos (as comissões costumam reunir os parlamentares mais familiarizados com cada área).
— O sentido maior das comissões é o debate técnico. Elas são onde as matérias são debatidas com mais profundidade, com tempo para conhece-las. Nós entendemos a urgência, mas sentimos muita falta dessa movimentação, e o público também. Para quem acompanha projetos — entidades, associações, indivíduos — é um espaço importante de influência — destaca Bruno.
No entanto, outros dois colegiados, ambos temporários, tiveram atividades semipresenciais em 2020. Um deles, a comissão externa para acompanhar as ações de enfrentamento a incêndios no Pantanal, foi criado em setembro a pedido do senador Wellington Fagundes (PL-MT). Os parlamentares reuniram autoridades e visitaram o Pantanal em busca das causas e de soluções para enfrentar as queimadas que devastaram boa parte do bioma.
Das comissões permanentes, as únicas atividades legislativas durante a pandemia ocorreram no segundo semestre do ano. As Comissões de Infraestrutura, de Constituição e Justiça, de Relações Exteriores, de Assuntos Econômicos, de Assuntos Sociais e de Meio Ambiente fizeram duas séries de sessões, em setembro e em outubro, para votar indicações do Executivo para cargos em embaixadas, tribunais e agências reguladoras.
Essas análises são precedidas, obrigatoriamente, pelas sabatinas das comissões, que foram quase todas virtuais. As votações foram presenciais, pois precisam ser secretas, o que o aplicativo para votação remota não admite. Os procedimentos foram adaptados para evitar aglomerações.