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ECA completa 35 anos com avanços históricos e novos desafios

Da Agência Senado
Publicado em 11/7/2025

Essa grande mudança foi influenciada por convenções internacionais, especialmente pela Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 20 de novembro de 1989, que entrou em vigor no ano seguinte. Conforme a professora, a elaboração do ECA dialogou também com outras normas da ONU, voltadas à garantia da cidadania, dignidade e proteção integral da criança, da infância e da adolescência.

O avanço foi inegável. A legislação anterior possuia uma visão punitiva, assistencialista e discriminatória, tratando de forma diferente os jovens dependendo da sua classe social. Os filhos de famílias ricas recebiam tratamento diferenciado, enquanto os de famílias pobres eram muitas vezes excluídos ou alvo de ações punitivas e assistencialistas do Estado. As crianças em situação de vulnerabilidade eram vistas como um problema social, quase como um “objeto”.

A nova lei acabou com a lógica de criminalizar os vulneráveis. Derrubou barreiras que impediam a igualdade de oportunidades e estabeleceu regras claras para garantir proteção completa a todas as crianças e os adolescentes, sem exceção.

O ECA criou os conselhos tutelares, uma de suas principais inovações. Eles funcionam como a porta de entrada para o sistema de proteção do Estado. O seu papel é zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, a partir do seu local de moradia. Ou seja, não adianta denunciar maus-tratos em um determinado município se a criança reside em outro local, apenas para exemplificar A lei determina um limite mínimo de um conselho tutelar em cada município.

O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) recomenda que haja um conselho tutelar para cada 100 mil habitantes. A competência para instituir o órgão é de cada prefeitura. Ele é composto por cinco membros, escolhidos pela comunidade local em eleições diretas, seguindo diretrizes estabelecidas na legislação. Apesar da lei existir há mais de três décadas, a implantação dessa rede de proteção ainda enfrenta muitas dificuldades, desde a falta de recursos para melhorar as instalações físicas e locomoção até a deficiência de pessoal devidamente treinado.

A criação dos conselhos tutelares foi uma das inovações trazidas pelo ECA Paulo H. Carvalho/Agência Brasília

O Brasil possui 6,1 mil conselhos tutelares funcionando nos 5,5 mil municípios brasileiros. Em 2023 foram eleitos 30,5 mil conselheiros em todo o país, de acordo com informações veiculadas pela imprensa. Essa rede desempenha um papel crucial na proteção e na promoção dos direitos da infância e da juventude, buscando evitar que eles sofram qualquer tipo de violência ou negligência, e também de forma repressiva, tomando medidas para proteger aqueles que já tiveram seus direitos violados.

No entanto, é uma estrutura ainda incipiente para assegurar os direitos das crianças e dos jovens brasileiros. Dados do Observatório Nacional de Direitos Humanos (ObservaDH), plataforma do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, indicam que, em 2022, o Brasil contava com mais de 31,8 milhões de crianças (15,7% da população) e 16,8 milhões de adolescentes (8,3% da população).

O ECA trouxe outras mudanças importantes. A professora Suzana cita, entre elas, a nova abordagem na responsabilização do adolescente infrator, com a instituição de um sistema voltado ao atendimento de adolescentes em conflito com a lei. Segundo ela, a norma abandonou a lógica da punição penal e passou a se fundamentar na socioeducação. Além disso, a jurista destaca o fortalecimento da convivência familiar e comunitária, além da adoção, guarda e tutela passarem a seguir critérios mais rigorosos e humanizados, priorizando a permanência da criança e do adolescente na família de origem, sempre que possível.

 

Sistema socioeducativo significou uma mudança no tratamento do adolescente infrator Divulgação/CNJ

Na avaliação dela, o ECA precisa passar por constantes atualizações.

— O Estatuto, à época de sua promulgação, foi considerado um texto normativo extremamente avançado e isso se perpetuou no tempo. Mas, como todos os textos normativos, principalmente os que lidam com a realidade social e familiar, requer atualizações. Nós temos alguns desafios em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente, [um deles é] na área digital. Os avanços no mundo eletrônico são reais e o ECA precisa acompanhar isso, sendo um texto normativo em constante evolução e atualização.

Desafios

O consultor legislativo do Senado, Amael Notini, diz que os principais desafios para garantir os direitos previstos no ECA envolvem o enfrentamento das desigualdades socioeconômicas, o acesso desigual a direitos fundamentais, como educação e saúde, e a violência estrutural.

— São questões relacionadas a desafios sistêmicos de implementação da legislação pertinente, que não decorrem diretamente de alguma omissão ou barreira legislativa específica, mas de contextos sociais complexos e limitações de gestão pública.

O relatório Cenário da Infância e Adolescência 2025, lançado pela Fundação Abrinq, mostra que, em 2023, 46,5% das crianças com até seis anos viviam em situação de pobreza — o equivalente a 9,4 milhões de crianças brasileiras. Na Região Nordeste, essa proporção é ainda maior, atingindo 53,3% das crianças nessa faixa etária. A mesma pesquisa indica que 16,7% das crianças com até seis anos estavam em pobreza extrema, o que representa 3,3 milhões de crianças sem o mínimo necessário para uma vida digna.

Além desse cenário de profundas desigualdades, o especialista do Senado também destaca entre os principais desafios as transformações tecnológicas, que trouxeram novas ameaças, como a exposição precoce ao mundo digital, o cyberbullying, a exploração sexual por meios digitais e a desinformação. Segundo Notini, as inovações tecnológicas e as consequentes mudanças nas relações sociais impõem a necessidade de constante atualização da legislação.

Alguns temas merecem atenção especial na agenda legislativa, aponta Notini. Um dos principais é o fortalecimento das normas e da estrutura dos conselhos tutelares, que frequentemente enfrentam sobrecarga de trabalho e escassez de recursos. Ele afirma ser necessário avançar na proteção da infância frente aos novos contextos sociais, como o uso das plataformas digitais e os impactos das mudanças climáticas.

— A robustez da legislação, infelizmente, não se traduz automaticamente em efetividade prática. Isso pode ser observado nas limitações na coleta e gestão de dados públicos necessários ao aprimoramento estratégico das ações governamentais e em outros gargalos de implementação. Esse cenário ilustra a necessidade de que o Poder Legislativo seja cada vez mais ativo na sua função fiscalizatória.

Exposição ao mundo digital traz novos desafios à legislação de proteção a crianças e adolescentes Arquivo EBC
Atendimento a crianças vítimas de violência: lei exige criação de espaços seguros de escuta Divulgação/Gov. Pará

A promotora de Justiça de Defesa da Infância e Juventude do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), Karina Rocha, diz que as violações mais comuns contra crianças e adolescentes no Brasil são negligência, violência física, psicológica, sexual, abandono e exploração. Segundo ela, é possível estabelecer um marco etário: a violência sexual ocorre com frequência entre crianças de 2 a 5 anos, enquanto a negligência é mais comum entre bebês e crianças pequenas. A promotora considera que a falta de acesso às creches é um dos principais obstáculos à efetividade do ECA.

— Veja que até nesse recorte, ela se aproxima com a realidade social. Quando a gente fala em negligência entre bebês e crianças pequenas, não podemos esquecer que muitas vezes nós temos ali a mãe que exerce uma maternidade solo, que precisa se desdobrar para poder voltar ao mercado de trabalho e manter também cuidados dos seus filhos e que, às vezes, não têm acesso às creches.

A promotora afirma que o Ministério Público tem atuado com foco na prevenção e repressão de crimes virtuais contra crianças e adolescentes, como pornografia infantil e cyberbullying. Para esse trabalho, Karina destaca ser essencial que as autoridades atuem em parceria com as escolas.

— Por meio do sistema educacional, nós conseguiremos promover uma educação digital dessa população que é vítima desses crimes virtuais e também de seus familiares. Muitas vezes, diante das desigualdades sociais, os pais não têm letramento digital. Eles sabem apenas ligar e desligar um aparelho celular. Por mais que as plataformas digitais criem mecanismos de proteção para o uso adequado das redes, se os pais não souberem usar acaba [não funcionando]. Há necessidade de uma educação digital da população.

Adoção

O chefe do Núcleo de Assistência Jurídica da Infância e Juventude da Defensoria Pública do Distrito Federal (DPDF), Victor Ferreira Guimarães, afirma que o sistema de adoção é um dos principais desafios na aplicação do ECA. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2024 havia 4,8 mil crianças e adolescentes aptos à adoção no Brasil e 36,3 mil pretendentes habilitados. Porém, Guimarães lembra que a maioria das pessoas deseja adotar apenas crianças de 0 a 4 anos ou, no máximo, até 8 anos, sem qualquer tipo de doença ou deficiência.

— Passou essa idade, eles não têm a tutela tão forte pelo sistema. A chance de serem adotados diminui muito. Isso aí o ECA tem que prestar atenção, é um desafio tradicional. [...] E mais, a criança que está no abrigo, no acolhimento, esperando ser adotada, tem que ter um apoio muito maior, especialmente o adolescente, que vai sair do abrigo quando faz 18 anos. O adolescente que vai sair tem que ter um acompanhamento antes, durante e depois. Isso aí ainda está precisando ser reforçado no ECA.

O defensor diz que garantir o direito à educação plena para todas as crianças e adolescentes ainda é um grande desafio. Acrescenta que as desigualdades sociais evidenciam a grande disparidade na aplicação prática do ECA na sociedade.

— Existe uma diferença de aplicabilidade na prática para quem tem dinheiro e para quem não tem dinheiro. Essa é a realidade. Isso sempre existe em relação ao nosso sistema, como é que ele é feito. O ECA foca nos direitos e deveres para tutelar a criança e o adolescente. O problema não está na regulamentação legislativa. O ECA tem uma ótima regulamentação legislativa. O problema está na aplicabilidade prática em razão de diferenças sociais. Então, algumas coisas que o Estado ainda não fornece 100%, ou algumas coisas que a pessoa pode suprir pagando, a diferença social vai [ficar evidente].

Em 2024, havia 4,8 mil crianças e adolescentes aptos à adoção no Brasil Lia de Paula/Agência Senado

Senadores

A presidente da Comissão de Direitos Humanos (CDH), senadora Damares Alves (Republicanos-DF), afirma que um dos principais desafios para a garantia dos direitos previstos no ECA é a continuidade das políticas públicas. Segundo ela, a descontinuidade de programas, motivada por mudanças frequentes nas gestões municipais e federais, compromete seriamente os avanços na área da infância e da juventude.

— A cada quatro anos muda-se o gestor municipal e, imediatamente, dois anos depois, muda-se o gestor federal. Então, praticamente a cada dois anos, estamos diante da possibilidade de interrupção de políticas públicas voltadas para a criança. [...] Nosso desafio é que as políticas voltadas para a infância e adolescência tenham sustentabilidade e continuidade.

A senadora lembra que o Congresso Nacional tem atuado continuamente no aprimoramento do ECA, com projetos em tramitação frequente nas duas Casas Legislativas. A CDH aprovou, na quarta-feira (2), proposta que aumenta penas para crimes sexuais cometidos contra pessoas vulneráveis, acelera a concessão de medidas protetivas e garante atendimento psicológico às vítimas (PL 2.810/2025). O texto seguiu para análise terminativa na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).

Damares também destaca que a violência contra a criança no ambiente virtual é um novo desafio que exige a adequação da legislação e das políticas públicas. Ela lembra que o Senado aprovou, em 2024, projeto que dispõe sobre a proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais (PL 2.628/2022). O texto está em análise na Câmara dos Deputados.

Damares: preocupação com a continuidade das políticas de proteção Geraldo Magela/Agência Senado

Damares afirma que o Congresso Nacional terá, nos próximos anos, o grande desafio de adaptar o ECA às novas demandas da infância brasileira. Em especial, destaca o crescimento expressivo no número de crianças diagnosticadas com diferentes tipos de transtornos, como os do espectro autista, e a necessidade urgente de proteção voltada à saúde mental. Segundo a parlamentar, o país precisa estar preparado para garantir inclusão, acesso à saúde, educação e mercado de trabalho para essas crianças e jovens.

A CDH é o órgão competente para deliberar sobre a promoção dos direitos humanos e a proteção à família, à infância e à juventude. Atualmente, está em atividade, no âmbito da comissão, a Subcomissão Temporária para debater a Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças (CDHHAIA). Além disso, está em andamento a avaliação do Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH 3.

Internet

O senador Sérgio Petecão (PSD-AC) é autor de um projeto que estabelece a obrigação de pais e responsáveis zelarem pelo uso adequado de equipamentos eletrônicos e de aplicações de internet por crianças e adolescentes (PL 2.551/2025). Petecão afirma ser fundamental discutir regras claras para a proteção de dados de crianças, políticas públicas de educação digital nas escolas e apoio psicológico às vítimas de violência online.

— O maior desafio hoje, diante dessa nova realidade virtual, é garantir os direitos previstos no ECA. A lógica das plataformas digitais, muitas vezes guiadas por algoritmos e lucros, não considera a vulnerabilidade da infância. Por isso, o Estatuto precisa ser fortalecido com medidas que ampliem a responsabilidade de todos os envolvidos: pais, escolas, empresas de tecnologia e o próprio Estado.

Petecão é autor de projeto que atribui aos pais a responsabilidade pelo uso adequado de eletrônicos por crianças e adolescentes Geraldo Magela/Agência Senado

Violência sexual

Outro senador com projeto para aprimorar o ECA é Styvenson Valentim (PSDB-RN). Ele é autor de um projeto que institui a Política Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes (PL 2.892/2019). A proposta, em análise na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), prevê o aumento das penas de reclusão estabelecidas pelo ECA. 

— É uma forma de proteger quem ainda não tem voz e de cobrar da sociedade e do Estado um compromisso real com a infância, garantindo que a lei seja mais dura com quem destrói vidas e oportunidades.

Styvenson também destaca o papel do Senado em legislar, aprimorar e fiscalizar para que o ECA funcione na prática, garantindo que crianças e adolescentes sejam, de fato, prioridade. Para o senador, o Legislativo deve acompanhar a implementação das políticas públicas nos municípios, assegurando que os recursos destinados cheguem aonde são realmente necessários e que o Estatuto seja cumprido.

Styvenson: proposta prevê aumento de penas para crimes contra crianças e adolescentes Marcos Oliveira/Agência Senado

Com preocupação semelhante a de Styvenson, o senador Astronauta Marcos Pontes (PL-SP), apresentou proposta que estabelece prioridade absoluta no julgamento dos crimes envolvendo violência sexual contra crianças ou adolescentes. Para ele, é preciso estruturar melhor a Justiça com varas especializadas e profissionais capacitados, além de fortalecer a rede de apoio, como conselhos tutelares, escolas e unidades de saúde aptas a lidar com esses casos. O PL 3.580/2023 está na CDH.

Além disso, o parlamentar defende campanhas educativas para conscientizar pais, professores e responsáveis sobre sinais de abuso, ressaltando que os agressores, em sua maioria, são pessoas próximas às vítimas.

— É importante que os pais participem e fiquem muito atentos com relação a isso. Prestem atenção no comportamento da criança, uma mudança repentina pode indicar algum caso como esse. Não é virar paranóia, mas é responsabilidade dos pais prestar atenção. Às vezes o pessoal fala “vou invadir a privacidade do meu filho”. Você tem a obrigação de fazer isso, olhar com quem ele ou ela está falando, e como, de que forma, que tipo de assunto é esse, o que tem nas gavetas, no celular.

Pontes defende a conscientização de pais e professores para atenção a sinais de abuso contra crianças Saulo Cruz/Agência Senado

Produção: Elisa Chagas
Edição: Cíntia Sasse
Infografia: Diego Jimenez e Fernando Ribeiro
Edição de fotos e multimídia: Bernardo Ururahy
Foto de capa: Arquivo Câmara dos Deputados
Foto de fechamento: Tomaz Silva/Agência Brasil

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)