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O trabalho que deu!

Nelson Oliveira
Publicado em 30/4/2020

Em agosto de 2011, técnicos e operários que consertavam uma infiltração no Salão Verde da Câmara dos Deputados descobriram inscrições de operários da época da construção do prédio. Conforme noticiou na época a Agência Câmara, os candangos deixaram, numa espécie de fosso, mensagens para o futuro. Uma delas, escrita por José Silva Guerra, em 22 de abril de 1959, exatamente um ano e um dia antes da inauguração da nova capital, trazia um apelo e uma recomendação: "Que os homens de amanhã que aqui vierem tenham compaixão dos nossos filhos e que a lei se cumpra".

Desde a descoberta desses recados, passaram-se nove anos. Desde que a capital foi inaugurada, passaram-se 60.

Há dez dias, essas seis décadas de fundação foram celebradas em isolamento social por causa da pandemia da covid-19. Nesta sexta-feira, 1º de maio, comemora-se o Dia do Trabalho, ainda sem a perspectiva de que os trabalhadores possam se reunir em praça pública para celebrações.

E em meio à crise que se abateu sobre a economia, aumentam as responsabilidades dos homens de hoje, que eram “os de amanhã”, nas frases deixadas pelos candangos de 1959, quando a epidemia que tomava conta do país era a das levas de sertanejos em busca de vida melhor no Planalto Central e o contágio era de otimismo.

Mensagem deixada por operário que trabalhou na construção do prédio do Congresso (foto: Ana Volpe/Agência Senado)
Mensagem deixada por operário que trabalhou na construção do prédio do Congresso (foto: Ana Volpe/Agência Senado)
Se todos os brasileiros fossem dignos de honra e honestidade, teríamos um Brasil bem melhor
Só temos uma esperança, nos brasileiros de amanhã
Brasília de hoje, Brasil amanhã
Amor, palavra sublime que domina qualquer ser humano
Saudade: palavra que nunca morre, quando morre fica arquivada no coração
Que os homens de amanhã que aqui vierem tenham compaixão dos nossos filhos e que a lei se cumpra

Uma das cenas mais comuns da capital em construção: operários em carrocerias de caminhão nas ruas recém-abertas e poeirentas. Ao fundo, o edifício do Congresso, ainda em fase estrutural. Foto: Arquivo Público - DF


O eldorado brasiliense atraiu todo o tipo de trabalhador. Quem não tinha qualificação ou jeito para a construção civil, encontrava outras formas de sobrevivência atendendo a demandas, como de lenha. Foto: Arquivo Público - DF


Brasília foi construída em três anos e meio, tornando árdua e complexa a tarefa de recrutar e identificar trabalhadores, conferindo um mínimo de formalidade aos vínculos trabalhistas. Foto: Arquivo Público - DF


O erguimento do Palácio do Congresso Nacional foi um dos maiores desafios para arquitetos, engenheiros e operários, dado o arrojo e o ineditismo da solução construtiva das cúpulas do Senado (imagem) e da Câmara dos Deputados. Foto: Arquivo Público - DF


Tida por muitos como a maior realização do povo brasileiro, a fundação de Brasília despertou o orgulho e aumentou a autoestima de muitos que para cá vieram, mesmo nas mais humildes ocupações. Foto: Arquivo Público - DF


Um dos maiores feitos de Brasília foi juntar gente de todos os lugares do país, levando a uma comunhão inédita que reforçou o sentido de diversidade na nacionalidade. Foto: Arquivo Público - DF


O homem simples do interior é, no fim das contas, quem produz o milagre de materializar a obra modernista revolucionária e de repercussão mundial, simbolizada nos pilotis ao fundo. O que esses pilares elevando o primeiro pavimento recomendam, é a livre circulação. Foto: Arquivo Público - DF


O presente pesa menos sobre o ombro quando se leva o futuro na cabeça. Foto: Arquivo Público - DF


Tudo em Brasília soava transformação, no dinamismo e no calor da hora, quando cada peça era essencial e todas tinham que se encaixar perfeitamente para que o sonho se erguesse do nada, firme e duradouro. Foto: Arquivo Público - DF


A alegria compensava o esforço, mas também era o motor de desafios por parte de um contingente que não tinha dúvida sobre seu papel e criava símbolos em combustão instantânea com o que tinha à mão. Foto: Arquivo Público - DF


Mitos de uma epopeia que afinal se cumpria, os candangos se reuniram no espaço público para a inauguração da cidade, já carregando no semblante uma incerteza quanto ao porvir. Ao fundo, ainda envolto em andaimes, o prédio mais proeminente da área monumental, do Congresso, justamente o que representa o povo em assembleia. Foto: Arquivo Público - DF


Dos tempos gloriosos aos dias da vida comum, restou a esperança de que a cidadania seja a glória maior. Tão aberta para o mundo como uma torre, tão imensa quanto o céu de Brasília. Foto: Nelson Oliveira/Agência Senado


Filha de candangos, a escritora, radialista e líder comunitária Leilane Rebouças posa em frente ao memorial aos operários mortos na Vila Planalto. Foto: Nelson Oliveira/Agência Senado

Segundo o relato de alguns moradores da Vila Planalto, como o Sr. Geraldo Rezende, que trabalhou no Armazém da Construtora Rabello durante a construção do Palácio da Alvorada, grande parte dos trabalhadores candangos que chegaram a cidade na década de 50 não possuíam sequer documentos ou carteira de trabalho. E não tinham qualquer experiência que não fosse na agricultura de subsistência.
O acesso à educação para as pessoas que viviam no interior do Brasil nas primeiras décadas do século XX era difícil, por falta de estrutura municipal e devido à pobreza da população. Assim, veio para Brasília um grande contingente de pessoas sem estudo e sem qualquer qualificação profissional na área de construção civil. Essas pessoas eram, então, contratadas como serventes e a elas eram entregues pás e picaretas para a abertura de estradas e ruas. As que sabiam ler e escrever e "fazer contas” podiam ser contratadas, por exemplo, como apontadores, isto é, responsáveis por fazer registros diversos, como a quantidade de materiais consumida em determinado período.
O espaço dos acampamentos era hierarquizado e controlado. Só entravam os trabalhadores empregados. E havia vigias na entrada de cada acampamento e alojamento para impedir que os peões entrassem com bebidas alcóolicas e armas. O cartão do Instituto Nacional de Imigração e Colonização (Inic) era o documento que substituía os demais. Ao ser registrado, o trabalhador sem qualificação ia para o almoxarifado, onde recebia o cartão que lhe daria acesso ao acampamento e a alimentação na cantina; um cobertor e o travesseiro; a pá e a picareta; e recebia a orientação de procurar o encarregado e obedecer às ordens dele.
Os acampamentos eram hierarquizados. Havia alojamentos de engenheiros, encarregados e mestres-de-obras, peões solteiros e peões casados. Os alojamentos dos peões de obra eram precários, sem qualquer privacidade: as camas eram feitas pelos marceneiros com colchões de capim, que geralmente estavam infestados de percevejos. Os trabalhadores guardavam os seus pertences em suas malas. Já a casa dos engenheiros era ampla e confortável. A rotina do trabalho era exaustiva, os operários começavam a trabalhar às 6h da manhã, até às 12h, com intervalo de uma hora, e novo turno de trabalho até as 18h. Muitos faziam a chamada “virada”, ou seja, trabalhavam dia e noite ininterruptamente movidos a Coca-Cola com café ou rebite a fim de aumentar os rendimentos já que o pagamento se dava pelo número de horas trabalhadas. De acordo com as folhas de pagamento dos funcionários da NOVACAP, do ano de 1957, o salário/hora era de acordo com a profissão e se o trabalho era realizado no diurno ou noturno, conforme a tabela abaixo, em moeda da época:
  • Carpinteiro Cr$ 18 ou 21,60
  • Várias categorias de oficiais (eletricista, encanador, apontador etc.) Cr$ 20 ou Cr$ 24
  • Trabalhadores sem qualificação Cr$ 10 ou Cr$ 12
  • Guarda Cr$ 10 ou Cr$ 12
  • Motorista Cr$ 25 ou Cr$ 30
O trabalho era de alta rotatividade e muitos trabalhadores se qualificavam aprendendo ali mesmo no canteiro de obras com os profissionais habilitados. Entretanto, isso não era garantia de que seriam contratados naquelas categorias. Era mais interessante para as empresas manterem trabalhadores aprendizes e ajudantes realizando a mesma tarefa que os profissionais e ganhando menos. Os candangos trabalhavam sem qualquer proteção, e os acidentes de trabalho (alguns resultando em morte) eram muito comuns, especialmente as quedas dos prédios em construção. Meu pai, Francisco Felix Rebouças trabalhou em diversas construtoras e afirmava ter assistido a vários trabalhadores caírem. Ele dizia que quando alguém caía de uma obra a sirene tocava e os corpos eram cobertos por lona e desapareciam imediatamente.
Embora muita gente duvide, e não tenham sido colhidas provas, o chamado “massacre da Pacheco Fernandes” de fato ocorreu, segundo o que muita gente relatou na época.
Durante o Carnaval de 1959, em 8 de fevereiro, uma briga na cantina da Construtora Pacheco Fernandes Dantas, localizado na atual Vila Planalto, gerou o episódio mais controvertido da construção de Brasília. Depois de reclamarem da comida estragada, um grupo numeroso de operários discutiu com funcionários do restaurante e o conflito resultou em um quebra-quebra. Foi chamada então a Guarda Especial de Brasília (GEB), temida pela sua truculência, que enfrentou a resistência dos candangos.
Para manterem sua autoridade, os guardas retornaram à noite, reforçados em número e armas. Invadiram os acampamentos. A versão oficial fala em apenas um morto e 48 feridos leves. No entanto, trabalhadores que estiveram ali relatam a movimentação de caminhões carregados de cadáveres no pátio da empreiteira. Esses relatos são consistentes com o que meu pai contou sobre o clima da época. Além disso, protestos e denúncias eram muito restritos naquele ambiente tumultuado sem meios de comunicação como hoje. E havia muitos motivos para que o massacre fosse acobertado. Quanto às famílias distantes que perderam seus entes, podem ter entendido que o desaparecimento era mais um caso de retirante que jamais voltou à sua terra, por morte natural, porque não pode ou porque não quis mais. Em 1992, o cineasta Vladimir Carvalho lançou o documentário Conterrâneos Velhos de Guerra, para o qual entrevistou várias pessoas sobre esse episódio. Vladimir ficou tão impressionado com os relatos, que custeou um monumento em homenagem às vítimas na Vila Planalto.

 

Leiliane Rebouças, escritora, radialista, moradora da Vila Planalto e líder comunitária. É autora do livro Vizinhos do Poder: História e Memória da Vila Planalto, em edição.


Reportagem: Nelson Oliveira
Pauta, coordenação e edição: Nelson Oliveira
Coordenação e edição de multimídia: Bernardo Ururahy
Pesquisa fotográfica: Ana Volpe
Foto de capa: Arquivo Público - DF