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A cidade em debate

Nelson Oliveira
Publicado em 20/4/2020

Por ter sido uma ocupação planejada — e em figurino inusitado para a época — Brasília tem sido objeto de intensas discussões. As controvérsias começaram mesmo antes de sua fundação, há 60 anos. A princípio, discutiu-se a necessidade de transferência da capital para o interior. Já se falava disso em finais do século 18. Quando decidiu-se pela mudança nos anos 1950, ganhou força a polêmica em torno da conveniência de se fazê-la num país com poucos recursos: o projeto foi tachado, entre outros adjetivos, de faraônico. Notadamente quando se revelou a grandiosidade do que Lucio Costa formulara.

Nos anos que se seguiram à inauguração, o deslumbramento em face do feito urbanístico e arquitetônico conviveu com questionamentos sobre a adequação da cidade à vida humana saudável. Não no sentido do espaço e da oferta de parques e jardins — estamos justamente tratando de uma cidade-parque — mas do distanciamento social, expressão agora em voga por causa da pandemia da covid-19. Queixavam-se da ausência de esquinas, de burburinho, de relações moldadas, não por vizinhança e identidade cultural, mas por poder econômico e político. A capital chegou a ser acusada de provocar separações de casais. Muita gente transferida para cá voltava aos seus locais de origem assim que podia, horrorizada com “a frieza monumental de Brasília”.

O transporte baseado no automóvel abriu flanco a essas críticas. Por muito tempo, o cidadão brasiliense foi descrito por meio de uma paródia anatômica como tendo "cabeça, tronco e rodas". Os edifícios, em sua maioria magníficos, de Oscar Niemeyer — apesar do inusitado de alguns deles — não foram objeto de maior reparo, salvo pelo foco na parte estética e uma preocupação menor com o conforto de seus ocupantes.

O que sempre esteve em contenda mesmo foi o traçado urbano, determinante para o fluxo e a relação das pessoas com o espaço, com os equipamentos e entre si.

Para refletir sobre a equação urbanística de Brasília, a Agência Senado submeteu perguntas ao urbanista Jorge Guilherme Francisconi, estudioso do Plano Piloto e seus desdobramentos, e à arquiteta Maria Elisa Costa, filha e guardiã do legado de Lucio Costa. Além disso, obteve o contraponto do jornalista Mario Salimon, músico e cineasta, que realizou um documentário sobre a capital.

Maria Elisa Costa ao lado do urbanista Lucio Costa, seu pai (foto: Orlando Brito)

Depois de ler o conjunto das indagações, acho que o texto que segue, de certa forma, responde ao conjunto delas.

Mesmo porque acompanho Brasília desde o primeiro momento, mas moro no Rio de Janeiro, ou seja, vejo Brasília como a capital do meu país, mais do que como capital do Distrito Federal.

A meu ver, o aniversário dos 60 anos de Brasília seria uma oportunidade ímpar para se instituir, formalmente, o que aqui proponho.

A Bacia do Paranoá é o território original de Brasília, onde JK [Jucelino Kubitscheck] lançou a âncora inventada por Lucio Costa, que assegurou a transferência definitiva da capital do país para o Centro-Oeste.

Com o local já escolhido de longa data, aconteceu a decisão extraordinária de construir a cidade, cuja viabilização contou com a dedicação apaixonada de gente do Brasil inteiro, do presidente [da República] ao mais modesto dos candangos — que aprendeu a construir, construindo — e surgiu do nada, em três anos, Brasília, inaugurada em 21 de abril de 1960.

A partir de então, com o rolar dos anos, a área urbana do DF se desenvolveu ao sabor dos ventos, misturando projetos urbanos setoriais sem nenhum planejamento de conjunto, incorporando e regularizando invasões, etc. Ou seja, em termos tradicionais brasileiros, a única coisa nova continua sendo o Plano Piloto da criação da cidade.

Brasília hoje tem cerca de três milhões de habitantes — e, bem ou mal, a identidade original do "gesto primário" sobreviveu, em grande parte, graças ao governador José Aparecido de Oliveira, a quem devemos o tombamento do Plano Piloto e seu entorno.

Brasília fotografada da Estação Espacial Internacional (foto: Nasa)

Para assegurar a permanência ao longo do tempo desse testemunho vivo de um momento sem precedentes na nossa história, é importante perceber que no Distrito Federal convivem duas situações urbanas opostas e adjacentes: de um lado, extensa área urbana em expansão; de outro, seu núcleo original a ser preservado.

Em termos administrativos, trata-se de duas abordagens necessariamente opostas. Uma coisa é gerenciar o desenvolvimento urbano de uma cidade em expansão; outra, bem diferente, tem o objetivo de assegurar a preservação de seu núcleo original.

Explicitar essa diferença de forma clara, sem ambiguidade, é o primeiro passo para que se estruture a gestão pública tendo em vista as características próprias de cada caso. A parte maior da área urbanizada seria administrada na forma tradicional das grandes cidades do país, com planejamento urbano de qualidade, inteligente e objetivo.

Já cuidar do centro histórico é mais simples: uma vez estabelecido institucionalmente que o centro histórico da capital federal é a área delimitada pelo divisor de águas da Bacia do Paranoá (ou seja, delimitação geograficamente definida), basta que toda e qualquer intervenção nessa área, mesmo não sendo localizada dentro do perímetro tombado ou em seu entorno direto, seja necessariamente compatível com o texto original da Portaria 314 do IPHAN [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ]— cabendo a fiscalização dessa compatibilidade a uma comissão técnica permanente e de alto nível, criada para esse fim e com poder de veto, contando com representantes da sociedade civil organizada, da Presidência da Republica e do Governo do Distrito Federal [GDF].

Áreas adicionadas ao projeto original do conjunto urbanístico de Brasília (imagem: Iphan)

É da maior importância para a defesa histórica e cultural do Brasil, que possamos proteger o centro histórico da multiplicidade de pressões que atuam sobre a área urbana. Desta forma, inclusive, a efetiva aplicação da legislação do tombamento de Brasília, seria menos vulnerável a manipulações do que permanecendo, como é hoje, de exclusiva responsabilidade do IPHAN.

E nunca é demais lembrar que a própria concepção do Plano Piloto de Lucio Costa inclui o horizonte definido pelo divisor de águas da Bacia do Paranoá, parte indissociável da paisagem construída. Em Brasília, a presença desse horizonte, que permite ao céu encostar no chão, é tão importante quanto para o Rio de Janeiro a de suas montanhas.

Maria Elisa Costa

Arquiteto e urbanista Jorge Guilherme Francisconi (foto: Roque de Sá/Agência Senado)

É preciso manter o Plano Piloto como 'cidade viva'

O adjetivo “monumental” poderia ser perfeitamente aplicado ao currículo do arquiteto e urbanista Jorge Guilherme Francisconi, ex-professor da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade de Paris XII, consultor de órgão públicos no Brasil e no exterior, além de diretor de empresas públicas de planejamento urbano e transportes, entre dezenas de outras atividades acadêmicas iniciadas em Porto Alegre, onde se formou em 1966 pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Na Syracuse University (EUA), obteve os títulos de mestre em planejamento regional e doutor em economia urbana, planejamento regional e áreas metropolitanas.

É, portanto, com autoridade, que ele opina sobre a questão urbana de Brasília, cidade desde o início envolvida em intenso debate sobre seus fundamentos e características: capital planejada e ícone do modernismo. Embora classifique o projeto como “genial”, Francisconi observa que a invenção de Lucio Costa poderia ter ganho mais com o “planejamento integrado”, já em voga no final dos anos 1950, do que com o “ultrapassado modernismo” de Le Corbusier, o pai dos modernistas brasileiros.

De todo modo, em entrevista à Agência Senado, Francisconi defende a preservação dos muitos méritos da obra de Lucio Costa, mas não o congelamento de uma cidade com potencial para oferecer ainda muito a seus moradores e lamenta o esquecimento em torno das características exigidas de uma capital.

Agência Senado: Como o senhor vê a trajetória de Brasília em 60 anos?

Resposta: Na origem e gênesis, capital federal de país agrícola, com 45% de população urbana, com 60% da exportação dependendo do café, que em 1960 buscava o desenvolvimento como sonho/solução para suas mazelas. O plano piloto "inventado" por Lucio Costa é genial, produto de uma criatividade original e diferenciada. Dentre outras propostas, foi a única com a monumentalidade que reflete as expectativas de uma nação. Curiosamente, o projeto foi inspirado no já então ultrapassado modernismo “le corbusiano" e não no planejamento integrado que era adotado no Brasil, como bem lembrou Jorge Wilhelm na revista Acrópole (1961).

Quanto à sua evolução, o plano piloto de Lucio Costa foi alterado e tornou-se o Plano Piloto da Novacap [companhia responsável pela construção]. Hoje, a civitas [capital] é o coração de metrópole com mais de três milhões de pessoas. A proposta de Lucio foi mantida, mas permanece esterilizada. O Plano Piloto abriga menos de 300 mil habitantes. Bem menos que os 500 mil previstos. As características exigidas de uma capital nacional foram esquecidas. Ninguém mais trata disso. Sejam os preservacionistas do patrimônio histórico, que valorizam o passado e divulgam belas fotografias; sejam os políticos, que não investem na qualidade e funções da civitas. A rentabilidade política [votos] do Plano Piloto é baixa.

AS: Em que medida, o plano piloto traçado por Lúcio Costa vem sendo respeitado. O que acabou implementado a partir do documento Brasília Revisitada, escrito pelo próprio Lucio, em 1987?

R: O plano piloto de Lucio é mantido, mas de forma estéril e semi-congelado. Tem sido esquecido. O que era essencial para que a civitas funcionasse foi implantado nos anos 1960, 1970 e 1980. Em especial, as escalas habitacional e gregária. Na escala monumental pouco foi feito além do funcionalmente necessário. A escala bucólica tem sido usada como área de expansão urbana — sem qualificação própria e como extensão da Esplanada. A escala não tem padrão urbanístico compatível com os fundamentos de Lucio Costa, como se observa em seus prédios dispersos. Os que foram projetados por Oscar Niemeyer para tribunais superiores — sem concorrência, por decisão do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, destruíram a dominância formal que Lucio destinara à Esplanada.

Prédio do Superior Tribunal de Justiça, projetado por Oscar Niemeyer e inaugurado em 1995

AS: Que caminhos o senhor indica para a preservação do legado que é a área tombada de Brasília? O que fazer com o restante do Distrito Federal? Como avalia certas mudanças na função de alguns setores, como o Setor Gráfico?

R: Aqui temos várias questões. Quanto ao legado, a resposta é manter o Plano Piloto como "cidade viva”. Cidade que atenda e responda às demandas que surgem. Cada setor com suas características, buscando sempre integrar as quatro escalas definidas por Lucio.

Quanto ao restante do Distrito Federal cabe estabelecer um Plano de Desenvolvimento e Ordenamento Territorial (PDOT), com diretrizes gerais para todo o território, com destaque para serviços e atividades similares às "funções de interesse comum" de regiões metropolitanas indicadas na Constituição Federal. Isso porque o Distrito Federal tem a estrutura urbanística conurbada própria das metrópoles. Vale destacar que os planos urbanos da maioria das cidades-satélite são de baixa qualidade.

Quanto às relações da metrópole com o Plano Piloto, é necessário estabelecer planos independentes e complementares. Quanto ao restante do território caberia elaborar PDOT para todo território do DF, com plano urbanístico próprio para cada região administrativa.

Penso que mudar o uso e a ocupação do Setor Gráfico foi correto e muito importante para atualizar e fortalecer o tecido urbano. Este setor, igual ao Setor de Garagens, o de Motéis e de Postos de Abastecimento, e a área no entorno do Palácio do Buriti, são áreas esclerosadas. Não há gráficas ou Diário Oficial da União (DOU) naquela área, assim como os ministérios não têm frotas para ocupar o Setor de Garagens. Mas o esclerosamento é mantido debaixo do tapete pelo Governdo do Distrito Federal, pelo IPHAN, pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) e pelo Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (CREA), além de outros, que optaram por manter as coisas como estão. Desta forma, evitam avaliar, debater e decidir sobre qual o melhor uso para cada um desses setores.

AS: Alguns estudiosos veem a área tombada e as questões urbanísticas do DF, como um todo, espremidas entre os interesses econômicos e imobiliários mais danosos e uma rigidez excessiva por parte dos defensores do Plano Piloto original e do que vigia quando da ascensão de Brasília a patrimônio da humanidade.

R: O papel do planejamento é pensar no futuro. Com projetos e propostas concretas. No Plano Piloto, ocorre algo idêntico ao que aconteceu com os condomínios irregulares. Como observou Ricardo Farret em seu trabalho, havia muitos habitantes no DF que queriam morar em casas. A demanda crescia, os urbanistas não definiam áreas para atender esta demanda e o mercado respondeu de forma informal. Criminosa do ponto de vista legal. Tudo porque faltou planejamento urbano que atendesse a uma demanda da população. Na área tombada há muito saudosismo e falta planejamento orientado para as novas demandas. Muitas reclamações corretas surgem quando o setor privado aproveita as oportunidades e trata de ter o maior lucro possível. Mas são reclamações ex-post [depois dos fatos ocorrerem] visto que não houve projetos e planejamento ex-ante [antes do fato].

As cidades são entes vivos que seguem lógicas conhecidas, as quais vão sendo aperfeiçoadas pelo saber econômico, geográfico, urbanístico, ecológico, sociológico, jurídico e da práxis política. Este saber fundamenta planos diretores urbanos e ambientais, leis de ocupação e uso do solo, códigos de obras e tudo mais. E os fundamentos de Lucio podem ser usados de forma flexível para atender novos saberes e novos tempos. Mas quem trata disso no GDF?

Definidos os fundamentos, tudo pode e deve ser avaliado e revisto. Na questão do transporte público, falta separar o sistema do Plano Piloto do sistema da metrópole. A plataforma rodoviária está sendo usada como hub da metrópole. Uma atividade que deveria ser localizada atrás da Rodoferroviária. Falta um plano global e qualificado para o DF, que integre modais de transporte urbano (pedestre, bicicleta, moto, vans, onibus, VLTs e motos). O que temos hoje são concessões — como a que está sendo feita para o VLT na W3, em trechos curtos a partir da iniciativa de empresários — com propostas que, com freqüência, não são prioritárias nem rentáveis. E quem ficará com a conta é o setor público.

Plataforma inferior da Rodoviária do Plano Piloto, na região central de Brasília (foto: Ana Volpe/Agência Senado)

AS: Por outro lado, 0 senhor vê alguma viabilidade na recuperação de áreas que foram deturpadas, como aquelas em que comerciantes fizeram "puxadinhos" ou instalaram quiosques em total desacordo com a linha urbanística e arquitetônica do Plano Piloto? Por que nunca vingam os planos para recuperar a rodoviária, hoje um dos lugares mais sem conforto e barulhentos de Brasília. Prevalece a mentalidade de que se é para a população pobre, vale qualquer coisa?

R: Há vários tipos de puxadinhos. Alguns correspondem ao que de melhor pode ser oferecido pelo urbanismo de Lucio Costa. Outros são deprimentes e desqualificam o tecido urbano. Mas as críticas misturam o joio com o trigo e não levam a nada. Caberia fazer levantamento do que há para definir padrões desejáveis, aceitáveis e inaceitáveis. Quem promoveria os estudos? Quem elaboraria normas e padrões?

Quanto aos quiosques, são uma "vergonha" que ocorrem porque o setor público faz as concessões, porque aparentemente não há critérios urbanísticos e porque quiosques oferecem serviços que planos urbanos insistem em ignorar. Como acontece com restaurantes e serviços que proliferam na Esplanada e no Setor de Autarquias Sul. Tarefa que cabe aos urbanistas.

AS: Também há críticas quanto às dificuldades de envolver a sociedade no cuidado com Brasília, na suposição de que os cidadãos, mesmo os ativistas, não têm as qualificações técnicas para lidar com esse tipo de assunto? Se a sociedade tivesse mais força não teria evitado, por exemplo, o aumento de gabarito de edifícios e a mudança de destinação de algumas áreas com riscos à qualidade de vida em Brasília?

R: Para envolver a população seria necessário criar um processo participativo. O Poder Legislativo não quer cumprir esta tarefa. Redes sociais mais estimulam o conflito que a convergência. Gestores da região administrativa do Plano Piloto não têm sensibilidade para o tema. Com isso, surge uma polarização destrutiva. Sem esquecer que, em meio aos cidadãos, há pessoas com mais qualificação técnica que muitos dos que ocupam cargos públicos.

A quebra de normas por políticos e gestores públicos é frequente, quase sempre associada a interesses marginais. Como aconteceu em Águas Claras [região administrativa do DF]. Para combater esses crimes, há instituições, como Ministério Público, CPIs, IAB, CAU, ONGs e outros que podem acionar a polícia e a Justiça. Mas o processo judiciário é ineficaz e lento; as leis favorecem os de colarinho branco; o estamento jurídico-administrativo constitui grupo que se auto protege. Ou seja: o segmento da sociedade com capacidade e dever de agir tem sido conivente. A chamada sociedade só entra em casos extremos, a partir de pessoas competentes e corajosas. Como foi o caso de Vera Ramos, do Instituto Histórico e Geográfico do DF, quando enfrentou proposta do governador para construção [de blocos] do Minha Casa Minha vida no portal extremo oeste do Eixo Monumental — local onde deveria haver algo inovador e compatível com o espírito que rege a capital nacional.

Águas Claras é caracterizada pelo adensamento, em contraste com as demais regiões do DF (foto: Ana Volpe/Agência Senado)

AS: É possível superar o conflito entre manter as premissas de LucioCosta e adensar certas áreas? Há os que defendem que adensar é melhor para o meio ambiente do que abrir novas áreas para edificação.

R: O plano-piloto que Lucio Costa planejou deveria ser bem mais denso do que é hoje. Lucio previu 500 mil pessoas e hoje temos cerca de 300 mil. Além disso, Lucio sempre aceitou novas demandas e alterações no projeto — desde de que compatíveis com seus fundamentos urbanísticos. Ou seja, não há qualquer dificuldade em propor o adensamento populacional. Sem esquecer que, para escala gregária, Lucio declarou que queria Brasilia com um centro de cidade semelhante ao de outras grandes cidades do mundo.

O desafio está em como acolher 40 mil pessoas a cada ano, 400 mil na década. Adensar é a única forma de manter territórios em seu estado natural. Mas temos "patrimonialistas" e "ambientalistas" radicais. O tempo exige mudanças de uso e cabe urbanizar áreas com vocação urbanística e pouca densidade. Mas o radicalismo dominante impede o planejamento sensato e estimula a ocupação de áreas periféricas e a destruição do meio ambiente.

AS: Dois importantes elementos da arquitetura de Brasília, a Torre de TV e a Rodoviária, são de autoria de Lucio Costa. Como o senhor vê o estado da torre e a sua utilização? O restaurante nunca teve continuidade, por exemplo. A feira de artesanato, antes realizada à sombra da torre, agora está instalada definitivamente em um terreno ao lado. Isso é adequado?

R: O projeto da Torre de TV é muito medíocre como arquitetura. Já no restaurante, a falta de continuidade ocorre porque há baixa demanda e/ou porque suas instalações são inadequadas, ou porque os termos de concessão são inadequados. Talvez ocorra algo semelhante ao que se observa no refeitório que Oscar Niemeyer projetou no teto do Teatro Nacional. Quanto à feira de artesanato, "a emenda ficou pior que o soneto". O projeto construído a partir de concurso público conduzido pelo IAB é inadequado quanto ao funcionamento (conversei bastante com os usuários); é feio, sem qualidades estéticas e também matou o "espírito" e peculiaridades da feira antiga.

AS: Um outro prédio, previsto no relatório do Plano Piloto, mas projetado por Oscar Niemeyer, é o Touring Club, deturpado pela utilização, ora como repartição, ora como igreja, e tendo na parte debaixo uma extensão da Rodoviária. O que se poderia fazer em relação a esse belo edifício. Ele não deveria servir de comunicação entre os setores que estão acima da Rodoviária e o Complexo Cultural da República?

R: Este prédio, maravilhosa criação de Oscar, tem enormes potenciais. Já tentei, décadas atrás, recuperá-lo para que fosse um ponto de encontro debruçado sobre o trecho mais nobre do Eixo Monumental e museu da memória do Plano Piloto. Enfrentei muito desinteresse e muita burocracia. Para ampliar minha frustração, o prédio foi depois ocupado pela polícia e como terminal de ônibus metropolitano. Um prédio que certamente merece um projeto especial.

AS: A praça entre o Museu da República e a Biblioteca Nacional, por outro lado, é toda cimentada e esquenta muito, especialmente no verão e nos meses de maior seca. Esse tipo de problema poderia ser solucionado sem desfigurar o arranjo arquitetônico?

R: O problema está na concepção de Oscar. Ele repetiu aqui o que tinha feito no Memorial da América Latina. Como disse Roland Corbisier, grande crítico de arte deste país, Niemeyer foi um grande artista plástico. Penso que Oscar ignora a funcionalidade e o meio ambiente, tanto no interior e no entorno de suas obras. A implantação de jardins, fontes e espelhos d’água poderia ser feita para criar um ambiente estética e ambientalmente qualificado.

Museu da República e, ao fundo, à direita, a Biblioteca Nacional (foto: Geraldo Magela/Agência Senado)

AS: Está claro que a visão idílica que Lucio Costa tinha da relação entre o carro e o pedestre se desfez no início dos anos 1970. Em depoimento à Comissão do DF no Senado, em 1974, ele já manifestou desagrado quanto à posição do pedestre na cidade. E, em 1987, foi bem enfático ao dizer que estranhava o DF não ter ainda um bom sistema de transporte público.

R: O Brasil era rural nos anos 1950. Só passou a ser urbano no final dos anos 1960. O carro era amenidade urbana. Havia poucos, sem congestionamentos. Digo isso porque vivi essa época. O transporte público por bondes era usado por todos, democraticamente. A má qualidade do transporte público hoje é produto de gestores públicos e privados que ignoram o interesse público. Soma-se a isso, a baixa densidade e a concentração do emprego no Plano Piloto, que geram IPK (índice passageiro por quilômetro) muito baixo. Já as vias para pedestres são outra questão. Até hoje não tivemos urbanistas e/ou governantes preocupados com o tema. As calçadas cariocas e paulistas, dos anos 1930 aos dias de hoje, são generosas e aconchegantes. No Plano Piloto temos calçadas, em quadras comerciais e setores centrais, que são verdadeiros acintes à população. Vale lembrar que para atender cadeirantes, nos anos 70 e 80 havia rampas em meio-fios do Eixo Monumental. Tudo construído com recursos e segundo normas da EBTU [Empresa Brasileira de Transporte Urbano]. Reformas mais recentes destruíram as rampas. Ou seja: antes não havia legislação, mas havia cuidados; hoje, temos legislação, que é ignorada.

AS: Como vê, portanto, a relação de Brasília e do DF com demandas que são antigas, mas que, afinal, configuram o novo quadro de conceitos de cidadania: preferência para pedestres, ciclistas e usuários de transportes públicos, especialmente os menos poluentes? Como os governos têm reagido às exigências de "direito à cidade", mencionadas por estudiosos, como o geógrafo David Harvey?

R: Sei que nossa academia ignora urbanistas brasileiros como Jaime Lerner, Jorge Wilhelm ou Lucio Costa e prefere seguir autores estrangeiros como Manuel Castells, David Harvey e Bill Hillier. Por isso, talvez, o equívoco: O Direito à Cidade é um livro de Henry Lefebvre publicado no Brasil em 1991.

Quanto ao conceito de "cidadania", o planejamento urbano segue tendência que Aldo Rebelo destacou em sua recente análise do cenário político. Em ambos, os princípios e fundamentos básicos foram substituídos por causas identitárias. No urbanismo, orientadas para o pedestre, o ciclista, o poluidor, o meio ambiente natural. Estes temas tornaram-se os focos da questão urbana e ocupam a prioridade que cabe dar a temas essenciais, como o combate à injustiça social, qualidade de vida para todos ou promoção da base social e econômica mediante planos diretores e normas urbanas. Planos que atendam a estes objetivos poderão garantir o “direito às cidades” para todos, mas, por hora, o que temos são práticas urbanísticas similares às práticas políticas. Nestas, a democracia e os direitos do povo, das ideologias de esquerda; assim como o desenvolvimentismo e o mercado, das de direita, foram substituídos por traços e "identidades biológicas, raça, gênero, orientação sexual”, como lembra Aldo Rebelo. No urbanismo atual temos várias causas identitárias e grupais. São causas menores que obscurecem grandes temas urbanos locais e nacionais.

› Leia mais opiniões de Jorge Guilherme Francisconi em http://www.jorgefrancisconi.com.br/

O jornalista, músico e cineasta Mario Salimon

O que se chamou Plano é, na verdade, uma diversidade de espaços e possibilidades de vida. Nesse sentido, há coisas boas e outras nem tanto. Nasci e cresci no interior de São Paulo, numa cidade "normal", apertadinha, cheia de camadas acumuladas ao longo de mais de uma centena de anos. Daí que Brasília foi um deslumbramento pra mim, com seus espaços amplos e uma massa de verde com a qual não estava mesmo acostumado. Eu me lembro de passar horas andando a esmo pela Asa Norte, onde inicialmente morei, explorando canteiros centrais, balões, tesourinhas e outros elementos, ouvindo música eletrônica no walkman. Aquilo combinava muito para quem cresceu, como eu, no auge da era espacial. Não me lembro de ter conhecido, em minhas andanças por 13 países e explorações documentais, um modelo de adensamento mais agradável que a Superquadra. Ademais, respira-se muito bem com este verde todo, mesmo no tempo da seca. Contudo, há problemas, é lógico, como bem apontaram inúmeros estudiosos, inclusive retratados no documentário Superquadras, que fiz com o [fotógrafo] Marcelo Feijó. O preço do metro quadrado é excludente, a escala humana, por vezes, se perde em certos deslocamentos e muito do que se previu em termos de urbanismo acabou sendo deixado de lado, como a possibilidade de as pessoas passarem por baixo dos blocos, visto que, hoje, muitos prédios possuem cercas vivas ou outros expedientes que cercam os espaços antes abertos com os pilotis. Num cômputo geral, penso, cá com minha absoluta falta de conhecimento técnico no campo da arquitetura, que a inovação foi válida e não suplantada. Basta olharmos para os bairros que surgiram depois na cidade!

A superquadra é uma das inovações do projeto de Lucio Costa (fotos: Ana Volpe/Agência Senado)

Em termos de lacunas, não saberia afirmar se houve ou não preparação para tanto, mas sinto que faltou um modelo de crescimento e desenvolvimento que levasse em conta as incongruências que se vão gerando com a dinâmica da sociedade nos aspectos ambientais, econômicos e políticos. A impressão que tenho é que os governos perderam o controle e o trem se descarrilhou, sendo agora impossível recuperar a verve inicial, muito marcada pela intencionalidade, a vanguarda e o aspecto comunal.

Penso que Brasília tem lá suas esquinas, que são diferentes daquela mais comum. Ora, o que são os quatro cantos de cada bloco? Quem seria louco de dizer que as pessoas não se encontram e interagem em Brasília? Fiz tantos amigos e amigas aqui que mal dou conta de ver os mais íntimos! E são pessoas de uma qualidade incrível!

O tal distanciamento social trazido pela covid-19 nos mostra o quanto éramos próximos de tanta gente. Ficamos doidos para ir pra rua, encontrar colegas de trabalho, amigos de bar, artistas e mesmo as pessoas com quem interagimos aleatoriamente graças ao permanente deslocamento que nos impõe a vida.

O Plano Piloto deve ser preservado, mas não deve, como modelo, direcionar absolutamente o futuro, pois há que levar em conta o fato de que o mundo de hoje não é o mesmo daquele que pautou o projeto nos anos 1950. Aprender com tudo que deu certo e errado no Plano e nas demais soluções, sejam intencionais como as Superquadras, ou frutos do acaso e do descaso, como as favelas, pode ser uma forma de avançar rumo a novos modelos melhores em termos de qualidade de vida para todos.

Mario Salimon

Assista ao documentário Superquadras, de Mario Salimon e Marcelo Feijó


Programa da TV Senado conta um pouco da história da capital na voz do arquiteto João Homar, que participou da construção


Reportagem: Nelson Oliveira: Nelson Oliveira
Pauta, coordenação e edição: Nelson Oliveira
Coordenação e edição de multimídia: Bernardo Ururahy
Repórter fotográfica: Ana Volpe
Foto de capa: Ana Volpe
Vídeo TV Senado: Carine Beluzzo (reportagem), Diana Svintiskas (direção); Diana Svintiskas e Daniel Taterka (edição)