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Darcy Ribeiro, o legislador

Guilherme Oliveira
Publicado em 23/9/2022

Se o legado de um parlamentar fosse medido pelos números da sua produção legislativa, Darcy Ribeiro seria um dos últimos da fila. Em sete anos como senador, o antropólogo foi autor ou relator de apenas um pequeno punhado de propostas, e poucas delas vingaram.

No entanto, a qualidade é um indicador melhor do que a quantidade, e a trajetória de Darcy como legislador deixou ao Brasil uma herança que supera as carreiras de muitos congressistas mais veteranos do que ele. Bastaram dois projetos relatados para que o senador-professor tenha deixado sua marca na história do Senado, como piloto de uma emenda constitucional e padrinho de uma lei que leva seu nome.

A emenda tratou de desmontar um dos grandes anacronismos da Constituição: a proibição de que universidades contratassem professores estrangeiros. Já a Lei Darcy Ribeiro é um dos blocos fundadores do Brasil pós-1988: trata-se da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB).

Darcy fala em reunião de comissão no Senado (foto: Arquivo do Senado)

Curiosamente, a carreira de Darcy como legislador só engrenou na segunda metade do seu mandato. Eleito para o Senado em 1990, ele se notabilizou de partida como um fomentador de debates: reunia plateias de curiosos nos seus discursos em Plenário, recebia visitantes ilustres e editava uma revista de textos e reflexões que era diferente de tudo aquilo que saía dos gabinetes parlamentares da época.

Produção legislativa, porém, era pouca. Todos os projetos que Darcy apresentou no seu primeiro ano como senador acabaram batendo na parede. Ele assinou:

  • Uma proposta que decretasse todas as vias públicas como sendo de uso preferencial dos pedestres, e removendo o direito à carteira de habilitação de qualquer motorista que se envolvesse em acidente com morte (PLS 201/1991). O texto parou na Câmara dos Deputados

  • Uma proposta que obrigasse a adição de uma substância de mau cheiro à cola de sapateiro, para reduzir o seu uso como entorpecente pelos jovens (PLS 304/1991). Também não passou pelo crivo dos deputados

  • Duas propostas sobre a doação de órgãos e tecidos no Brasil — prática que ainda não era regulamentada — estabelecendo a retirada e destinação do material para fins médicos ou científicos como padrão, exceto em caso de recusa expressa ainda durante a vida (PLS 305/1991 e PLS 37/1994). Nenhuma delas chegou a sair do Senado, mas a primeira tinha teor semelhante à lei que foi sancionada sobre o tema anos mais tarde.

Darcy em pronunciamento no Plenário do Senado (foto: Arquivo do Senado)

Salvo essas propostas, os primeiros anos de Darcy Ribeiro como senador foram dedicados a mobilizações de outras naturezas. Seu trabalho de formação política no gabinete, com a revista Carta', era uma delas. Entre 1991 e 1992, ele se licenciou para exercer o cargo de secretário de Projetos Especiais de Educação no Rio de Janeiro — o suplente Abdias Nascimento (1914-2011) assumiu o mandato nesse período. Mais tarde, em 1994, Darcy embarcou numa campanha presidencial, como candidato a vice na chapa do amigo de longa data Leonel Brizola (1922-2004).

A chegada de uma nova legislatura mudou a sua trajetória como senador. Se até então ele era — em suas próprias palavras — principalmente um provocador, a partir de 1995 ele vestiu a roupa do articulador e ingressou num outro tipo de política.

Foi no início desse ano que Darcy Ribeiro foi incumbido da relatoria da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Era uma missão auspiciosa. O Brasil ainda engatinhava em uma nova ordem constitucional e precisava redefinir os termos de quase todas as suas políticas cívicas. A LDB seria o alicerce para a alfabetização, o cultivo dos jovens, a qualificação profissional, a formação superior.

O Brasil tinha, naquele momento, uma LDB. Ela datava de 1961 e era completamente inadequada para o novo momento do país. A lei não estabelecia claramente as obrigações de cada ente federativo na área, e nem as da família. Não previa a universalização da educação como um direito ou como uma obrigação do Estado. Não elencava princípios de equidade ou cidadania.

Como resultado disso, o Brasil entrava na última década do século 20 convivendo com uma longa lista de problemas. Quem explica é Lucas Hoogerbrugge, líder de Relações Governamentais da ONG Todos Pela Educação.

— A escola ainda era para poucos, e a escola de qualidade, para menos gente ainda. O país tinha uma burocracia parcamente estabelecida, não tinha grande profissionalização da administração pública. As taxas de acesso escolar e de conclusão da educação básica ainda eram muito precárias, e tínhamos indicadores gigantescos de reprovação no ensino fundamental. As condições de financiamento eram muito inadequadas, havia estados e municípios que investiam cerca de R$ 300 por estudante no ano. Havia pouca infraestrutura escolar e pouca valorização das carreiras de professores, com salários vergonhosos.

A Constituição havia criado expectativas ambiciosas para todos os direitos sociais, e agora cabia aos legisladores criar as ferramentas para que os desejos saíssem do papel. O projeto que viria a se tornar a LDB foi um dos primeiros: nasceu na Câmara dos Deputados cerca de dois meses depois da promulgação da Constituição.

Em 1993, quando chegou ao Senado, ele já era considerado maduro. Levou pouco mais de um ano para ser aprovado pela Comissão de Educação (CE). Esse seria o fim da história, pois o despacho inicial previa apenas essa escala antes da votação final do projeto pelo Plenário. Até que, em março de 1995, um requerimento do senador Beni Veras (CE) pediu que o projeto fosse analisado também pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Uma semana depois ele era confiado à relatoria de Darcy Ribeiro.

Educador e homem de Estado

A nomeação tinha ares de casamento perfeito. A atuação de Darcy na política educacional brasileira era histórica e ele havia sido ministro da Educação — era o titular da pasta quando a LDB de 1961 entrou em vigor. Além disso, tinha uma ligação próxima com o chamado Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, um documento publicado nos anos 1930 e considerado seminal para o modelo educacional desenhado na Constituição de 1988. Dois dos signatários, inclusive, foram figuras de grande influência na vida pública de Darcy: Anísio Teixeira (1900-1971), que levou-o para as lutas pela educação pública, e Hermes Lima, que foi seu colega no gabinete do presidente João Goulart (1919-1976). 

A passagem do projeto pelas mãos do senador poderia ter sido apenas uma formalidade, uma maneira de carimbar a nova lei com o nome de um prócer da educação brasileira. Em abril, no entanto, Darcy Ribeiro pegou o Senado de surpresa ao apresentar um substitutivo completamente novo, desfazendo muito do que havia sido consolidado nos sete anos de tramitação que o projeto já carregava nas costas.

Darcy Ribeiro apresentou um substitutivo ao projeto da LDB aprovado na Câmara (foto: Arquivo/Senado Federal)

Para ele, o texto herdado estava “permeado de inconstitucionalidades”. Previa a criação do Conselho Nacional de Educação, iniciativa que, segundo Darcy, cabia apenas ao Executivo (o projeto manteria a previsão do conselho, criado por meio de medida provisória em outubro de 1995). Os termos delineados para a autonomia administrativa e financeira das universidades contrariavam a organização das finanças públicas, afirmou o senador. Era previsto, em “excesso de pormenores”, um Plano Nacional de Educação, mais uma afronta às prerrogativas do Executivo.

Todas essas observações constavam do relatório que Darcy Ribeiro entregou à CCJ no dia 4 de maio de 1995. Era o segundo substitutivo, e o mais comportado — na primeira versão, Darcy havia recusado a LDB e produzido um texto a partir de outro projeto de lei.

Ele tinha outras críticas. Em suas memórias, publicadas dois anos mais tarde, explicou que o texto da LDB era "enxundioso de tão grande”, muito mais uma carta de boas intenções do que um instrumento para políticas efetivas.

Era mais a expressão de pensamentos desejosos do que um corpo de normas para estruturar o sistema nacional de educação, além de fazer impensáveis concessões corporativistas. Nosso substitutivo era enxuto e direto. Tratava sucintamente de cada assunto, fixando normas operativas

Darcy Ribeiro

Além de surpreender os colegas, Darcy Ribeiro despertou a ira de sindicatos, entidades e ativistas da educação pública pelo Brasil afora. O novo texto recebeu uma enxurrada de manifestações de repúdio, que impressionam em volume e variedade. No Arquivo do Senado, onde são armazenadas cópias físicas de projetos de lei e seus documentos correlatos, a LDB ocupa três caixas. Uma delas é inteiramente reservada a essas respostas da sociedade, quase todas negativas.

São abaixo-assinados de professores e estudantes, exigindo o retorno ao texto anterior. Milhares de assinaturas foram reunidas em vários estados — até de crianças, escritas em giz de cera. A mesma reivindicação está espalhada por correspondências remetidas a parlamentares, às comissões, ao então senador José Sarney (AP), que presidia o Senado na época. São cartas, faxes, telegramas, aerogramas, até folhas de caderno avulsas.

Jornal da época noticia insatisfação de reitores com a proposta de Darcy (imagem: reprodução/Biblioteca Nacional)

As únicas reações positivas anexadas ao projeto vieram de organizações que não poderiam ser mais divergentes da trajetória pública de Darcy Ribeiro: a Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (um sindicato patronal) e a Tradição, Família e Propriedade — entidade católica conservadora notabilizada por sua defesa da ditadura militar. Hostilizado por correligionários e apoiado por adversários, Darcy havia virado o debate pela LDB de pernas para o ar.

As críticas descritas por Darcy como “corporativistas” partiam principalmente do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, uma congregação de entidades de classe que participou ativamente das discussões sobre a educação nas décadas de 1980 e 1990. O Fórum condenou a decisão do senador de remover da LDB o Conselho Nacional de Educação e todas as diretrizes detalhadas para o Plano Nacional de Educação.

Também questionava a falta de termos para assegurar a gestão democrática nas instituições de ensino. Uma delas, por exemplo, era a rejeição à paridade nas universidades — professores teriam 70% de participação nas instâncias decisórias. Escolhas como essa causaram espécie por divergirem das convicções históricas de Darcy Ribeiro sobre a educação, como explica Heleno Araújo, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE).

— Temos a concepção de que a formação cidadã dos estudantes começa no portão da escola: o porteiro é um profissional da educação, a merendeira, os funcionários na secretaria. Quando falamos de escola integral, não falamos só do tempo. É a integralidade das pessoas. A perspectiva da escola integral é voltada para ter profissionais com um único vínculo, interagindo diretamente interagir com os estudantes, com a comunidade. A educação integral de Darcy segue a mesma ideia — explica.

Araújo observa, porém, que os conflitos se davam dentro do mesmo campo, entre aliados. O próprio Darcy, em seus relatórios e manifestações sobre a LDB, enfatizava que as decisões que tomava não significavam que ele havia passado a rejeitar os princípios que sempre defendeu, mas sim que ele entendia que a lei precisava ser frugal para ser eficiente.

— A lei possibilita que os sistemas estaduais interfiram nela, modifiquem-na, não entregue a eles uma martelada que sejam obrigados a cumprir, como se a educação do Acre fosse idêntica à do Rio Grande do Sul. Essa é uma lei da liberdade de educar, de experimentar — disse ele em discurso no dia 25 de outubro, quando o projeto foi aprovado pelo Plenário.

Exemplo dessa insistência de Darcy em produzir uma lei que não impusesse de antemão as decisões foi a sua reação às centenas de emendas apresentadas pelos senadores ao longo da tramitação do projeto. Apesar de ver muitas delas como bem intencionadas ou até oportunas, o relator insistia em rejeitá-las para que o texto não se tornasse uma coleção de boas ideias inexequíveis.

Darcy argumentava que a LDB precisa ser simples para ser eficiente (Arquivo/Senado Federal)

A senadora Benedita da Silva (RJ), por exemplo, propôs que empresas com mais de 30 funcionários fossem obrigadas a manter creches. Darcy observou que a legislação trabalhista já trazia norma semelhante e ela não era cumprida. “Cuba, que tem um extraordinário sistema educacional, não dá creche. É uma responsabilidade bastante pesada e cara. Reiterar nisso é reiterar numa coisa que não pega, não funciona e nem deve funcionar”, escreveu ele ao relatar a emenda. Ela foi a votação em Plenário e rejeitada.

Em outro caso, o senador José Eduardo Dutra (SE) sugeriu dispositivo garantindo a oferta de cursos noturnos em universidades, com a mesma qualidade dos cursos diurnos. Darcy argumentou que essa previsão legal não significaria nada. “A isonomia entre o ensino diurno e o noturno independe de previsão legal: cabe ao processo de avaliação contribuir para que ela seja realizada. Já a oferta de cursos noturnos é da responsabilidade dos sistemas e instituições de ensino, que levarão em consideração as especificidades de cada curso”, explicou. Neste caso, a emenda foi aprovada em Plenário e entrou no texto.

A aprovação definitiva da LDB veio apenas em fevereiro de 1996, após idas e vindas entre relatórios e emendas. Até a última hora os opositores insistiram no retorno à versão anterior, ou então na realização de mais audiências públicas, mas o relator prevaleceu. O projeto ainda retornou à Câmara para revisão. O texto final manteve tanto da identidade dada por Darcy que a LDB ganhou o apelido de “Lei Darcy Ribeiro”.

Mesmo os senadores mais críticos votaram a favor do relatório de Darcy, mantendo as suas reservas mas concordando que era hora de dar ao país a legislação educacional definitiva. Outros detalhes viriam depois, e vieram. Heleno Araújo, presidente da CNTE, afirma que a lei foi desbravadora. 

A LDB, apesar de tudo, foi uma vitória importante. Enfrentamos a correlação de forças do período, e aquilo que não conseguimos na época, conseguimos depois. Ela tem ainda fôlego para mudarmos o cenário da educação brasileira

Heleno Araújo

Lucas Hoogerbrugge, da ONG Todos Pela Educação, também avalia que a LDB é uma fundação firme sobre a qual o país está até hoje construindo políticas educacionais. Isso é possível, segundo ele, exatamente porque a lei conseguiu estabelecer uma conexão entre o Brasil sonhado pela Constituição e o Brasil real, com suas limitações imediatas.

— A LDB foi arrojada e tem fundamentos muito sólidos. Darcy era um intelectual e político que conseguia fazer um diálogo que poucas pessoas conseguiram fazer até hoje, da educação até a gestão pública, passando pela política. Como intelectual que entendia muito a organização do Estado brasileiro, ele conseguiu tangibilizar essa visão, que era muito conceitual. A LDB é essa materialização.

Ao mesmo tempo que a figura de Darcy Ribeiro foi um ingrediente importante nesse processo, Hoogerbrugge observa que a LDB é filha do seu tempo e do clima institucional que se abriu com a nova Constituição.

— No fundo é um produto do Parlamento, não é só [de Darcy]. É uma liderança muito importante e a lei certamente tem a digital dele, se fosse outra liderança teria um contorno diferente. Mas a lei é fruto da sua época, de um Parlamento que estava pensando um Brasil novo.

Estrangeiros

A segunda relatoria crucial de Darcy Ribeiro se desenrolou com mais tranquilidade e resultou em um consenso mais fácil. Coube a ele mudar a regra constitucional que proibia as universidades nacionais de contratarem professores estrangeiros.

A PEC com a alteração chegou ao seu gabinete em outubro de 1995, no calor das discussões sobre a LDB, de modo que a proposta acabou tendo que esperar. Darcy emitiu o relatório em janeiro de 1996, e a partir daí o assunto tramitou rapidamente.

Estrangeiros lecionavam no ensino superior brasileiro já naquela época, mas a prática não tinham respaldo oficial — a Constituição reservava todos os cargos públicos para brasileiros. As instituições se escoravam no princípio da autonomia universitária, ainda não regulamentado, para contratar esses profissionais.

Darcy não via o menor sentido nessa norma. Ao opinar sobre a mudança, contextualizou-a como um dos instrumentos que mantinham o Brasil num estado de atraso e subdesenvolvimento. Faltou “sensibilidade” aos constituintes quando redigiram essa regra, avaliou ele no seu relatório.

“As atividades desenvolvidas pelas universidades e instituições de pesquisa tratam não apenas de questões regionais e nacionais, mas de problemas que afetam toda a humanidade. [A proibição] representa uma tentativa de dificultar a transferência para o país de informações científicas e de tecnologia que muito poderiam contribuir para a superação de nossos problemas sociais e econômicos. A emenda nos liberta do provincianismo e reintegra a universidade brasileira no conjunto acadêmico e científico internacional”, escreveu.

A PEC foi aprovada em duas rápidas votações, uma em fevereiro e outra em abril. No dia da primeira, Darcy reforçou a sua posição afirmando que os constituintes haviam feito “um mau negócio”: impediram que o Brasil trouxesse cérebros estrangeiros para compensar a perda daqueles que iam fazer carreira fora do país.

Esta é uma aspiração profunda da comunidade científica brasileira: falar com seus colegas estrangeiros, não para tratá-los como uma pessoa de segunda classe, mas um igual

Darcy Ribeiro

Como resultado, a Emenda Constitucional 11 foi promulgada no dia 30 de abril. Com ela, Darcy Ribeiro, que não foi constituinte, inscreveu seu nome na carta refundadora da República. Aquela que trouxe a promessa de tantas providências que enfim desfariam as amarras do subdesenvolvimento que ele denunciou por toda a vida.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação demorou um pouco mais, sendo sancionada em 20 de dezembro de 1996. Menos de dois meses depois, Darcy Ribeiro faleceu em Brasília, vítima da metástase de um câncer na próstata. A doença o havia acompanhado durante todos os trabalhos de relatoria da LDB e da emenda constitucional.

Ouça o discurso de Darcy ao fim da aprovação da LDB (8/2/1996)


Reportagem: Guilherme Oliveira
Produção: Débora Brito e Rodrigo Baptista
Edição: Valter Gonçalves Jr.
Pesquisa de fotos: Ana Volpe
Tratamento de fotos: Bernardo Ururahy
Edição de vídeo: Aguinaldo Abreu
Arte de capaBruno Bazílio
Foto de capa: Acervo Fundar