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O que a população e a imprensa estão chamando de “crise coletiva de ansiedade” afetou, na semana passada, 26 alunos da Escola de Referência em Ensino Médio (Erem) Ageu Magalhães, no bairro de Casa Amarela, Zona Norte do Recife. Com falta de ar, tremor e crise de choro, os adolescentes tiveram de ser socorridos pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), mas não precisaram de transferência para unidades de saúde.
Ainda que tenha obtido notoriedade — e motivado a interferência direta de um braço do serviço público de saúde — a ocorrência em Recife está longe de ser um caso isolado de manifestação psíquica exacerbada depois da fase mais aguda da pandemia, quando também cresceram os casos de violência doméstica, feminicídios e aumentaram as notícias de pais que mataram os próprios filhos.
Dados da Secretaria da Educação de São Paulo, divulgados pelo jornal Folha de São Paulo, dão conta de 4.021 casos de agressões físicas nas unidades estaduais de ensino nos dois primeiros meses de aula deste ano — 48,5% a mais que no mesmo período de 2019, o último de aulas presenciais antes da crise sanitária.
Um dos episódios emblemáticos desses tempos de tensão psicossocial foi o que envolveu em Planaltina (DF) um treinador físico, a esposa dele e um homem em situação de rua. Ao presenciar uma cena íntima entre o andarilho e a mulher, o treinador o retirou do carro em que eles estavam e o agrediu a socos e pontapés, mesmo com o agredido fora de combate. A história ganhou repercussão nacional pelo inusitado da relação, pelo contexto de violência e por embaralhar percepções sobre o estado em que se encontravam esses três personagens. "Achei que ele estava estuprando minha esposa", alegou o marido. Tanto ela quanto o mendigo, porém, garantiram que se tratava de um ato consensual, embora a mulher admitisse ter visto o rosto do próprio marido e de Deus na face do homem maltrapilho e sujo de quem se aproximara. Ela estaria passando por tratamento psíquico. Por fim, áudios com declarações da mulher vazaram para a internet e o andarilho, já convertido em celebridade instantânea, passou a dar entrevistas revelando detalhes do encontro, o que levou a uma onda de indignação, mas também de chacotas.
O que está acontecendo, ninguém tem certeza, na ausência de pesquisas de campo. No pátio das escolas e entre professores, especula-se que emoções reprimidas durante o isolamento social e a assimetria entre o ritmo dos ensinos virtual e presencial estariam entre as possíveis causas.
O fato é que, independentemente da trajetória que a covid-19 seguir daqui por diante, o impacto da doença será sentido por muito tempo em diversas esferas da vida humana. E foi visando preparar a saúde pública brasileira para as mudanças introduzidas pelo SarsCov-2 que o Senado aprovou, há um ano, projeto que cria um programa específico no Sistema Único de Saúde (SUS) voltado ao acolhimento de pessoas em sofrimento emocional causado pela pandemia — o PL 2.083/2020, do senador Acir Gurgacz (PDT-RO), que seguiu para a Câmara dos Deputados depois de modificado por emendas do relator, senador Humberto Costa (PT-PE), e outros senadores.
Além de buscar oferecer tratamento e apoio a pessoas emocionalmente atingidas pelo isolamento social, pela perda de familiares e pela própria covid, o autor mirou um futuro muito mais incerto do que aquele do mundo pré-coronavírus: “O programa poderá atuar para preparar a mente das pessoas para uma nova realidade de trabalho e vivência que surgirá nas mudanças advindas nas esferas administrativas públicas e privadas, novas formas de emprego, trabalho e relacionamentos”, escreveu o autor para justificar sua proposta. Por força de emenda do senador Rodrigo Cunha (PSDB-AL), o projeto prevê a manutenção das medidas por pelo menos setecentos e trinta dias após o término do isolamento social.
— Há indícios de que o pós-pandemia é um momento até mais crítico do que o durante a pandemia. De um ponto de vista social, a gente está caminhando para questões como desemprego, recuperação econômica, novo normal — alerta o psiquiatra André Russowsky Brunoni, doutor em Neurociências e Comportamento, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Diretor do Serviço Interdisciplinar de Neuromodulação do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da mesma faculdade e pesquisador sênior do Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (ELSA-Brasil).
Segundo ele, durante a Segunda a Guerra mundial, as taxas de suicídio foram “baixíssimas”, tanto do lado dos aliados quanto do Eixo, mas o quadro se inverteu ao final do conflito:
— É interessante ver que num momento de grande crise as pessoas tiveram resiliência, mas, depois da guerra, e principalmente nos países derrotados, houve um grande aumento [dos casos de suicídio].
De acordo com o senador Acyr Gurgacz, o isolamento potencializou os efeitos da covid sobre o relacionamento sócio-familiar e as relações econômicas, na medida em que dificultou, ou mesmo impediu, o “apoio imediato da família, dos amigos e dos profissionais de saúde, como psiquiatras e psicólogos”, nos momentos de abalo emocional. Ele destacou os idosos entre os grupos mais suscetíveis à depressão, ansiedade e suicídio em períodos de circulação restrita.
Marcos Garcia, doutor em Psicologia Social e professor associado da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), elenca entre os grupos mais vulneráveis o das pessoas que passaram por problemas financeiros maiores ou estiveram expostas à vulnerabilidade socioeconômica e a população de jovens.
— Mundialmente sabe-se que jovens, especialmente mais até do que crianças, pré-adolescentes, adolescentes, foram os grupos mais afetados. Isso se explica, especialmente, em função da perda de espaços de socialização, de escola, de amizade, que são fundamentais para todos nós, mas afetam mais as pessoas jovens — explica Garcia, que é membro do grupo de pesquisa Saúde Mental e Sociedade, com trabalho de campo voltado a estudantes e também a políticas de saúde mental durante a pandemia.
Reportagem publicada pela Agência Senado no dia 8 apresenta depoimentos de professores e diretores bastante preocupados com a saúde mental dos jovens no retorno às aulas presenciais. Há muitos casos de ansiedade, depressão, síndrome de pânico, agressividade e auto-mutilação. (acesse a matéria no Saiba mais)
Além das próprias restrições impostas em função da covid, uma das dificuldades em se avaliar com rigor o que tem se passado na cabeça e no coração dos brasileiros desde que a pandemia começou, em março de 2020, é a falta de pesquisas abrangentes e sequenciadas abordando um mesmo grupo de indivíduos escolhidos dentro de uma amostra representativa da população.
A percepção geral, refletida na imprensa e nas redes sociais, é de que aumentaram manifestações como ansiedade e depressão e houve crescimento da procura por consultas com psiquiatras e psicólogos e consumo de psicotrópicos e bebidas alcoólicas. Relacionadas às medidas restritivas de circulação, aumentaram os conflitos, inclusive com agressões e mortes, em torno de medidas de segurança sanitária, como o uso de máscaras. Não foram poucos, igualmente, os episódios de violência contra equipes de saúde nos locais de vacinação e os dramas de pacientes, internados ou não, em meio a uma moléstia devastadora. Até o momento, a covid atingiu 30 milhões de pessoas no país e matou mais de 660 mil, segundo os números oficiais.
Levantamentos pontuais detectaram no calor da hora a elevação dos transtornos mentais. Entre eles, o das unidades de Brasília e Mato Grosso do Sul da Fundação Oswaldo Cruz, que registrou as respostas de profissionais de saúde em várias especialidades, como enfermeiros e dentistas. No Distrito Federal, entre dezembro de 2020 a abril de 2021, 61,6% dos 831 que responderam a pesquisa relataram a percepção de sintomas variáveis (de leve a extremamente severo), de ansiedade. Percentual muito parecido (61,5%) relatou sintomas de depressão, e 65% relataram sintomas de estresse.
Antes da pandemia de COVID-19, estavam em tratamento ou acompanhamento psicológico ou psiquiátrico 196 desses profissionais, mas o contingente aumentou em 13,9% no período pesquisado e chegou a 309.
A pesquisa divulgada mais recentemente, Avaliação do Futuro, foi realizada pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo e o Instituto Ayrton Senna. Dois em cada três estudantes do 5º e 9º ano do Ensino Fundamental e 3ª série do Ensino Médio da rede estadual relatam sintomas de depressão e ansiedade. De 642 mil alunos, um em cada três estudantes afirmou ter dificuldades para conseguir se concentrar no que é proposto em sala de aula. Outros 18,8% relataram se sentir totalmente esgotados e sob pressão, ao passo que 18,1% disseram perder totalmente o sono por conta das preocupações. A perda de confiança em si foi expressa por 13,6%.
“A avaliação mergulha nos danos severos à educação causados pela pandemia e reforça o desenvolvimento socioemocional como mola propulsora para a aprendizagem e outras conquistas ao longo da vida. A análise dos dados ainda revela a importância direta das competências socioemocionais para o aprendizado e o seu impacto em outros aspectos que afetam a aprendizagem indiretamente, como saúde mental, violência e estratégias de aprendizagem”, diz um informe da fundação.
Pesquisa da Fiocruz indica procura por tratamentos
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Público pesquisado: 831 profissionais de enfermagem, odontologia, medicina, farmácia e fisioterapia, com atividades em hospitais, unidades básicas de saúde e clínicas do Distrito Federal, de dezembro de 2020 a abril de 2021.
Fonte: Fiocruz-Brasília
No Distrito Federal, foram detectados graus variáveis de depressão, ansiedade e estresse
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Público pesquisado: 831 profissionais de enfermagem, odontologia, medicina, farmácia e fisioterapia, com atividades em hospitais, unidades básicas de saúde e clínicas do Distrito Federal, de dezembro de 2020 a abril de 2021. Os percentuais para cada transtorno foram: estresse (65%), ansiedade (61,6%) e depressão (61,5%).
Fonte: Fiocruz-Brasília
Além de capturar um conjunto parecido de sintomas em dois grupos distintos da sociedade essas duas pesquisas têm em comum o fato de que os entrevistados foram contactados pela primeira vez durante a pandemia.
Marcos Garcia prefere não comentar os resultados, “por desconhecer as metodologias” de trabalhos como esses. Na opinião do pesquisador da UFSCar, o ideal em situações como a pandemia é que os participantes já viessem sendo acompanhados antes, de modo que se pudesse aferir com mais exatidão até que ponto a covid mudou o quadro. Esse tipo de pesquisa é chamado de coorte, exatamente o modelo utilizado por Brunoni e seus colegas da ELSA-Brasil.
— Temos pesquisas que são com questionários on-line, que mostram quadros agravados. O problema é que a gente nunca sabe qual é a amostragem dessas pesquisas. Há sempre uma tendência de quem tem um quadro agravado de saúde mental a responder a pesquisa. Então são pesquisas menos confiáveis, nesse sentido. O que se acredita é que, seguindo linha das pesquisas internacionais, é que tivemos uma piora, sim, especialmente no primeiro ano, na verdade de 2020 para 2021. A única coorte que eu conheço, que é a ELSA, feita com funcionários da Universidade de São Paulo, predominantemente, mostra resultados semelhantes ao exterior: uma piora no primeiro ano e depois a volta dos transtornos mentais comuns, tal como se diz, ou, se você preferir, sofrimentos mentais, aos níveis pré-pandemia — diz Garcia.
Brunoni, pesquisador da ELSA, diz que os dados apurados em 2020 foram atualizados até a metade de 2021 e se mantiveram estáveis.
— A gente também ficou intrigado com o que estava acontecendo e se questionou se a amostra não estava viciada por ser a ELSA [aplicada] a funcionários públicos. Até certo ponto, eu concordo que, sim, é um pessoal que ficou numa posição muito mais confortável. Por outro lado, [é preciso] desestigmatizar. A maior parte dos funcionários públicos tem estabilidade, mas não é que que ganhem muito. Quando a gente fala da USP, o pessoal pensa que é só docente, só servidor de nível superior, mas na nossa pesquisa tem também muita gente de nível básico, faxineiro, cozinheiro, administrativo que não completou o ensino médio, tem uma certa representação da sociedade — pondera Brunoni.
De acordo com o professor da USP, a ELSA compreende um recorte mais psiquiátrico, ao avaliar as condições dos entrevistados seguindo contornos de diagnósticos, e evitar uma abordagem de saúde mental ampla, que incorpora manifestações preocupantes, mas não necessariamente classificáveis como transtornos.
IBGE estima que 10,2% das pessoas com 18 anos ou mais receberam diagnóstico, contra 7,6% em 2013
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Usavam
medicamentos
Faziam
psicoterapia
Receberam
assistência médica
Fonte: PNS/IBGE
Como se pôde observar de forma mais intensa durante a pandemia, tanto do ponto de vista do atendimento clínico quanto das pesquisas, é sempre um grande desafio delimitar as fronteiras entre transtornos mentais, perturbações, sofrimento psíquico e os sentimentos naturais de apreensão e tensão face a um momento de grande incerteza.
— Essa é uma questão complexa na covid. Houve um debate muito grande na comunidade de saúde mental — e que chegou na mídia também — sobre o estar mal sem estar suficientemente mal para ser diagnosticado com transtorno. Em 2020, inclusive, a palavra escolhida como palavra do ano pelo [jornal] New York Times foi um termo de saúde mental que não tem uma tradução boa para o português, mas que é languishing [estado de languidez, prostração, desânimo]. Há pessoas que acreditam nisso. Eu pessoalmente acredito nisso. Também teve um grupo de pessoas que ficou mal, a ponto de ser diagnosticada com transtorno nesse primeiro ano.
Brunoni defende que os estudiosos e observadores lancem um olhar além do universo das pesquisas, aproveitando a “experiência clínica”, ou seja, aquilo que é relatado pelos pacientes nos atendimentos psiquiátricos ou psicoterápicos:
— A pandemia também foi uma oportunidade de muitas pessoas se reverem, recalcularem as expectativas. A gente vê que lá nos Estados Unidos está acontecendo aquilo de não ter quem preencha postos de trabalho porque as pessoas resolveram fazer outra coisa na vida. Historicamente a gente vê que existe o crescimento pós-traumático. E é legal pensar nisso também. As pessoas têm uma habilidade de lutar com as circunstâncias, sofrer o choque e refazer isso, fazer algo melhor ou diferente, superar esse trauma.
O psiquiatra chama a atenção ainda para outras leituras de uma pesquisa como a ELSA, que permitem observar criteriosamente situações (ou valores) distantes da maioria das outras no conjunto dos dados. Se desprezadas, podem perder a nitidez e a riqueza informativa, ao se confundirem com as médias calculadas a maiores ou menores intervalos:
— Quando tem duas mil, duas mil e quinhentas pessoas, que foi o que a gente [entrevistou], sempre tem dois extremos e a gente resolveu olhar um pouco melhor. A gente viu de fato que mesmo que a média tenha indicado uma resiliência, tem 20%, 30% da população que ficou mal. E isso é interessante porque, usando essa mesma escala, a gente observava números por volta de 10%, 12%. Então a gente, de certa maneira, mostrou que dobrou, pelo menos numa população [específica]. Algumas peças estão se encaixando agora.
Questões metodológicas à parte, a realidade nos postos de atendimento do SUS e nos consultórios tem sido de grande agitação.
— O que a gente sente também é um aumento grande da demanda. Mais pessoas buscando atendimento, muito mais novos pacientes aparecendo. E a maioria sempre com sintomas de ansiedade e depressão. O Brasil é campeão mundial em transtornos de ansiedade e é muito comum [as pessoas terem] os sintomas de depressão também — diz o mestre e doutor em Psicologia, Adriano Facioli, docente e pesquisador na Escola Superior de Ciências da Saúde do Distrito Federal e encarregado de atender pessoas com transtorno mental severo e persistente, pelo SUS, no Centro de Atendimento Psicossocial (Caps) de Samambaia, cidade do DF com quase 200 mil habitantes e IDH de 0,781.
Além da saúde mental de usuários do SUS, Facioli concentra suas pesquisas e produção científica na investigação dos problemas psíquicos de estudantes universitários. Autor de um livro sobre sua experiência profissional — Agonia e Sonho: memórias e reflexões de um psicólogo no SUS —, ele mantém canais na internet para a divulgação de conhecimentos sobre manifestações da psique e o dia a dia no Caps.
Sobre os tipos de queixas mais comuns no posto de Samambaia, o psicólogo não lista o isolamento social, a falta de abraços ou as restrições ao comparecimento a velórios.
— Desde o início da pandemia, a gente observa a dificuldade em relação à deterioração da economia. O que mais aperta mesmo é o desemprego, é não ter conseguido o auxílio-doença, não estar conseguindo nenhuma espécie de benefício, o aumento do gás, a inflação, o aumento de uma série de produtos básicos para as pessoas poderem viver. A pandemia piorou tudo isso. Desde 2017, está cada vez mais difícil o emprego e os benefícios sociais. E tem muita queixa de assédio moral em ambientes de trabalho, de pessoas que vão sendo levadas a pedir demissão para livrar os patrões de pagarem verbas de rescisão.
Facioli diz, também, que os profissionais do SUS recebem pacientes traumatizados com a própria covid. Pessoas que se imaginaram às portas da morte e que ficaram tão abaladas a ponto de terem uma piora da saúde mental. As circunstâncias peculiares da pandemia afetaram igualmente a rotina dos indivíduos e introduziu maus hábitos ao dia a dia:
— As pessoas ficaram mais sedentárias, estão ficando mais tempo nas redes sociais, os ciclos de sono e vigília estão um pouco mais perturbados. Isso ajuda a piorar uma série de indicadores da saúde mental.
Outro aspecto negativo na opinião de Facioli é a ingestão de remédios psiquiátricos:
— A cada ano, parece que aumenta mais o uso de medicações e as pessoas estão mais dependentes, com uma visão muito distorcida do que é promoção de saúde. Na nossa prática, essa promoção é quase protocolar: luz solar, atividade física, alimentação balanceada e adequada, higiene do sono e o quinto elemento, mais complexo, que é a própria afetividade. E isso ficou muito mais desorganizado em função da pandemia.
O incremento no consumo de psicotrópicos é uma realidade com base estatística. De acordo com dados colhidos pela Consultoria IQVIA e divulgados pelo Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma), o número total de caixas vendidas ao varejo (farmácias e drogarias) subiu 17,82% entre 2019 e 2020. Entre 2018 e 2019, a alta havia sido de 10,7%. A venda de antidepressivos inibidores a recaptação de serotonina e noradrenalina (a Venlafaxina, por exemplo) apresentou uma trajetória mais acelerada, registrando altas de 21,5%, 20% e 14% entre 2019 e 2021. Os brasileiros recorreram igualmente, e com vontade, aos fitoterápicos constituídos a partir de plantas hipnóticas ou sedativas, que ajudam a melhorar o sono, entre as quais a Passiflora Incarnata, cujo aumento de vendas bateu em 28,5% entre 2019 e 2020.
Excesso de medicação tem relação direta com uma política de saúde mental que “deixou bastante a desejar”, de acordo com Marcos Garcia, da UFSCar:
— Nós não tivemos ações bem coordenadas nesse sentido. O atendimento remoto, via telefone, utilizado em muitos países, por exemplo, a China, que fez isso fortemente, no Brasil foi implantado apenas em iniciativas locais e pouco coordenadas. Até porque, pessoas com quadro de saúde mental agravado podem não ter facilidade de acesso à internet e coisas do tipo. Nós temos uma pesquisa que mostra que, em termos de políticas públicas, a resposta do governo brasileiro foi medicalizante. Basicamente a liberação de recursos foi para a compra de remédios. Uma portaria autorizou a suplementação de R$ 650 milhões para a compras de psicotrópicos. Então se inundou as unidades [de saúde] de medicamentos, mas o investimento na Rede de Atenção Psicossocial mesmo, em ampliação e em recursos humanos para melhor atender, foi muito inferior a isso.
Crescimento das vendas da indústria para farmácias e drogarias voltou aos níveis médio usuais em 2021
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Os valores totais incluem Clonazepam, outros depressivos, estabilizadores do humor e plantas antidepressivas.
Fonte: Consultoria IQVIA/Sindusfarma
Tendo como título Contrareforma psiquiátrica brasileira e medicalização do sofrimento mental na pandemia de Covid-19, o trabalho é assinado pelo próprio Garcia, Simone Cristina de Amorim, Gelberton Vieira Rodrigues e Luiz Henrique Franco Mendonça. Os estudiosos observam que, em termos comparativos, a suplementação orçamentária para a Rede de Atenção Psicossocial, justificada a partir dos efeitos da Covid-19 sobre a saúde mental, foi de apenas R$ 165 milhões. “É mais de quatro vezes menor do que a destinada à compra de psicotrópicos, o que mostra a inversão da prioridade dada durante a reforma psiquiátrica brasileira ao desenvolvimento dessa rede", afirmam.
— O maior desafio para quem atende na Rede de Atenção Psicossocial é o da insuficiência de recursos humanos e recursos materiais, porque são muitos pacientes e a maior parte das atividades do CAPS são em grupo mesmo. Não temos condição de trabalhar individualmente. Os trabalhos individuais são pontuais. A maior parte é coletivo, os pacientes aprendendo uns com os outros, encontrando alternativas e construindo estratégias em grupo com os profissionais, com outros pacientes, com a família. É todo um trabalho de saúde mesmo, serviço comunitário de saúde — descreve Facioli.
Diante desse cenário, a Comissão de Direitos Humanos (CDH) promoveu no dia 18 uma audiência pública sobre a Portaria 596/2022 do Ministério da Saúde, que corta recursos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). A reunião é uma iniciativa do presidente da CDH, Humberto Costa. Para o parlamentar, prejudicar a atuação dos centros e serviços da rede espalhados pelo país é um retrocesso nas políticas de atendimento a milhões de brasileiros que sofrem com transtornos mentais. Além dos CAPS, a RAPS é formada por unidades de acolhimento e leitos de atenção integral (em hospitais e em alguns CAPS), entre outros serviços.
— Temos acompanhando um conjunto de ações governamentais que vão de encontro às práticas antimanicomiais. Essa luta pela desinstitucionalização de pacientes com transtornos mentais é uma luta social, que vinha se afirmando a cada ano. Diversos governos de diferentes espectros adotaram as ações dessa política. A organização das RAPS está sendo estruturada com apoio da sociedade, trabalhadores, gestores e até prestadores. O movimento de saúde mental preocupa-se com a Portaria 596/2022, que corta recursos das Raps, estimulando a volta a práticas manicomiais", critica o senador, que também é psiquiatra e foi relator na Câmara dos Deputados durante a votação da Lei Antimanicomial (Lei 10.216, de 2011).
A portaria não faz menção explícita a nenhum programa ou ação. Assinada pelo ministro substituto da Saúde Rodrigo Otavio Moreira da Cruz, apenas revoga dispositivos de duas portarias anteriores: a Portaria de Consolidação GM/MS nº 5, de 28 de setembro de 2017 e a Portaria de Consolidação GM/MS nº 6, de 28 de setembro de 2017.
Foram chamados para a reunião representantes dos Ministérios da Saúde e da Cidadania, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e do Instituto de Estudos e Políticas de Saúde (Ieps), que tem divulgado estudos sobre o desmonte das políticas de saúde mental implementadas ao abrigo da Reforma psiquiátrica.
— Sem evidências não há gestão, nem responsabilidade e as atuais políticas não são baseadas em evidências — adverte Dayana Rosa, Pesquisadora de Políticas Públicas do Ieps, administradora pública, além de Mestre e Doutora em Saúde Coletiva.
— Há um apagão de dados que impossibilita a implantação de políticas públicas eficientes, principalmente nas etapas de avaliação, monitoramento e fiscalização — acrescenta a pesquisadora, que cita como exemplos de descaso com a produção de dados confiáveis sobre saúde mental o vácuo de sete anos desde a última publicação, em 2015, do “Saúde Mental em Dados”, boletim anual que era produzido pelo Ministério da Saúde. Da mesma forma, o último Programa Nacional de Avaliação de Serviços Hospitalares Psiquiátricos (PNASH/Psiquiatria) foi executado em 2018. Há quatro anos, portanto.
Conforme os autores do trabalho sobre a contrarreforma, a medicalização foi justificada com a advertência de que o país poderia ser tomado, como consequência da pandemia, por uma “quarta onda”, uma torrente de transtornos mentais. “Chama a atenção que estes aspectos, bem como as orientações que o Ministério da Saúde divulgou para a população, foram retirados do Guia de Saúde Mental Pós-Pandemia (Pfizer, 2020), documento construído em uma iniciativa entre o Instituto de Ciências Integradas (INI/CCM Group) e a Upjohn, naquela época uma divisão da Pfizer e atualmente parte do grupo Viatris”, diz o estudo.
Entre as alterações feitas pelo senador Humberto Costa no PL 2.083 está justamente a determinação para que o programa seja desenvolvido dentro da Rede de Atenção Psicossocial e pelas unidades básicas de saúde do SUS, com o apoio dos centros de atenção psicossocial (CAPS), presentes em todos os estados e municípios. Ainda assim, foi mantida no texto a possibilidade de o SUS firmar parcerias com órgãos da administração pública e com serviços privados para que atuem no programa, mas de forma complementar, e integrada à rede de atenção.
O relator incluiu no texto a previsão de que a União destinará recursos para os fundos de saúde dos Estados, Distrito Federal e Municípios que aderirem ao programa. O dinheiro deve ser usado na ampliação dos serviços, com contratação de pessoal especializado e compra e instalação dos equipamentos necessários ao atendimento remoto.
Emenda da senadora Rose de Freitas (MDB-ES), incluída no projeto, determina que o programa tenha atendimento ambulatorial em psiquiatria, inclusive para urgências e emergências, uma necessidade, de acordo com o André Brunoni, um dos diretores do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP:
— A Rede de Atenção Psicossocial não está integrada, do ponto de vista da saúde pública, da prática médica, como as demais áreas.
Segundo Brunoni, o SUS tem a Assistência Médica Ambulatorial (AMA) e a Assistência Médica Especializada (AME). Quando alguém precisa de um endocrinologista, de um cirurgião gástrico, vai a um AME. No caso do psiquiatra, ele diz que o atendimento ficou pulverizado entre o AME, o AMA, a psiquiatria no hospital geral e no nível de internação hospitalar e até os CAPS, mas é como se tivesse um SUS de saúde mental funcionando paralelo ao SUS tradicional:
— Os CAPS não têm uma proposta necessariamente médica, o que acaba atrasando o tratamento, quando ele está indicado. A parte da medicação também é um problema. Tanto o excesso quanto a falta de medicação. Mas, isso não é algo que só acontece na psiquiatria. Da mesma maneira que pode ter um psiquiatra mal treinado, um cardiologista mal treinado vai fazer o diagnóstico errado. Isso é um problema de treinamento, não é um viés ideológico de que a psiquiatria vai super medicalizar, mas acho que todo mundo que já conviveu com pacientes graves, sabe que [em certos] momentos, há necessidade de ter mais medicações, da mesma maneira que um quadro renal grave, vai exigir mais medicações. Então é uma coisa de treinamento e formação médica, que, com certeza, os médicos têm que ser responsáveis. Mas não se justifica desvincular do SUS, fazer uma rede meio paralela.
As declarações de Brunoni se inserem no conjunto de um complexo debate sobre a saúde mental no Brasil, independentemente do que tem ocorrido durante a pandemia. E tocam na delicada questão da Reforma Psiquiátrica Brasileira, iniciada formalmente em 2001, por meio da Lei (Lei 10.216, de 2001). Formalmente, porque o esforço para mudar a lógica da abordagem dos distúrbios mentais, principalmente no que se refere à dispensação de remédios e às internações em hospícios, datam ainda dos anos 1970.
A lei, chamada de antimanicomial, dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. A diretriz mestra é evitar a internação do paciente, e somente recorrer a essa opção se o tratamento fora do hospital se mostrar ineficaz. Em substituição aos hospitais psiquiátricos, o Ministério da Saúde determinou, em 2002, a criação dos Centros de Atenção Psicossocial em todo o país. Os CAPs são espaços para o acolhimento de pacientes com transtornos mentais, em tratamento não-hospitalar. A sua função é prestar assistência psicológica e médica, visando a reintegração dos doentes à sociedade.
— No CAPS onde trabalho temos cerca de 50 servidores e uns cinco médicos, sendo que três são psiquiatras e dois são clínicos gerais, além do fato de que também temos oito leitos de internação. É o maior CAPS para o acompanhamento de transtornos mentais no Distrito Federal. Não há como você ter um CAP sem médico — atesta Facioli.
Com base no que acontece em seu local de atendimento e nas normas da RAPS, o psicólogo explica os papéis dos servidores estabelecidos após a Reforma psiquiátrica:
— Se é uma reforma psiquiátrica, ela inclui o trabalho dos psiquiatras. Os psiquiatras não foram, em razão da reforma e da luta antimanicomial, tirados de cena. Não pegaram a psiquiatria e a expulsaram desse campo. E o paciente que está em surto, em crise, ele pode ser atendido e medicado por um psiquiatra no CAPS? Sim. Mas é isso que imediatamente ocorre no CAPS? Não, se o CAPs for mesmo bem constituído, com todos os servidores necessários com a equipe mínima.
De acordo com Facioli, o paciente vai passar primeiramente por um especialista não médico, que tenha prioritariamente formação em saúde mental. Pode ser assistente social, terapeuta ocupacional, fisioterapeuta, enfermeiro, psicólogo. Uma das razões é que, como os médicos são profissionais mais caros, não há muitos disponíveis. De cara, seria preciso racionalizar a sua utilização. Mas o objetivo primordial é fazer com que a porta de entrada dos pacientes seja a da atenção primária, da prevenção e da promoção de saúde, mesmo que se entenda que quando alguém busca um posto de saúde em sofrimento já estará numa segunda etapa, a da assistência.
— O primeiro olhar tem que ser o olhar generalista. O médico só entra se não houver nenhuma resolução em nível de escuta, de conversa com a pessoa que tá padecendo da crise, de conversa com a família. Esse profissional especialista não médico vai tentar resolver ali ouvindo, ouvindo o paciente, ouvindo familiares e as pessoas mais próximas desse paciente, que estão ali convivendo com ele pra tentar de alguma forma estabelecer alguns novos contratos de convivência, algumas novas estratégias, tentar dali se garimpar novas estratégias de enfrentamento. O que vai acabar sendo feito com o médico? Medicação. E a medicação tem vários efeitos colaterais, dentre eles a dependência. Só para mencionar talvez o mais problemático principal. Então a afirmação de que os CAPS estão desligados de atividade médica, não corresponde à realidade. E nunca correspondeu. Isso é uma distorção do que foi a reforma e tem sido a reforma psiquiátrica. É uma reforma psiquiátrica, não é a destituição psiquiátrica, médica ou coisa parecida.
Na opinião de Facioli, os médicos também "têm que ser reformados” para apreender a importância do contexto social na gênese do sofrimento e dos transtornos mentais. Pobreza, preconceitos e problemas familiares não podem ser desprezados quando se olha alguém em crise:
— Precisam humanizar o contato, precisam escutar mais os pacientes, escutar os familiares. É uma luta constante. O manicômio é muito mais simples, mas cheio de problemas. É muito mais simples isolar, dopar, é muito mais simples trancafiar, acorrentar. É muito mais simples do que administrar, do que manejar, do que tolerar, do que lidar com a adversidade, lidar com os conflitos, estar o tempo todo acolhendo, o tempo todo cuidando. Não é seguir a linha do “se não for por amor, vai pela dor. É a linha do “se não for por amor, vai ser com mais amor ainda”. Com compreensão, diálogo, empatia, respeito...
Se Brunoni vê com bons olhos a maior parte do que vem sendo feito para rever as diretrizes da reforma psiquiátrica, embora entenda o papel da psicoterapia como um dos componentes dos tratamentos em saúde mental, a psicóloga Ana Lourdes Schiavinato, integrante do Conselho Regional de Psicologia de Goiás (CRP-GO), mestranda na Fiocruz e diretora Regional do Centro Oeste na Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), vê como retrocesso a volta dos incentivos a hospitais psiquiátricos e à medicação:
— Tivemos grandes manicômios e muitas mortes, milhares de mortes por causa do modelo manicomial no Brasil, mas conseguimos avançar com o Sistema Único de Saúde, com a luta anti-manicomial, com a implantação da Rede de Atenção Psicossocial. A gente vê retrocesso, no sentido de que [caem] os investimentos do governo em financiamento da rede. A ideia [agora] é investimento no serviço privado, fortalecendo os hospitais psiquiátricos, o isolamento e o estigma da saúde mental. Estamos num momento muito crítico. A gente sabe que existe uma questão cultural forte no nosso país: internações, mas com interesses políticos e mercadológicos, tomando o usuário e as pessoas em sofrimento mental como um produto. Então no Brasil hoje a saúde mental está em risco e nós precisamos pensar no enfrentamento dessa política — avalia Ana, que implantou a Rede RAPS em Goiás e é Supervisora Clinica dos CAPs no estado.
Conforme a psicóloga, ainda que muito tenha sido feito para “desinstitucionalizar” a diretriz anterior à reforma, o trabalho não se completou. Em muitas cidades, há remanescentes do antigo sistema, flagrados em uma inspeção multidisciplinar de 2018, que alcançou 33% dos 121 hospitais psiquiátricos em funcionamento. Há instituições em 22 estados, totalizando 15.532 leitos destinados ao sistema público de saúde. Um deles, o Hospital Juliano Moreira, em Salvador, tem 175 anos. Foi fundado em 1874 e é um dos 16 indicados pelo Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares (PNASH/Psiquiatria) para serem descredenciados pelo SUS por falta de condições mínimas para funcionar — o que não quer dizer que o restante possa ser dado como em condições ideais.
O quadro geral encontrado pelos inspetores não era nada animador: instalações em péssimo estado, com grades, paredes infiltradas, falta de iluminação adequada, camas e colchões em mal estado, falta de higiene, corredores com umidade no piso, pacientes sem roupa andando pelos pátios ou internados. Em um deles, uma adolescente estava convivendo com internos do sexo masculino.
“É notório que todos os estabelecimentos inspecionados apresentam características que violam os artigos da lei n. 10.216/2001.”, diz o relatório. Entre as características, o tratamento cruel, desumano e degradante, a tortura.
Uma constatação surpreendeu os inspetores em especial: diversas instituições não eram submetidas a fiscalização regular e adequada, ou simplesmente não eram fiscalizadas por órgãos externos. Entre elas, o Juliano Moreira. Os estados campeões de internações foram São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro, Goiás, Ceará e Alagoas.
Ana Schiavinato menciona igualmente como aspecto negativo da chamada contrarreforma o estímulo ao funcionamento de instituições para-hospitalares voltadas à internação de pacientes em crise psíquica ou com dependência em álcool ou outras drogas, as “comunidades terapêuticas”.
Na origem, organizações criadas ao redor do mundo para substituírem os hospícios, as “comunidades” operam com prazos de internação que vão de seis a 18 meses, e de acordo a Abrasme, estão ganhando franco terreno sobre os CAPs especializados em atendimento a usuários de álcool e outras drogas, os CAPs-AD, hoje em número de 457, quando o ideal seria 667.
“Em 2018, havia 2.900 vagas em comunidades terapêuticas financiadas pelo governo federal. No final de 2020, as vagas saltaram para 10.680, que representaram o acolhimento de 27 mil pessoas usuárias de drogas, com investimentos superiores a R$ 130 milhões. Em 2021, o governo federal financiou 700 comunidades terapêuticas e 17,3 mil novas vagas, totalizando um gasto de R$ 600 milhões neste ano. Um aumento de 500%”, informa a a Abrasme, com base em dados da Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas (Senapred) do Ministério da Cidadania. A pasta assumiu oficialmente essa tarefa em 2019, ainda que os usuários possam continuar procurando atendimento nos CAPS, já que o ministério lida apenas com as “comunidades”.
Conforme especialistas, a criação da Senapred criou uma duplicidade de comando da política para usuários de álcool e outras drogas, já que o Ministério da Saúde não pode se desobrigar de um assunto que é eminentemente de saúde. Na estrutura da pasta, o assunto está vinculado à Secretaria de Atenção Primária à Saúde, por meio do Departamento de Ações Programáticas Estratégicas e da Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas.
O gasto anual dos 2.742 CAPs, incluindo os especializados em álcool e outras drogas, equivale a R$ 1,2 bilhão. Considerando que a rede de CAPS-AD corresponde a 17% do total de CAPS, estima-se que o gasto anual com os CAPS-AD seja algo próximo a R$ 209,8 milhões. A Abrasme calcula que em 2021 os CAPS-AD tiveram apenas um terço do orçamento das comunidades terapêuticas. Esse custeio está sem nenhum aumento desde 2011, enquanto a inflação pelo IPCA acumulou 67,21%.
“Além do sufocamento da Rede de CAPS-AD, pela manutenção do valor de custeio desde 2011, também vemos uma ação coordenada para não realizar a expansão desses serviços, mesmo num cenário geral com aumento de demanda de cuidados”, afirma a Associação, que se vale dos dados de uma pesquisa feita pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS): 42% dos entrevistados no Brasil relataram alto consumo de álcool durante a pandemia de Covid-19 no ano de 2020. No mesmo ano, os hospitais credenciados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) tiveram um aumento de 54% no atendimento de dependentes químicos em relação ao ano anterior, segundo dados do Ministério da Saúde acessados pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM).
A Abrasme cita estudo do IPEA, segundo o qual essas instituições terapêuticas são de natureza privada e se apresentam como defensoras dos preceitos cristãos de caridade e solidariedade, os “mesmos valores morais que gestaram os asilos e manicômios no século 18”. No Brasil, 82% das instituições têm cunho religioso e utilizam a metodologia do “tratamento moral” típica dos anos 1800.
Os especialistas vêem com reserva não só as longas internações e a imposição de abstinência, mas a falta de visibilidade do que acontece nessas entidades, inclusive quanto à natureza do trabalho dos internos. O próprio nome “comunidade” é questionado quando se observa o contraste de um país que, nos primeiros 15 anos do século 21, foi protagonista na reorientação da sua assistência em saúde mental, por orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS).
— Há hoje o que chamamos de uma contrarreforma psiquiátrica, ou seja, um retorno às formas antigas de cuidado, baseados na segregação e sem evidências científicas de eficácia, como é o caso das comunidades terapêuticas. Eu digo sempre aos colegas da saúde mental: “elas nem são comunidades, porque, numa comunidade, você compartilha coisas de uma maneira horizontalizada. Não é esse o caso. [As comunidades terapêuticas] são lugares nos quais as regras e ordens são quase sempre impostas de cima pra baixo. E não são terapêuticas, porque não têm um tratamento reconhecido cientificamente como terapêutico. Então são centros onde as pessoas são depositadas, usualmente as que fazem uso de álcool ou outras drogas, mas às vezes com outros quadros de saúde mental, e sem proposta de tratamento validada. Muitas vezes são instituições religiosas que estão por trás desse suposto cuidado — critica Marcos Garcia, da UFSCar.
Mesmo para quem, como Brunoni, professor de psiquiatria da USP, defende a revisão da reforma psiquiátrica, as comunidades estão fora dos padrões científicos:
— Eu também não acho que seja adequado. Eu acho que o paciente psiquiátrico tem que ser tratado do ponto de vista psiquiátrico, ponto final. Mas [como] eu vejo isso do fundo religioso? Eu acho que é uma coisa muito pragmática, que foi decorrente do subfinanciamento que aconteceu aos hospitais psiquiátricos. Aí, outras entidades sociais da comunidade acabam ocupando esse espaço, seja de fundo religioso, seja convênio, seja particulares, porque ficou uma lacuna do espaço público pra ajudar os pacientes graves.
Para Brunoni, o subfinanciamento dos hospitais e ascensão dos tratamentos, em geral caros, nas “comunidades” são uma decorrência da reforma, quando “não permitiu que existisse a transição para um modelo mais moderno, mais contemporâneo de reabilitação psiquiátrica de longo prazo”:
— O isolamento é um problema que tem solução. O instituto de psiquiatria no qual eu trabalho [na USP] é um modelo. Os pacientes podem receber visitas todos os dias, três vezes ao dia, e muitos têm licenças de final de semana, voltam pra casa. Existem licenças espaçadas. Então vão treinando a voltar até a ter alta. Há uma coisa que se chama hospital-dia, então a pessoa não precisa passar internada, ela pode chegar de manhã e sair de tarde. E as internações psiquiátricas, em sua grande maioria, estão sendo cada vez mais rápidas, com uma média de quatro semanas. Muitas vezes se tem alta antes, em uma, duas semanas. A ideia da psiquiatria moderna, contemporânea, é internar só em último caso e tentar tratar o paciente da melhor maneira possível, com uma combinação de remédios, psicoterapia e atenção psicossocial. Alguns pacientes precisam mais de uma atenção farmacológica, outros mais de uma atenção psicoterapêutica.
Rede de atendimento psicossocial vem perdendo terreno para hospitais psiquiátricos
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Gastos hospitalares
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Gastos em atenção comunitária/territorial
(2002–2013)
Fonte: Ministério da Saúde
Proporção do financiamento federal destinado a hospitais psiquiátricos
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Orçamento global da saúde mental
(2017–2018)
Em 2019, a política para álcool e outras drogas migrou para o Ministério da Cidadania.
O gasto anual dos 2.742 CAPS (equivalente à Política Nacional de Saúde Mental) é atualmente de R$ 1.234.308.138,00, segundo a Associação Brasileira de Saúde Mental citando dados do Ministério da Saúde.
Fonte: Inspeção Nacional de Hospitais Psiquiátricos
A contrareforma teve desdobramentos recentes. Um edital do Ministério da Cidadania está chamando para a seleção de Organizações da Sociedade Civil (OSC) que prestem atendimento como hospitais psiquiátricos nas modalidades de internação, hospital-dia, ambulatório e/ou pronto atendimento. O termo de colaboração será celebrado com a Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas (Senapred) para a execução de projetos de cuidado, tratamento e/ou reinserção social de pessoas com problemas decorrentes do uso, abuso e dependência de substâncias psicoativas.
Com prazo final para 29 de abril, o chamamento tem como objetivo reunir até 33 propostas no valor máximo de R$ 300 mil, o que perfaz uma verba disponível de R$ 9,9 milhões.
“Antigas políticas ideológicas causaram desassistência aos pacientes com transtornos mentais e dependência química. A Nova Política Nacional de Saúde Mental e a Nova Política Nacional sobre Drogas resgataram os hospitais psiquiátricos como serviços constituintes das redes de tratamento”, declarou em informe do ministério o secretário Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas, Quirino Cordeiro Jr, referindo-se aos novos marcos legais instituídos em 2017 e 2019.
Esse embate terá novos capítulos em julho quando a Abrasme realizar, em São Paulo, o 8º Congresso Brasileiro de Saúde Mental (CBSM), para discutir a luta antimanicomial e o futuro das políticas de saúde e de proteção social no Brasil. Em novembro será a vez da 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental, que tem uma pauta semelhante e está sendo precedida de conferências estaduais e municipais.
— O que a gente está discutindo é justamente o tema do cuidado das pessoas, mas em liberdade. Enquanto psicóloga, considero absurdo, no século 21, ter que discutir ainda a liberdade das pessoas. É inaceitável a gente ter ainda que discutir quem vai ficar preso pra se tratar ou quem vai ser solto pra se tratar. Deveríamos estar aqui discutindo sobre ciências, sobre questões de pesquisas que estão sendo feitas na área da saúde mental. A gente espera que a Conferência possa dar o grito de que aquilo que a gente quer é em liberdade, e que isso é direito do usuário. Nós, profissionais, não temos o direito de falar do usuário sem usuário. É o que eles, os usuários, dizem: “não falem de nós sem nós” — recomenda Ana Schiavinato.
Evidentemente, tanto o Congresso quanto a Conferência vão tratar do financiamento à RAPS, cujo declínio está fragilizando os CAPS, e do fortalecimento manicomial com os incentivos aos hospitais psiquiátricos e às comunidades terapêuticas.
— Uma das questões que a gente tem observado dentro da saúde mental hoje, principalmente na gestão política do governo, é que nós temos muitos proprietários que estão envolvidos nessas discussões dentro do Ministério da Saúde, por exemplo. Temos médicos psiquiatras, donos de hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas que têm interesse financeiro sobre essa política. E isso é realmente repugnante no nosso país — protesta a psicóloga.
Os debates também tocarão na dificuldade de implantação do atendimento às pessoas em sofrimento mental dentro dos hospitais gerais, na rede do SUS, por falta de capacitação das equipes, por falta de conhecimento, por estigma, por preconceito e assim por diante.
— Nós não consideramos que a reforma psiquiátrica prejudicou a melhoria da saúde mental das pessoas. Muito pelo contrário. Vários estudos mostram resultados grandiosos da reforma psiquiátrica no Brasil, que ainda precisa ser consolidada e que está ameaçada neste momento — enfatiza a diretora da Abrasme.
O ponto de vista dela é compartilhado por Marcos Garcia, que considera a reforma psiquiátrica brasileira, “em sua proposta de atenção territorial, exemplo para o mundo”.
Ana Schiavinato entende que o próximo passo para a Rede de Atenção Psicossocial, um serviço especializado, é a maior integração com a atenção primária “de uma forma transversal”. O ganho seria o de detectar na porta de entrada do SUS o acolhimento das pessoas com transtornos leves moderados por intermédio de equipes itinerantes já previstas em portaria do Ministério da Saúde — as Equipes Multiprofissionais em Saúde Mental (Emaes), compostas obrigatoriamente por profissionais de medicina, enfermagem, psiquiatria, assistência social, psicologia, terapia ocupacional, além de técnicos/auxiliares de enfermagem, cargos administrativos e outras categorias profissionais.
O desejo de que os tratamentos no âmbito do SUS se ampliem está igualmente na cabeça de conselheiros municipais que se movimentam na ponta do sistema e se ressentem de uma participação não tão expressiva dos usuários nos debates. É o caso do fiscal da Saúde do município goiano de Caldas Novas, Alexandre Frensch:
— Aqui em Caldas Novas temos um CAPS II e um CAPS-AD. Nas próximas semanas, abriremos um CAPS infantil. São unidades ‘porta aberta’ e recebem pacientes em crise. Se necessário, o paciente pode ser removido para o hospital municipal ou para a UPA (que tem protocolo para atendimento psicossocial à noite, aos fins de semana e feriados, quando os CAPS estão fechados). De modo geral, o CAPS resolve, mas nossas principais demandas, que foram propostas na conferência municipal, são em relação ao estabelecimento de uma unidade de referência psicossocial 24h e a implementação de atendimento psicossocial na atenção básica.
As expectativas de Adriano Facioli vão no sentido do reforço do que ele considera a lógica da Reforma Psiquiátrica: serviço comunitário de saúde na comunidade, no entendimento de que o manicômio, por estar afastado facilita o abuso e não permite o acompanhamento dos pacientes pelas famílias e pela própria comunidade:
— A luta antimanicomial não é somente um projeto de pessoas com transtornos mentais. É um projeto de mudança no mundo, de construção de uma sociedade mais tolerante e igualitária. A luta na reforma psiquiátrica é inevitavelmente uma luta por mais igualdade e uma luta por mais convívio com a diferença. Por isso que é tão difícil. Porque não é somente um protocolo de acompanhamento de pacientes com transtornos mentais. É toda uma filosofia de promoção de saúde e de bem-estar com o mundo, bem-estar coletivo, de diminuição do sofrimento no mundo. Se a gente quer mudar a sociedade, não é no manicômio, algo que está isolado da sociedade. E precisa da participação ativa da população. A população precisa estar dentro, participando e ajudando a construir o serviço.
Além do projeto de lei 2.083/2020, o Senado têm outras iniciativas no campo da saúde mental. E enquanto não são aprovados, há leis que podem ser aplicadas em benefício de psique mais equilibrada, principalmente no ambiente escolar, um dos que mais preocupam no momento.
O Senado aprovou em fevereiro projeto que institui a Política Nacional de Atenção Psicossocial nas Comunidades Escolares, como forma de amenizar os prejuízos da pandemia na saúde mental em professores, funcionários, estudantes e seus familiares. De autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), o projeto de lei (PL) 3.383/2021 prevê a integração e articulação de ações nas áreas de educação e saúde voltadas à promoção, prevenção e atenção psicossocial. Foi acatada emenda do senador Humberto Costa (PT-PE) que inclui, entre as diretrizes para a implementação da política, a articulação com as diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental, por meio da rede de atenção psicossocial e da Política Nacional de Atenção Primária. Outra emenda de Humberto Costa determina que o Programa de Saúde na Escola (PSE), já existente, absorverá o papel destinado aos comitês gestores previstos no PL 3.383/2021.
Como parte da pauta voltada para o Mês da Mulher no Senado, o Plenário aprovou em março proposta que incentiva ações nacionais de atendimento aos homens, em especial na área da saúde mental, para prevenção da violência contra a mulher. O substitutivo da senadora Leila Barros (Cidadania-DF) ao PL 4.147/2021, do senador Wellington Fagundes (PL-MT), altera a Lei Maria da Penha (Lei 11.340, de 2006). O projeto já está na Câmara dos Deputados. Foi acolhida emenda do senador Fabiano Contarato (PT-ES), que estendeu a responsabilidade de desenvolver os programas de atendimento aos homens aos "serviços de ensino, assistência social e atenção psicossocial", e não apenas ao Sistema Único de Saúde (SUS), como na proposta inicial de Wellington Fagundes. O projeto de lei determina ao poder público instituir instrumentos facilitadores da assistência ao homem que demande apoio para a contenção da violência doméstica, entre os quais serviço telefônico gratuito e telemedicina.
Desde 2019, o Brasil já tem uma lei que institui o atendimento por profissionais de psicologia e serviço social aos alunos das escolas públicas de educação básica. Depois de derrubar um veto presidencial, o Congresso Nacional fez valer o texto do PLC 60/2007 (PL 3.688/2000, na Câmara dos Deputados), aprovado pela Câmara dos deputados, na forma de um substitutivo elaborado pelo Senado. Pela proposta do ex-deputado José Carlos Elias, equipes com esses profissionais deverão atender os estudantes dos ensinos fundamental e médio, buscando a melhoria do processo de aprendizagem e das relações entre alunos, professores e a comunidade escolar. O texto ainda estabelece que, quando houver necessidade, os alunos deverão ser atendidos em parceria com profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS). Depois de ouvir os Ministérios da Educação e da Saúde, a Presidência tinha decidido vetar o projeto, argumentando que a proposta criava despesas obrigatórias ao Poder Executivo sem indicar a respectiva fonte de custeio.
Instituído em 2007, o Programa Saúde na Escola (PSE) opera por meio de uma parceria entre os ministérios da Saúde e da Educação para atuarem na perspectiva da Atenção Integral (prevenção, promoção e atenção) à saúde de crianças, adolescentes e jovens do ensino público (educação infantil, ensino fundamental e médio), da educação profissional e tecnológica e educação de jovens e adultos (EJA). O programa depende da adesão dos municípios. As ações são desenvolvidas pelas equipes da atenção primária e as equipes das escolas, que podem articular ações abordando temas como saúde ambiental, promoção da atividade física, alimentação saudável, prevenção da obesidade, violência e acidentes, prevenção do uso de álcool, tabaco e outras drogas, saúde bucal, auditiva, ocular e situação vacinal. Na adesão ao ciclo 2019/2020 o programa esteve presente em 91 mil escolas públicas, cobrindo mais de 22 milhões de estudantes brasileiros em 5.289 municípios. Em 2019, havia alcançado 61 milhões de participantes em 4.906 municípios. Em 2020, o repasse ao programa foi de R$ 454 milhões.
Está muito próximo da aprovação no Senado um gesto de grande caráter simbólico para o campo da saúde mental no Brasil. A inclusão no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria da psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999). Pioneira da luta contra os manicômios e seus métodos violentos, a Dra. Nise é uma das inspiradoras da Reforma Psiquiátrica Brasileira, que iniciou o fechamento de hospícios e criou uma rede de atenção comunitária em postos exclusivos do Programa Único de Saúde (SUS).
Proposto pela deputada federal Jandira Feghali (PCdoB/RJ), o PL 6.566/2019, já passou na Câmara dos Deputados, faltando apenas a confirmação dos senadores para que siga para a sanção da Presidência da República. O Livro dos Heróis e das Heroínas está depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, na Praça Tancredo Neves, em Brasília.
Sua história de pioneirismo começou na Faculdade de Medicina da Bahia, onde foi a única mulher em uma turma de 158 alunos. Seu trabalho de conclusão de curso, em 1926, versou sobre um tema psicossocial: a criminalidade da mulher no Brasil.
No ano seguinte, mudou-se para o Rio de Janeiro com o marido, o médico sanitarista Mário Magalhães da Silveira. Ali fez especialização em neurologia e psiquiatria e foi aprovada em concurso público para o Hospital da Praia Vermelha. No Hospital, Nise afirma ter deparado com um “mundo de pessoas incríveis” e ter descoberto sua vocação.
Em 1936, foi denunciada por envolvimento com o comunismo e acabou presa durante 18 meses no presídio Frei Caneca, juntamente com Olga Benário e com o conterrâneo Graciliano Ramos, que a converteu em personagem do livro Memórias do Cárcere. Ao sair da prisão, viveu na clandestinidade por nove anos.
“Em 1936, início da ditadura Vargas, uma enfermeira do hospital, percebendo na minha mesa, em meio a livros de psiquiatria, literatura, arte, livros sobre marxismo, que eu também estudava, denunciou-me à diretoria. Na mesma noite fui presa (...) Perdi o emprego e fiquei afastada do serviço público, obtido por concurso, durante oito anos, sob a alegação de pertencer a um círculo de ideias incompatíveis com a democracia. Eu tinha contato com o Partido Comunista, mas não era uma militante política ativa.”
Depois da clandestinidade, Nise foi readmitida no serviço público, em abril de 1944. Ela se opôs aos tratamentos psiquiátricos convencionais quando trabalhou no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, que hoje leva o seu nome, no Rio de Janeiro. Ao se rebelar contra eletrochoques, camisas de força, lobotomias e o isolamentos imposto aos pacientes, acabou transferida à área de terapia ocupacional. Nise acreditava em humanização nos processos de recuperação dos pacientes e foi na arte a sua aposta de transformação dos tratamentos mentais.
A expressão das emoções por meio da pintura e das artes plásticas em geral foram as principais atividades instauradas por Nise da Silveira na clínica. Segundo ela, davam voz aos conflitos internos dos doentes. A recuperação deles foi notável e muitos revelaram talentos nunca antes percebidos.
A psiquiatra fundou a Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação, em 1946. As obras desenvolvidas a partir daí estão expostas no Museu de Imagens do Inconsciente, inaugurado em 1952 por Nise. O método focado no processo criativo e afetivo dos pacientes foi instituído na Casa das Palmeiras, criada por ela em 1956, cujo objetivo era reabilitar sem internação.
Nise também foi pioneira em relacionar o tratamento dos pacientes ao contato com animais. Dentre os trabalhos científicos publicados por ela está o livro “Gatos: A Emoção de Lidar. ”
Ao lidar com os produtos do inconsciente, Nise chamou a atenção do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, ex-discípulo de Freud, o fundador da Psicanálise. O célebre estudioso dos mitos a convidou para estudar no Instituto Carl Gustav Jung, na Suíça, em 1957. Nise terminou por difundir as práticas junguianas no Brasil e ainda escreveu o livro “Jung: Vida e Obra".
Em 2016, o legado de Nise transbordou para o cinema. Estrelado por Gloria Pires, estreou “Nise, o Coração da Loucura”, filme dirigido por Roberto Berliner e baseado no livro “Nise - Arqueóloga dos Mares”, de Bernardo Horta.
A psiquiatra morreu no Rio de Janeiro aos 94 anos. Entre 1971 e 2014, recebeu 29 homenagens, entre títulos, medalhas, prêmios e diplomas. A partir de seu trabalho, outras 16 instituições foram criadas.
O sonho, ingrediente tão importante da psique e dos ensinamentos de Freud e Jung, é o tema de uma célebre canção, cuja compositora teve papel importante no trabalho da Dra. Nise. Trata-se de Dona Ivone Lara (1922-2018), que criou Sonho Meu com Delcio Carvalho. Muito antes de ser reconhecida como uma das maiores sambistas do Brasil, ela se formou na Escola de Enfermagem Alfredo Pinto, e "foi uma das primeiras mulheres negras a adquirir ensino superior", segundo o site Valkirias. Graduada posteriormente em Serviço Social, antes que a profissão fosse regulamentada, especializou-se em Terapêutica Ocupacional no curso ministrado justamente por Nise da Silveira.
A partir de então, foi uma parceira da psiquiatra no Engenho de Dentro e na Casa das Palmeiras, não apenas nos trabalhos precursores de musicoterapia. Procurava pelas famílias dos pacientes em locais longínquos, recolhia doações de instrumentos musicais e organizava eventos sociais entre os internos, familiares e médicos. "Assim, construiu-se um espaço de expressão dos sujeitos", diz o site.
Dedicada, Dona Ivone, tirava férias apenas no carnaval e não faltava aos muitos plantões. “A minha repartição era sagrada”, disse em entrevista.
Segundo a compositora muitos pacientes tinham talento musical e progrediam no contato com os ensaios promovidos por D. Ivone. Um deles, Ribamar, que sofria de catatonia, ex-clarinetista de orquestra, passou a tocar nas festas do hospital. Foi Dona Ivone que fez contato com seus familiares e os levou a visitá-lo. Ao final, ele recebeu alta.
Mas o Valkirias chama a atenção para a importância da relação de Nise com a sambista no desvendamento da ligação entre racismo e transtornos mentais. As duas conversavam sobre como o preconceito produz sofrimento psíquico. "Não se pode perder de vista que gênero, classe e relações étnico-raciais estão entrecruzados. Ao longo da história, grupos subalternizados foram considerados desviantes, sujeitos à internação", conforme o site. No período pós-abolição, a população negra foi submetida inclusive a uma série de medidas com o intuito de impedir o seu desenvolvimento econômico, político e social, entre as quais a medicina baseada em eugenia e higienismo.
— Não há dúvidas que a homenagem é justa e meritória. Inscrever o nome de Nise da Silveira no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria é um ato de reconhecimento dessa corajosa médica, que dedicou sua vida a transformar uma realidade de abusos e confinamentos — disse a relatora do projeto na Comissão de Educação, senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA).
O presidente da CE, senador Marcelo Castro (MDB-PI), que também é psiquiatra, afirmou que o legado de Nise da Silveira para a profissão é "revolucionário". O acervo pessoal da psiquiatra, que soma mais de 360 mil obras, foi tombado como Memória do Mundo pela Unesco.