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Dia da Criança surgiu há 100 anos, quando meninos pobres trabalhavam e iam para a cadeia

Ricardo Westin
Publicado em 4/10/2024
Edição 116
Sociedade

Faz um século que 12 de outubro é o Dia da Criança no Brasil. A data nasceu de um projeto que foi aprovado pelo Senado e pela Câmara dos Deputados, e assinado como decreto em novembro de 1924 pelo presidente Arthur Bernardes. O nome era Festa da Criança.

Diferentemente de hoje, o Dia da Criança não atendia aos interesses comerciais dos fabricantes e das lojas de brinquedos. Em vez disso, incitava a sociedade e o poder público a cuidar da educação, da saúde e do bem-estar das crianças.

Era uma época em que a infância não tinha direitos e as crianças pobres em geral não frequentavam a escola, eram obrigadas a trabalhar, vagavam em bandos pelas cidades e, detidas por algum crime ou mera vadiagem, iam para a cadeia.

Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que a ideia original do Dia da Criança partiu do 1º Congresso Brasileiro de Proteção à Infância e do 3º Congresso Americano da Infância, que foram realizados no Rio de Janeiro em 1922 como um único evento e fizeram parte dos festejos do centenário da Independência do Brasil.

A coincidência do Dia da Criança com a data do Descobrimento da América teve o objetivo de associar a imagem da nova geração à chegada de Colombo ao novo mundo e, assim, induzir todos os países americanos participantes do congresso no Rio a adotar a mesma data.

O objetivo, entretanto, não foi alcançado, já que cada país hoje celebra o Dia da Criança numa data diferente. O Paraguai, por exemplo, escolheu o dia 16 de agosto, que é feriado nacional. Nessa data, em 1869, as tropas brasileiras massacraram um batalhão formado por centenas de crianças guaranis num dos episódios mais sangrentos e traumáticos da Guerra do Paraguai.

Antes de 1924, no Brasil, o Dia da Criança era comemorado informalmente em 2 de outubro, data em que a Igreja Católica celebra o Dia dos Anjos da Guarda.

Documento do projeto de criação da Festa da Criança aprovado no Senado em outubro de 1924 (Arquivo do Senado)

De acordo com o pedagogo Moysés Kuhlmann Júnior, professor da Universidade de Brasília (UnB) e autor de livros sobre a história da infância e da educação no Brasil, a preocupação com as crianças brasileiras foi particularmente acentuada no primeiro quartel do século 20:

— No período que vai da abolição da escravidão e da implantação da República ao centenário da Independência, ganharam força os debates em torno da modernização do país. Juristas, médicos e intelectuais frequentaram as exposições internacionais e os congressos científicos que aconteciam na Europa desde o fim do século anterior e apresentavam modelos de progresso para as nações. O cuidado com a infância era um dos requisitos para sair do atraso e entrar na modernidade.

A preocupação com as crianças, de acordo com Kuhlmann Júnior, foi um processo ambíguo, com duas facetas bem diferentes.

Por um lado, houve a divulgação de cuidados básicos, mas até então pouco conhecidos, que beneficiaram toda a infância brasileira. A nascente pediatria explicou que a falta de higiene em casa e a alimentação inadequada provocavam doenças que contribuíam com a elevada mortalidade infantil.

Organizador dos dois congressos de 1922 e precursor das políticas de proteção à infância no Brasil, o médico carioca Carlos Arthur Moncorvo Filho produziu material educativo alertando as mães para a ameaça das moscas à saúde, criticando o uso de mamadeiras de metal e chupetas, e defendendo o consumo de leite pasteurizado, que era novidade na época.

Fotos de crianças publicadas em 1924 pela revista infantil O Tico-Tico (Bibloteca Nacional Digital)

Por outro lado, o cuidado com as crianças também teve o objetivo de manter as camadas mais pobres da sociedade longe da criminalidade e de rebeliões populares e garantir a formação da mão de obra necessária para a agricultura, que ainda era o motor da economia brasileira, e a indústria, que já se desenvolvia.

O historiador James Wadsworth, professor da Faculdade Stonehill, nos Estados Unidos, e pesquisador da assistência à infância brasileira, lembra que foi nesse momento de urbanização rápida, industrialização, imigração, epidemias, alta mortalidade infantil e agitação social e política (estouraram a Revolta da Vacina, greves operárias e rebeliões tenentistas) que surgiu o discurso de que as crianças eram “o futuro da nação”.

— Mais especificamente, as crianças pobres, por causa de sua força de trabalho potencial. Sendo o futuro da nação, elas deveriam ser cuidadas diretamente pelo Estado — ele diz. — O Estado, então, assumiu o papel de pai para disciplinar e educar essas crianças de modo a produzir uma mão de obra dócil, saudável e produtiva para substituir a perda do trabalho escravo e evitar a suposta influência negativa do trabalho imigrante que inundava o Brasil.

Wadsworth resume:

— Claramente, toda a preocupação da elite brasileira com a infância pobre não tinha como fim garantir o bem dessas crianças, mas, sim, preservar o status quo e proteger a futura posição social, econômica e política dos seus próprios filhos.

Jornal Correio da Manhã noticia as atividades em comemoração ao Dia da Criança no Rio de Janeiro em 1926: filmes, brinquedos, biscoitos, doces e viagens gratuitas nos trens da Central do Brasil (Biblioteca Nacional Digital)

Os documentos do Arquivo do Senado confirmam que, nos primeiros anos do século 20, essa foi de fato a estratégia da elite.

Em 1912, o senador Francisco Glicério (SP) contou aos colegas que visitara o Instituto de Proteção e Assistência à Infância e lhes pediu que destinassem mais verbas do Orçamento federal a essa entidade filantrópica, que era mantida no Rio pelo médico Moncorvo Filho.

— É um velho casarão adaptado à custa dos maiores sacrifícios pecuniários aos fins daquela utilíssima instituição, que educa as criancinhas para a vida social — discursou.

Existiam espalhadas pelo país entidades filantrópicas que reproduziam o modelo do instituto de Moncorvo Filho.

Glicério defendeu que o Brasil investisse menos na importação de trabalhadores europeus e japoneses e priorizasse a formação de mão de obra nacional, por meio de estabelecimentos como o Instituto de Proteção e Assistência à Infância:

— Gastamos não pequena soma com a imigração, soma de milhares de contos com a importação de criaturas humanas cujo estado físico é na generalidade desconhecido. Não há motivo para que neguemos auxílio para esse preparo da própria geração brasileira.

O médico Moncorvo Filho examina criança na epidemia de gripe espanhola de 1918: pioneiro na luta pela assistência infantil (Casa de Oswaldo Cruz)

Na Mensagem Presidencial remetida ao Congresso Nacional em 1913, o presidente Hermes da Fonseca bateu na mesma tecla do trabalho. Ele pediu aos senadores e deputados que nesse ano dedicassem “atenção e carinho” ao problema da infância abandonada.

“Existem [no Rio] nuvens de pobres crianças que se perdem na vadiagem e no vício. Meninos e meninas que amanhã podem ser homens e mulheres úteis à sociedade estão destinados a uma vida de crimes, tornando-se elementos deletérios no meio da comunhão, porque não encontraram quem lhes desse a educação e os meios hábeis de ganhar honestamente a vida. É preciso que os poderes públicos olhem para esses abandonados, que ainda podem e devem ser elementos preciosos de trabalho e progresso”, escreveu o presidente.

Em 1916, o senador João Luiz Alves (ES) pediu que fosse registrado nos anais do Senado um artigo do estatístico maranhense Oziel Bordeaux Rego a respeito da importância de se oferecer escola às crianças pobres, direito que ainda não existia:

“Não é uma elite de sábios que faz a fortuna das nações, mas a grande massa anônima, a massa que lavra nos campos, que trabalha nas oficinas, que propaga a riqueza pelo comércio e navegação. O analfabetismo é um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento de nossa capacidade econômica e à definitiva integração do proletariado na sociedade brasileira”.

Em outro trecho do artigo, Rego afirmou que a alfabetização e a criminalidade eram inversamente proporcionais e citou casos na Europa:

“O ensino desentranha energias morais. Na Inglaterra, no País de Gales e na Escócia, ao notável progresso escolar verificado de 1841 a 1887 correspondeu auspiciosa depressão na delinquência. Enquanto o número de crianças que frequentavam escolas subia de 220 mil para 4 milhões, a cifra anual das condenações criminais minguava de 24 mil para 12 mil”.

O Arquivo do Senado guarda dados estatísticos da polícia do Rio de Janeiro que hoje são estarrecedores. Dos quase 17 mil criminosos que foram mandados para as cadeias da capital do país entre 1907 e 1915, perto de 250 tinham entre 9 e 15 anos de idade.

Nota do jornal A Noite publicada em 1915 noticia prisão de "pivete de 12 anos" (Biblioteca Nacional Digital)

Em 1917, o senador Alcindo Guanabara (DF) apresentou um projeto de lei que estabelecia uma série de normas para lidar com as crianças e os adolescentes abandonados e infratores.

Uma das medidas era deixar de trancafiá-los nas cadeias, onde dividiam espaço com adultos criminosos, e passar a enviá-los, provisoriamente, para “depósitos de menores” e, depois de julgados, para reformatórios, onde seriam treinados para o mundo do trabalho.

Pelo projeto de Guanabara, o treinamento seria para atividades de baixa qualificação. Os meninos poderiam se tornar cuidadores de horta, alfaiates, funileiros, carpinteiros ou encadernadores, por exemplo. As meninas, por sua vez, poderiam ser capacitadas para trabalhar como costureiras, engomadeiras, lavadeiras, cozinheiras ou criadoras de galinhas.

Na defesa do projeto, o senador argumentou que a sociedade como um todo, incluindo a elite, seria beneficiada se os jovens pobres recebessem formação profissional em vez de serem atirados nas prisões:

— Se fechardes o coração à piedade, haveis ao menos de abrir os olhos ao interesse, verificando o prejuízo que todos os anos o abandono da infância vos faz inscrever na contabilidade do Estado, pelo número de criminosos que se deve sustentar, de miseráveis que se deve manter, de vadios que se deve alimentar, de prostitutas que corrompem a sociedade. Podeis, ao mesmo tempo, apreciar em algarismos o que deixais de ganhar, avaliando o que produziria o trabalho sadio e inteligente desses milhares de indivíduos que não recebem senão o mal e não podem produzir senão o mal.

Crianças que trabalham fazendo pequenos serviços brincam de bola de gude diante da Estação da Luz, em São Paulo, por volta de 1910 (Vincenzo Pastore/Instituto Moreira Salles)

O projeto do senador Alcindo Guanabara não foi aprovado. No entanto, uma década mais tarde, justamente no Dia das Crianças de 1927, por influência dos dois congressos de proteção da infância realizados no Rio de Janeiro em 1922, uma proposta com conteúdo semelhante, depois de passar pelo Senado e pela Câmara, foi assinada pelo presidente Washington Luís.

Trata-se do Código de Menores, a primeira grande lei brasileira destinada a crianças e adolescentes. Entre outras mudanças, elevou a maioridade penal para 18 anos (era aos 9 anos até 1922 e então passou aos 14 anos) e criou um juizado específico para decidir o destino dos menores abandonados ou delinquentes.

A lei de 1927 também proibiu o trabalho antes dos 12 anos, acabou com a roda dos expostos (roleta embutida na fachada de instituições de caridade que permitiam o abandono de bebês) e, claro, criou reformatórios com cursos profissionalizantes.

De acordo com o historiador James Wadsworth, da Faculdade Stonehill, a preocupação da elite brasileira com a infância pobre na época da criação do Dia da Criança tinha componentes machistas.

— Médicos, educadores e políticos dirigiam seus programas de educação e assistência sobretudo para as mães. Esse grupo de homens pretendia ensiná-las a se tornarem mulheres e mães melhores, sem julgar necessário consultar as interessadas nem envolver os pais na criação dos filhos.

Também havia componentes eugênicos e racistas. Wadsworth lembra que Moncorvo Filho promoveu os “concursos de robustez infantil”, que escolhiam os bebês mais bonitos e saudáveis. As competições eram voltadas principalmente para famílias pobres. O historiador diz:

— Os concursos apresentavam um ideal racial para a beleza, o vigor e a saúde. O fato de todos os premiados serem brancos não era uma mera casualidade. Havia um silencioso discurso a respeito da raça. Era amplamente aceita pelos grupos dominantes a crença de que a mistura de raças constituía um obstáculo ao desenvolvimento nacional e era necessário promover o branqueamento da população para eliminar as características indesejáveis.

Vídeo mostra concurso de robustez infantil realizado no Rio de Janeiro em 1952 com a presença da primeira-dama Darcy Vargas (Agência Nacional/Arquivo Nacional)

Wadsworth entende que, mesmo com as ambiguidades, a semente plantada há 100 anos, na época da oficialização de 12 de outubro como o Dia da Criança, cresceu no decorrer das décadas, com a evolução da forma como a infância é vista e tratada no Brasil.

— Os esforços de bem-estar infantil do início do século 20 foram precursores da atual luta do Brasil para fazer cumprir sua Constituição de 1988, que inclui uma das leis de direitos da criança mais progressistas do mundo — ele afirma, referindo-se ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, que mudou o foco legal das punições para os direitos.

O professor Moysés Kuhlmann Júnior, da UnB, concorda que, em termos práticos, ainda há muito a avançar:

— A existência da legislação não garante que esteja tudo resolvido. O acesso à creche, por exemplo, é um direito que está previsto pela Constituição, mas até hoje não é oferecido a contento pelas prefeituras.

De acordo com ele, mesmo passado tanto tempo, persistem no Brasil atual resquícios do modo como a infância era vista no início do século passado, como a estratégia de alfabetizar as crianças pobres com o intuito de apenas capacitá-las minimamente para os trabalhos menos especializados:

— Até hoje deparamos com aquela velha ideia de que as classes baixas não precisam de escola de qualidade e a educação deve fazê-las se contentar com os degraus mais baixos da sociedade.

Anúncio de alimento infantil publicado em 1924 na revista O Tico-Tico (Bibloteca Nacional Digital)

Nos primeiros anos, as celebrações do Dia da Criança incluíam concursos de robustez infantil, visitas ao jardim zoológico, filmes gratuitos nos cinemas, desfiles de escoteiros, jogos de futebol, missas especiais, doação de roupas e brinquedos às crianças pobres e até mesmo ações de valorização do trabalho infantil.

Kuhlmann Júnior diz que, na década de 1930, empresas como Nestlé e Toddy aproveitaram o Dia da Criança para promover as marcas distribuindo leite condensado e achocolatado em escolas e orfanatos.

Segundo ele, foi na década de 1960 que passou a prevalecer a associação do Dia da Criança aos presentes e a data ganhou o sentido comercial que permanece até hoje.


Reportagem: Ricardo Westin
Edição de texto: Herivelto Ferreira
Pesquisa histórica: Johnatan Leal da Costa Silva e Pedro Paulo Ribeiro Neto, do Arquivo do Senado
Edição de foto e vídeo: Bernardo Ururahy
Foto de abertura: Crianças trabalham engraxando sapatos no Largo São Bento, em São Paulo, por volta de 1910 (Vincenzo Pastore/Instituto Moreira Salles)


Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)