Ir para conteúdo principal

Há um ano, Senado inaugurava sua atuação remota contra a pandemia de covid-19

Guilherme Oliveira
Publicado em 20/3/2021

Tudo começou numa sexta-feira 13.

O secretário-geral da Mesa Diretora do Senado Federal, Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho, chamou a sua equipe para discutir uma hipótese. Haveria condições para organizar uma sessão deliberativa sem a presença física dos senadores?

A Secretaria-Geral da Mesa (SGM) é o cérebro do Senado, o órgão encarregado da coordenação de todas as atividades legislativas: desde a posse dos parlamentares, passando pela circulação de projetos, até as decisões finais. Sua missão é manter a Câmara Alta do Congresso Nacional em operação, não importa o empecilho.

E o obstáculo do momento diante da SGM era dos grandes. Naquela semana, o Senado havia restringido a entrada de pessoas nas suas dependências ao mínimo necessário, seguindo recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) quanto a uma nova doença viral que começava a ganhar o mundo: a covid-19. 

Se as coisas piorassem, o próximo passo seria isolar os próprios senadores. O problema é que 38 dos 81 parlamentares em atividade tinham idade acima dos 60 anos e integravam um dos principais grupos de risco para a covid-19. Se quase metade dos seus membros não pudesse sair de casa, o Senado entraria em estol. Essa foi a perspectiva que acendeu o alerta vermelho no centro de comando.

O time de Bandeira marchou para o prédio da Secretaria de Tecnologia da Informação do Senado (Prodasen). Se não pudesse haver sessão presencial, a alternativa seria conectar os senadores virtualmente, onde quer que estivessem. As votações também teriam que ser transferidas para essa rede, sem perder a segurança oferecida pelo sistema interno do Senado. Foi organizada uma reunião com os técnicos do Prodasen para sondar as opções.

Após uma longa conversa, os participantes chegaram a uma estimativa: sim, a ideia era ambiciosa, mas seria possível organizar uma sessão plenamente funcional, em ambiente virtual, em um prazo de um a dois meses. Bandeira saiu satisfeito.

No dia seguinte, sábado, o secretário-geral almoçava quando recebeu uma ligação do presidente do Senado, Davi Alcolumbre. Davi falava em viva-voz, acompanhado pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia.

“Bandeira, estou achando que semana que vem temos que fazer uma sessão a distância”.

 
 
Depoimento de Luiz Fernando Bandeira para o documentário 'O Parlamento não pode parar', da TV Senado

O primeiro caso da nova doença foi confirmado no Brasil no dia 25 de fevereiro, plena terça-feira de Carnaval. As manchetes ainda se referiam à doença como “o novo coronavírus”. A OMS padronizara o nome alguns dias antes como COronaVIrus DIsease 2019, ou covid-19, a partir do momento em que as primeiras ocorrências foram identificadas. O jargão ainda demoraria algum tempo para se firmar; o vírus, nem tanto. Em duas semanas, o país registrava 34 casos.capa-jornal-folha-de-s-paulo-26-02-2020-7e7.jpg

No dia 11 de março, a OMS declarou a covid-19 uma pandemia — uma doença em disseminação acelerada por todo o planeta. No mesmo dia, em Brasília, a Comissão de Fiscalização e Controle do Senado (CTFC) recebeu em audiência pública o secretário-executivo do Ministério da Saúde, João Gabbardo dos Reis. Era a primeira vez que uma autoridade federal comparecia diante dos senadores para falar sobre a nova ameaça sanitária global. Gabbardo previu um rápido aumento no número de contaminações ao longo dos próximos dias.

Em março de 2020, o Senado realiza audiência pública com o secretário do Ministério da Saúde, João Gabardo (3º à esq.), para discutir os riscos da covid-19 (foto: Jhonatan Vieira/Agência Senado)

Para Ilana Trombka, diretora-geral da Casa, a realidade da covid-19 caiu no colo do Senado justamente naquele 11 de março, à noite. Ilana é como a prefeita de uma pequena cidade. Ela supervisiona o dia a dia e o vai e vem dos mais de 8 mil servidores e funcionários.

Uma reunião a portas fechadas levou o presidente Davi Alcolumbre à Câmara dos Deputados. Lá, ele e o presidente Rodrigo Maia colocaram diante das lideranças partidárias do Congresso o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Ilana estava presente quando Mandetta ilustrou a severidade da crise que estava por vir. A covid-19, explicou, era uma ventania que acelerava. Logo estaria vergando árvores.

A partir daí, tudo passou a andar muito rápido. A Diretoria-Geral (DGer) redigiu as primeiras providências administrativas contra a pandemia, que saíram na fornada de quinta-feira, 12, do Basf, o Boletim Administrativo do Senado Federal.

O acesso aos edifícios do Senado foi limitado a parlamentares, servidores, fornecedores, imprensa credenciada e representantes de órgãos públicos. A visitação turística e os eventos de teor político foram suspensos. Parlamentares e servidores que manifestassem sintomas de covid, ou que houvessem tido contato com casos suspeitos, deveriam seguir protocolos de isolamento. O mesmo valeria para quem retornasse de países onde já havia o registro de transmissão local do vírus. Viagens ao exterior a serviço do Senado não seriam mais autorizadas.

Entre o dia 11 e o dia 13, data da reunião da SGM com o Prodasen, o número de casos de covid-19 no Brasil subiu para 151, um salto de mais de 340%.

Aquela semana se encerrou com mais uma informação crítica. Na noite do dia 13, o senador Nelsinho Trad (PSD-MS) anunciou que havia sido diagnosticado com a covid-19. Tratava-se do primeiro caso confirmado entre os senadores. Nelsinho, então o presidente da Comissão de Relações Exteriores (CRE), havia acompanhado o presidente da República, Jair Bolsonaro, numa viagem de quatro dias aos Estados Unidos. No total, 25 integrantes da comitiva presidencial descobririam ter a doença ao longo dos próximos dias. Outro senador, Jorginho Mello (PL-SC), também esteve na viagem, mas não se contaminou.

 
 
Em vídeo gravado em março de 2020, Nelsinho Trad relata seus sintomas de covid

Com o diagnóstico positivo de Nelsinho, já eram dois os eventos da sexta-feira 13 que colocaram em movimento a série de decisões que moldaria o ano de 2020 no Senado. A semana seguinte amanheceu com resoluções mais drásticas em relação à rotina: os servidores estavam dispensados do ponto eletrônico e autorizados a trabalhar de suas casas; as atividades das comissões estavam suspensas por tempo indeterminado.

O presidente Davi Alcolumbre, que teve contato com membros da equipe presidencial que foi aos EUA, também fez o teste para covid-19. No dia 14, já munido do resultado negativo, ele disparou o telefonema para Luiz Fernando Bandeira. O Plenário deveria continuar funcionando.

No Prodasen, o diretor Alessandro Albuquerque desenhou três círculos concêntricos num quadro branco. No mais interno deles, escreveu em vermelho a palavra “informação”. No mais externo, “cidadão” e “sociedade”. O círculo intermediário, o mais espesso dos três, foi dividido em três fatias. Ele era a peça crucial do diagrama. Cada uma das fatias representava uma necessidade que o departamento precisava atender para conectar o conteúdo do círculo central aos habitantes do círculo periférico.

Conversas já haviam existido entre os técnicos do Prodasen sobre uma alternativa virtual para o trabalho legislativo do Senado. Primeiro em 2018, quando uma greve de caminhoneiros provocou desabastecimento de combustíveis em todo o país e temeu-se que os parlamentares não conseguissem chegar a Brasília. Depois, em 2019, quando senadores pediram análises sobre o sistema de plenário virtual, adotado no Supremo Tribunal Federal (STF), que simplifica a etapa de admissibilidade de processos. Tudo, no entanto, sempre no terreno das especulações.

Agora era diferente. Ao mesmo tempo que lidavam com a rápida expansão da rede de trabalho remoto para os servidores, os engenheiros debruçaram-se sobre a tarefa de transportar as sessões deliberativas para o ambiente virtual. Eles precisavam correr contra o tempo para que a principal instância decisória da Casa — o Plenário — não ficasse paralisada. A mandala esboçada pelo diretor era o mapa disponível para o problema.

Gráfico

VC = videoconferência
SDR = sistema de deliberação remota

As três fatias do círculo principal representam as três vertentes que o Prodasen precisava desenvolver naqueles poucos dias. A primeira delas: interação e discussão. Durante uma sessão plenária, os senadores precisam se ver, conversar, debater. Não houve dilema. Com diversos softwares de videoconferência disponíveis no mercado, ninguém cogitava desenvolver um novo programa, do zero. Em vez disso, o trabalho foi de prospecção: descobrir qual programa existente oferecia ferramentas semelhantes àquelas que o Plenário possui para administrar uma discussão coletiva.

A SGM tinha necessidades bem claras:

  • Controle de microfones: o presidente, que seria o anfitrião da sessão, deveria ter o poder de alternar a palavra entre os demais senadores, além de silenciar por conta própria o microfone de algum parlamentar distraído cujos ruídos domésticos estivessem interferindo.

  • Lista de oradores e questões de ordem: os servidores da SGM que coordenam a sessão precisavam de um instrumento para organizar a fila dos senadores à medida que eles pedissem a palavra e apresentassem dúvidas quanto ao andamento da sessão.

  • Visibilidade: o presidente tinha que enxergar o máximo possível de colegas ao mesmo tempo, a partir de um amplo mosaico de participantes da reunião, como se estivesse dentro do Plenário cheio.

Com essas diretrizes, o Prodasen decidiu pelo Zoom Meetings, aplicativo americano em operação desde 2012. Com uma assinatura paga, o Senado teria direito a realizar reuniões com centenas de participantes, o suficiente inclusive para sessões conjuntas do Congresso Nacional.

A segunda fatia traz o elemento mais delicado do diagrama: a votação. Novamente, a falta de tempo para desenvolver um sistema inédito levou o Prodasen a seguir trilhas já desbravadas. Felizmente a solução estava próxima. O Senado contrata, desde 2007, a empresa belo-horizontina Visual, que é a responsável pelo sistema de votação eletrônica do Plenário — painéis, terminais e software. A Visual ofereceu um aplicativo de celular para o voto dos parlamentares, que foi adquirido por meio de um novo contrato.

Funciona assim: cada senador usa o aplicativo com um código pessoal de login, que é o mesmo usado por ele para as votações eletrônicas presenciais, no Plenário. Além do login, o parlamentar recebe, a cada dia, uma senha, que é única para cada sessão deliberativa individual. Com essas duas informações, tem-se o acesso ao sistema.

O aplicativo exibe a pauta de votações, com as opções de voto para cada projeto do dia - “SIM”, “NÃO” ou “ABSTENÇÃO”. Ao selecionar o voto, o aplicativo registra uma fotografia do usuário - para garantir que é o próprio senador que está praticando o voto, e não um assessor. Essa verificação é feita manualmente: um funcionário da SGM recebe as fotos, identifica os senadores e valida os votos. A Secretaria-Geral preferiu não ter o reconhecimento facial automático, porque ele poderia sofrer interferência da iluminação do ambiente ou do uso de máscara sanitária pelo senador. Ao fim, o usuário recebe um terceiro código, por mensagem de texto, que deve inserir no aplicativo para confirmar o procedimento.

O aplicativo guarda todos os votos, sem exibi-los, até que o processo de votação seja dado por encerrado. Antes disso, é possível, até mesmo, mudar o voto. São exibidas as orientações das bancadas para cada item da pauta e a lista dos parlamentares que já votaram no projeto em análise no momento.

Exemplos de telas do aplicativo de deliberação remota desenvolvido pelo Senado

Uma opção consciente feita pela Mesa Diretora foi a de não incorporar votações secretas ao sistema remoto — aquelas na qual o voto individual de cada senador não é conhecido, apenas o resultado final. São secretas, por exemplo, as votações de indicações do Poder Executivo para cargos judiciários, diplomáticos ou em agências reguladoras e a eleição da Mesa Diretora.

O motivo é simples: a própria autenticação do voto, por uma fotografia do rosto do parlamentar, derrotaria o propósito de uma votação secreta e comprometeria o sigilo do registro de votação.

A terceira e última fatia da mandala do Prodasen corresponde ao serviço que ficou para ser executado de forma direta pelos técnicos do Senado: o suporte às operações. Toda a arquitetura do sistema depende de uma coordenação afinada, pois são muitos nódulos de informação funcionando ao mesmo tempo durante uma sessão. A videoconferência e a interface do aplicativo de votação operam, cada uma, em nuvens (redes remotas de servidores que permitem que o processamento do software ocorra externamente ao usuário). O núcleo do sistema de votação funciona numa pequena central de dados dentro do Plenário do Senado, que se conecta através da rede interna da Casa com o Prodasen.

Prédio do Prodasen, onde foi desenvolvido o Sistema Remoto de Deliberação (foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado)

Esse desenho não centralizado impede que uma falha em algum dos pontos comprometa os demais — por exemplo, se o aplicativo de votação parar de funcionar, os senadores ainda podem se comunicar e até votar oralmente, se for o caso. No entanto, para o bom andamento da sessão, é necessário que todas as engrenagens girem harmonicamente. É o trabalho do Prodasen garantir que isso aconteça.

O Sistema de Deliberação Remota (SDR), compreendendo os mecanismos de debate e votação e o apoio técnico do Prodasen, ganhou uma certidão de nascimento na terça-feira, dia 17, na forma de um Ato da Comissão Diretora. O respaldo oficial era imprescindível. Segundo o Regimento Interno, em casos emergenciais o Senado pode se reunir “em qualquer outro local”, mas não estava imediatamente claro que esse local poderia ser a rede mundial de computadores.

Ilana, Sérgio Petecão, Anastasia e Bandeira, em entrevista para tratar das medidas de enfrentamento ao coronavírus (março/2020). Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

No mesmo dia, o governo federal anunciou que editaria um decreto de calamidade pública em função da pandemia de covid-19. A decisão abriria caminho para medidas orçamentárias excepcionais necessárias ao combate à pandemia, que durariam o ano todo. Era necessário que o Congresso aprovasse o pedido do Executivo. O SDR já tinha uma ocasião para estrear.

Estava tudo encaminhado, mas havia uma pendência importante. Em tese, o presidente do Senado poderia comandar a sessão remota de qualquer lugar do planeta com uma conexão de internet. Na prática, as escolhas realistas, e condizentes com o decoro da ocasião, eram poucas.

O gabinete da Presidência era uma delas. Lá seria possível instalar uma pequena base, com três televisores. Porém, o espaço seria muito pequeno para acomodar a equipe de assessoramento necessária ao trabalho.

A SGM considerou seriamente o Plenário do Senado. Lá, o presidente poderia sentar na sua própria cadeira e coordenar a sessão a partir dos largos painéis já instalados, e os funcionários da SGM teriam as suas estações de trabalho. Para Bandeira, no entanto, a imagem do presidente sentado à cabeceira de um Plenário vazio ofereceria uma imagem feia, triste e evocativa de tempos amargos para o Parlamento brasileiro.

Outras opções circularam brevemente, como os plenários das comissões, mas Bandeira já tinha um alvo. Ele havia se revelado ainda no dia 13, quando o secretário-geral foi ao Prodasen se reunir com os técnicos de informática.

Servidores da SGM e do Prodasen se reúnem para viabilizar o novo sistema de votação remota (foto: Rodrigo Viana/Senado Federal)

O Centro de Operações de Rede do Prodasen (ou NOC, Network Operations Center) é uma sala que acomoda, em tempos ortodoxos, de três a quatro funcionários que monitoram o status de todos os pontos de rede controlados pelo Senado. O ambiente tem a forma de um segmento de círculo. O lado curvo é uma extensa janela, voltada para um corredor de entrada do prédio. Esse traço deu à sala o apelido interno de “aquário”, pois os engenheiros ficam em exposição através do vidro para os passantes.

É na parede reta oposta à janela que está a peça principal do NOC: um enorme painel eletrônico, composto por 14 telas de 55 polegadas. Nele são exibidos os alertas aos quais os técnicos do Prodasen têm que ficar atentos, entre falhas de conexão e ameaças de invasão à rede.

Com o painel e as baias de trabalho já instaladas no ambiente, e com os funcionários do local despachados para casa, a SGM conseguiria montar naquele espaço uma versão eficiente do Plenário. A cadeira do presidente poderia ser posicionada de frente para o painel, que projetaria em destaque o mosaico de senadores e as informações da votação. A equipe de apoio ocuparia as mesas em volta, com o devido espaçamento entre elas para garantir a proteção sanitária. O ar futurista do ambiente, lembrando a cabine de comando de uma espaçonave, dava o tom da situação excepcional para o qual aquele cenário estava montado.

No mesmo espírito, a equipe legislativa logo cunhou o apelido que viria a identificar aquele plenário transitório: o “bunker”. A palavra designa as casamatas militares das grandes guerras mundiais, onde os soldados se abrigavam do inimigo e planejavam contra-ataques.

Técnicos trabalham para instalar a sala de comando de votações no Centro de Operações de Rede do Prodasen (foto: Waldemir Barreto/Agência Senado)

O bunker ainda recebeu adaptações para viabilizar a transmissão ao vivo das sessões pela TV Senado. A TV foi incluída no processo decisório desde o início, pois a transmissão é um fator de legitimação do trabalho parlamentar. O ineditismo de uma sessão a distância, com decisões tomadas por trás de telas, fez com que a visibilidade e a transparência fossem mais prioritárias do que nunca.

O diretor da emissora, Érico da Silveira, foi um dos envolvidos na escolha do software para deliberação, uma vez que a TV precisaria conectar seu sinal ao programa para exibir as falas dos parlamentares através da plataforma de videoconferência. Isso foi resolvido de maneira pitoresca: um “perfil-robô” da TV Senado participa da reunião como um usuário. Outro sinal que alimenta diretamente a TV vem do painel eletrônico, que exibe o projeto em votação, as orientações de voto e o resultado das votações.

A equipe de engenharia da TV levou ao bunker cabos de fibra ótica e três câmeras: uma direcionada para a cadeira do presidente, uma capturando o plano geral da sala e uma terceira mirando o painel — para que, em caso de queda dos sinais diretos dos sistemas, ainda houvesse um recurso para exibir os senadores e as votações.

Equipamentos da TV Senado para transmissão das sessões remotas (foto: Waldemir Barreto/Agência Senado)

O palco montado para as iminentes sessões remotas seria posto à prova em breve. O decreto presidencial de calamidade pública foi aprovado na Câmara dos Deputados na noite da quarta-feira, dia 18, e remetido para o Senado. Porém, antes da estreia definitiva, houve mais um obstáculo a superar.

No dia 16 de março, segunda-feira, Luiz Fernando Bandeira acompanhou o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, a um encontro oficial no Supremo Tribunal Federal (STF). Bandeira recorda que o presidente do Senado não parecia bem naquele dia, e suava muito. As imagens da reunião mostram que nenhum dos presentes usava máscara. Naquele momento, isso era a regra. As máscaras não se tornaram obrigatórias no Brasil até abril, e a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) só passou a recomendar o uso corriqueiro da peça para toda a população em junho.

Davi tinha um teste negativo para a covid-19 com a data do dia 14. Descobriu-se que isso não era uma garantia perfeita: os testes podem registrar falso-negativo se forem realizados muito perto da data da contaminação, e a pessoa infectada pode demorar alguns dias para manifestar sintomas.

O presidente repetiu o teste na terça-feira, dia 17. Dessa vez, descobriu que estava com a doença.

O resultado foi anunciado publicamente no dia seguinte, no fim da tarde, ao mesmo tempo em que a Câmara deliberava sobre o decreto de calamidade pública. Quando o documento foi aprovado, algumas horas depois, já se sabia que o Senado votaria o decreto com um novo presidente na direção.

O teste positivo de Davi significou que Bandeira, que o acompanhou em várias tarefas durante aqueles dias movimentados, também precisou entrar em isolamento imediato. A primeira sessão remota da história do Senado, portanto, aconteceria assim: um sistema novo, em local diferente, com procedimentos únicos, sem o presidente e sem o secretário-geral.

 
 
Luiz Fernando Bandeira conta detalhes da preparação para a primeira sessão remota no Senado

O bastão da Presidência passou para o primeiro vice-presidente da Mesa, o senador Antonio Anastasia (PSD-MG). O parlamentar balizou sua atuação naquele momento numa premissa: ele não era o presidente. O Regimento Interno do Senado não prevê nenhuma hipótese em que o vice substitua o presidente no cargo — apenas no exercício das funções.

Consciente disso, Anastasia ficou em diálogo permanente com Davi para sustentar o pique dos preparativos para a primeira sessão remota, que estava a poucos dias de distância. Nos dias que se seguiram, o vice supervisionou a montagem do bunker e as orientações aos gabinetes para a nova rotina de trabalho do Senado. O presidente enfrentava a covid-19 de casa e manteve presença, a distância, na articulação política com os demais senadores e no cultivo das relações institucionais entre o Senado e outros órgãos.

Além de Anastasia, um outro senador foi destacado para participar da base de operações do bunker: Weverton Rocha (PDT-MA). Líder de um dos partidos de oposição ao governo federal, a sua presença cumpria vários propósitos. O principal deles era a relatoria do decreto de calamidade. Para demonstrar a união da classe política naquele momento crítico de decolagem da pandemia em solo nacional, o decreto presidencial ficou sob os cuidados de parlamentares de oposição nas duas casas do Congresso.

A relatoria poderia ser praticada a distância, mas o senador se ofereceu para acumular a função com outra: a de secretário da Mesa Diretora. Em tempos normais, a Mesa tem quatro secretários, que exercem diversas funções durante as sessões deliberativas: leitura e despacho de documentos, monitoramento do processo legislativo, chamada de senadores, verificação de votações. Todas essas tarefas seriam concentradas em um único senador.

Weverton era membro suplente da Mesa naquela gestão, portanto estava legitimado para cumprir o papel de secretário na ausência dos titulares. Aos 40 anos, era também um dos senadores mais jovens da legislatura, e fora dos grupos de risco para a covid-19.

Um dos senadores mais jovens, Weverton, com 40 anos, foi escolhido para secretariar as sessões remotas (foto: Leopoldo Silva/Agência Senado)

Com sua participação, colegas da Mesa mais graduados e também mais velhos — como o segundo vice-presidente, Lasier Martins (Podemos-RS, 77 anos), e o primeiro-secretário, Sérgio Petecão (PSD-AC, 59 anos) - poderiam ficar em isolamento.

Completando o time de “substitutos” à frente da primeira sessão remota que se avizinhava, a secretária-geral adjunta da SGM, Sabrina Nascimento, foi a escalada para o lugar de Luiz Fernando Bandeira. Dentro do bunker, ela comandaria uma pequena equipe de assessores da SGM, auxiliada por um técnico do Prodasen e um consultor legislativo.

Às 11 horas da manhã do dia 20 de março de 2020, 76 dos 81 senadores acessaram o link da sessão deliberativa. Eles estavam espalhados por todo o Brasil, em quartos, salas, escritórios, gabinetes, carros em movimento.

Senadores participam da primeira sessão remota do Senado (foto: Marcos Oliveira/Agência Senado)

Nos primeiros segundos, os senadores testam seus microfones, com alguma hesitação. À medida que surgem uns para os outros nas telas de seus celulares, tablets e computadores, eles trocam saudações. As vozes se multiplicam e há excitação nelas. A primeira que consegue se projetar acima das outras é a do senador Omar Aziz (PSD-AM). “Bom dia, senhores senadores!”, cumprimenta ele.

A algazarra não é propriamente uma conversa. Alguns senadores falam com pessoas fora de cena em seus ambientes, aperfeiçoando suas estações de trabalho. Outros fazem lives para suas redes sociais, anunciando a votação que está por vir. “O Parlamento tem que continuar funcionando”, diz o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) para uma plateia virtual. Alguém oferece ajuda à senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), que parece ter dificuldades para se conectar à videoconferência, mas ela resolve rapidamente. “Sistema novo não é fácil”, brinca.

Após algum tempo de interações informais, o falatório subitamente se cala. O arquivo sonoro da sessão registra, na sequência, vários minutos de silêncio. Então, emerge a voz de Antonio Anastasia.

“Alguns não me escutam, pelo que foi relatado”

Em seguida:

“Não ouviram nada do que eu disse antes?”

O presidente da sessão deixa escapar uma risada discreta pela falha do seu microfone. O dia histórico começava com um tropeço. Seria, felizmente, o único - e sem maiores consequências. O discurso de abertura, que as câmeras da TV Senado já haviam captado, foi repetido.

Anastasia parabenizou os servidores do Prodasen e da SGM pelo trabalho na construção do Plenário virtual e na montagem do bunker, e manifestou solidariedade aos três senadores que se recuperavam da covid-19 naquele momento: Nelsinho Trad, Davi Alcolumbre e Prisco Bezerra (PDT-CE, diagnosticado na véspera).

A seguir, explicou que os parlamentares votariam oralmente pelo sistema de videoconferência, um de cada vez, pois o aplicativo de votação ainda não estava finalizado. Sem mais rodeios, colocou sobre a mesa o projeto de decreto legislativo que declarava, pela primeira vez na história do Brasil, um estado de calamidade pública de abrangência nacional.

Foram 75 votos “SIM”, aprovação unânime. Quatro senadores votaram por telefone, por problemas de conexão - um deles foi a senadora Kátia Abreu (PDT-TO), que estava em um posto de gasolina entre Brasília e Palmas (TO). Dos presentes, apenas o senador Antonio Anastasia, presidente da sessão, não votou,  em obediência ao Regimento Interno.

Votação na primeira sessão deliberativa remota do Senado, em 20 de março de 2020 (fotos: Marcos Oliveira/Agência Senado)

Os senadores puderam fazer discursos depois da votação, mas o último orador a usar a palavra no dia não foi um parlamentar: de sua casa, o secretário-geral da Mesa, Luiz Fernando Bandeira, destacou, emocionado, os esforços das várias equipes de servidores envolvidas com a montagem do bunker e do sistema remoto. Depois, revelou que o trabalho já começava a virar exemplo internacionalmente. Naquele mesmo dia 20, a União Interparlamentar (UPI, Inter-Parliamentary Union), órgão internacional que promove cooperação entre parlamentos de todo o mundo, reconheceu o Plenário virtual do Senado como pioneiro naquele tipo de solução legislativa. Ao longo do resto do ano, as experiências do Senado seriam compartilhadas com as Câmaras Legislativas de outros países.

A primeira sessão remota dos 196 anos de história do Senado brasileiro se encerrou às 15 horas e 16 minutos. No mesmo dia 20 de março, o Ministério da Saúde declarou que a covid-19 se encontrava em situação de transmissão comunitária no Brasil, o que significa que não era mais possível rastrear o início das cadeias de contaminação. Naquela data, 26 dos 27 estados brasileiros registravam casos da doença. No dia seguinte, o país ultrapassaria a marca de 1.000 diagnósticos positivos. Desde a semana anterior, a presença da covid-19 havia crescido cerca de dez vezes dentro do território nacional.

Durante os meses seguintes, senadores e servidores seriam testados em várias frentes, enquanto o Brasil e o mundo desciam pelos túneis nebulosos de uma pandemia. Para essa batalha, o Senado já tinha o seu bunker.


Reportagem: Guilherme Oliveira
Edição: Maurício Müller
Infografia: Claudio Portella
Multimídia: Bernardo Ururahy
Foto de capa: Leopoldo Silva/Agência Senado

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)