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Darcy Ribeiro, o parlamentar

Guilherme Oliveira
Publicado em 23/9/2022

Darcy Ribeiro sempre se enxergou como um ser da política. Em suas memórias, escritas no final da vida, descreveu-se como um “homem de ação”, atraído pela possibilidade de dirigir os destinos do Brasil. Criticava na esquerda de seu tempo um certo imobilismo vindo da intelectualidade teórica e do engessamento ideológico nas estruturas partidárias. Não compartilhava do desapreço de seus colegas da academia e da militância pelo pragmatismo da política profissional.

Essa inclinação o levou a uma carreira precoce em Brasília: com menos de 40 anos foi ministro da Educação, e pouco depois já comandava a Casa Civil de João Goulart. Ao mesmo tempo que Darcy se dedicava ao poder, ele não se via como um articulador, mas sim como um gerente. Ele classificou sua participação no governo como um “administrador da coisa pública”, mais do que como um negociador. Deixava as manobras políticas para o presidente.

Darcy Ribeiro foi ministro da Educação e da Casa Civil no governo de João Goulart (foto: Acervo Fundar)

Foi apenas perto dos 70 anos de idade que Darcy Ribeiro se aventurou pela primeira vez como parlamentar. No Congresso Nacional, precisou exercitar também o lado negociador. Se um ministro tem subordinados, um parlamentar está entre iguais.

Quem conheceu Darcy como acadêmico, como ministro e como congressista explica como aconteceu essa transição. O ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso explica que o amigo podia ser intransigente, mas também sabia conquistar aliados.

— Ele pessoalmente era pouco sensato, mas em atividade pública era sensato. Tinha o pensamento grandioso e achava que as ideias dele eram melhores, queria implementá-las. Então havia choque. Mas quando queria ser agradável, conseguia.

Fernando Henrique Cardoso em visita ao Senado em 2014 (foto: Jane de Araújo/Agência Senado)

Fernando Henrique e Darcy foram colegas no exílio, durante a ditadura militar, e dividiram brevemente o Plenário do Senado no início dos anos 1990. Quando Fernando Henrique subiu a rampa do Planalto, Darcy era um opositor, crítico ardente da política de privatizações e abertura econômica que o amigo levou a cabo. Segundo o ex-presidente, sempre foi leal.

Também segundo Fernando Henrique, a frase mais famosa de Darcy Ribeiro — “Os fracassos são minhas vitórias”, falando sobre as pautas que não conseguiu concretizar — não passava de “charme”. O ex-presidente afirma que Darcy não era um utopista e compreendia o mérito do possível: suas maiores vitórias foram, de fato, as vitórias.

Ele sabia que isso não era verdadeiro. Darcy sempre foi um fazedor de coisas. Faz falta ter gente com o dinamismo que ele tinha. Ele acreditava nele mesmo, sonhava e fazia

Fernando Henrique Cardoso

Eleições

A chegada de Darcy Ribeiro ao Congresso Nacional coincide com um momento decisivo da história da política brasileira. As eleições de 1990, nas quais ele conquistou a cadeira de senador pelo Rio de Janeiro, inauguraram de várias formas a Nova República.

Essas foram as primeiras eleições gerais realizadas sob a nova ordem constitucional, construída no lugar da ditadura militar. Após a promulgação da Constituição Federal, em 1988, o país realizou eleições municipais, no mesmo ano, e a grande eleição presidencial direta de 1989. Apenas em 1990 renovou-se o Legislativo, com a substituição da grande maioria dos parlamentares constituintes.

Seção eleitoral no dia de votação para presidente da República em 1989 (foto: Autoria desconhecida/CSBH/FPA)

De quebra, os governos estaduais também estavam em jogo, e com uma importante novidade: pela primeira vez, todos os atuais 27 estados da Federação participaram da festa. No pleito anterior, Amapá e Roraima ainda eram territórios federais, o Distrito Federal não elegia seu governador e o Tocantins não existia.

A principal mudança promovida nas eleições de 1990, porém, estava nas regras do jogo. A nova Constituição estabeleceu um novo marco eleitoral e fez caírem duas normas que haviam sido erigidas nos últimos anos do regime militar para controlar a abertura política que se desenrolou nos anos 1980.

A primeira delas, o voto vinculado, exigia que o eleitor votasse em candidatos do mesmo partido para todos os cargos em disputa, sob pena de anulação. Com isso, partidos recém-criados, com menos estrutura e nominatas menores, viam reduzidas as suas chances de eleger um deputado que fosse.

Outra regra, essa mais relevante para o Senado, era a da sublegenda. Nela, o partido com mais votos, na soma dos seus candidatos, levava todas as vagas. Isso favorecia quem tinha mais quadros competitivos. Além disso, os partidos podiam lançar mais de uma “chapa”, o que permitia a acomodação de dissidências internas e limitava migrações para as novas legendas.

O novo regime constitucional mudou tudo isso, e o resultado se viu na abertura das urnas. O número de partidos que elegeram senadores, que foram apenas três em 1982 e cinco em 1986, saltou para 11 em 1990. A Câmara dos Deputados passou de 12 para 19 bancadas, e a distribuição também estava mais difusa: não era mais possível formar uma maioria qualificada com menos do que seis bancadas, algo que antes podia ser feito com apenas duas.

Foi nesse cenário de efervescência partidária e de possibilidades escancaradas que Darcy Ribeiro estreou como parlamentar. O historiador Antônio Barbosa era consultor legislativo do Senado naquela época. Ele conta que a chegada de Darcy, um nome consagrado, foi antecedida de grande expectativa.

— A promulgação da Constituição é o arcabouço para uma nova fase da vida política brasileira, com uma nova forma de praticar a democracia. É nesse quadro que Darcy entra de forma vigorosa. A sua estreia na tribuna do Senado foi uma coisa impressionante. O Plenário e as galerias estavam cheios. Houve um silêncio absolutamente respeitoso — recorda ele.

Usina de ideias

Darcy inaugurou seu mandato no dia 20 de março de 1991, com um discurso que ele intitulou “Fala à nação”. É um resumo do seu pensamento socioeconômico, com ares de dissertação acadêmica, mas já aponta para a sua adaptação ao papel de membro do Congresso Nacional. Ele discorreu longamente sobre os motivos para “o atraso do Brasil e a penúria dos brasileiros”, mas as exortações vieram acompanhadas de quatro pedidos de informação aos ministérios da Justiça e da Saúde cobrando respostas e providências sobre problemas específicos: abortos clandestinos, esterilização de mulheres, genocídio de povos indígenas e assassinato de menores. Subiu à tribuna um professor, desceu um congressista.

Retrato de Darcy com o broche de senador e registros de sua atuação na Casa (fotos: Arquivo/Senado Federal)

A oratória se tornaria uma marca registrada do senador Darcy Ribeiro. Não é incomum que senadores se valham de consultores e assessores para redigir discursos, mas Darcy escrevia os seus próprios. Antônio Barbosa lembra dele como “uma usina de ideias”, o que inclusive lhe atrapalhava a dicção: o raciocínio rápido atropelava a boca e as palavras saíam gaguejadas, emboladas.

Barbosa sugere que Darcy esteve entre os últimos expoentes de senadores que construíram seu mandato a partir das falas. Junto com contemporâneos como Jarbas Passarinho e Mário Covas, ele fazia parte de um grupo no Senado que representava o ânimo de um país em transformação. 

Aquele foi um dos últimos momentos em que o Plenário do Senado recuperou a força da palavra. Nos últimos anos, e isso é um fenômeno mundial, o Plenário vai perdendo força para o trabalho das comissões técnicas. Mas, naquele momento, tínhamos ainda grandes oradores, independentemente de posições políticas. Os embates eram interessantíssimos, e Darcy foi uma das figuras centrais.

Antônio Barbosa

Gabinete

O tronco de um mandato é o gabinete, e pelo gabinete de Darcy Ribeiro é possível enxergar um pouco do que fez dele um senador único. A começar pelo espaço físico: até hoje o escritório de número 11 na Ala Teotônio Vilela do Anexo II do Senado Federal guarda os resquícios da sua passagem, na forma de um mural desenhado in loco pelo amigo Oscar Niemeyer.

O gabinete de Darcy era uma espécie de embaixada cultural e acadêmica. O senador encorajava visitas e gostava de receber intelectuais e artistas para conversas demoradas. Preferia essas agendas a audiências com correligionários e eleitores.

Gabinete que pertenceu a Darcy Ribeiro. Nas paredes, desenhos de Oscar Niemeyer (fotos: Pedro França/Agência Senado)

Coordenador do Museu do Senado fala sobre desenhos de Niemeyer no gabinete que foi de Darcy Ribeiro

O relato é de Rosa Maria Vasconcelos, servidora do Senado que trabalhou no gabinete no início do mandato de Darcy. Ela conta que o espaço era disputado não só por servidores, mas também por funcionários, graças ao status de “celebridade” do senador.

— Era uma movimentação muito grande. Ele não era um senador que recebia o 'povão', mas era uma pessoa alegre, receptiva, expansiva, sempre tinha história para contar. Todos queriam trabalhar lá, o que era um problema porque a quantidade de cargos era menor do que hoje.

Servidora do Senado há quase 40 anos, Rosa hoje é a chefe do Arquivo Histórico do Senado. Ela trabalhou com vários senadores e chefiou o estafe de alguns, mas se lembra com orgulho de uma experiência singular, realizada com Darcy Ribeiro. 

No primeiro ano de mandato, o gabinete iniciou a publicação da revista Carta', impressa pela própria gráfica do Senado. Era um trabalho pioneiro. Todos os senadores tinham, naquela época, uma cota orçamentária para divulgação do seu trabalho. A prática corriqueira era reunir os discursos, proposições e outros documentos relevantes do mandato e pedir à gráfica para editar um volume anual. Eram os tempos antes dos veículos de comunicação do Senado, quando a agitação cotidiana não chegava facilmente à população.

Formação política

Carta’ oferecia outro tipo de conteúdo. Em seu primeiro número, do primeiro semestre de 1991, trazia, sim, a reprodução da “Fala à nação”, inclusos os sete apartes que o senador recebeu. Mas trazia, também, outros três textos que nada tinham a ver com a tônica política do momento: o discurso proferido por Gabriel Garcia Márquez ao aceitar o Prêmio Nobel de Literatura em 1982; o plano urbanístico de Brasília, assinado por Lúcio Costa; e um ensaio do filósofo José Guilherme Merquior, recém-falecido, sobre um dos maiores heróis de Darcy Ribeiro, o marechal Cândido Rondon.

Essa era a natureza da revista: expandir as fronteiras de um típico mandato parlamentar e provocar grandes debates, resgatando referências e convocando vozes da história.

— Ele não estava tão preocupado em fazer a política da forma tradicional, influenciando a agenda. A forma dele era: “Como posso trazer intelectualidade e cultura para [o Senado]?” — explica Rosa.

Revista Carta', editada pelo gabinete de Darcy Ribeiro (foto: Reprodução/Biblioteca do Senado)

Toda edição vinha com um prólogo original, assinado pelo senador, que introduzia a motivação da vez. O restante do conteúdo podia variar. Por vezes o debate ia ao encontro de uma questão do momento: a Carta’ de número 7 foi dedicada ao desafio energético, no mesmo ano em que o Congresso Nacional quebrava o monopólio estatal sobre a exploração de petróleo. Por vezes, explorava efemérides, como a Carta’ nº 13, no ano do 300º aniversário da morte de Zumbi dos Palmares.

Mas a revista não se amarrava necessariamente aos acontecimentos imediatos, e por vezes ela apenas promovia diálogos entre grandes pensadores, costurando reflexões do passado e do presente. Frequentaram suas páginas nomes brasileiros como Celso Furtado, Anísio Teixeira, Milton Santos, Antônio Houaiss e Joaquim Nabuco, ou estrangeiros como Edgar Morin e Norberto Bobbio.

Darcy também trazia vozes da política, inclusive de alguns colegas de Senado. As lembranças ultrapassavam barreiras ideológicas. Jarbas Passarinho e Marco Maciel, antigos próceres da Arena, dividiram as páginas com o emedebista Orestes Quércia e o líder camponês Francisco Julião. Presenças inescapáveis eram as do triunvirato político que Darcy orbitou durante a vida: Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola.

O mais importante da Carta’ era o ineditismo da sua proposta: um material produzido dentro do Senado, a partir do mandato de um senador, voltado não para o mero registro de atividades ou para a autopromoção, mas para formação política. Como dizia o texto-manifesto inscrito em cada edição da revista: “Nosso propósito é passar o Brasil a limpo. Sabendo, porém, que para transformar é preciso primeiro entender, nos empenhamos em criar uma opinião melhor informada e mais combativa”.


Reportagem: Guilherme Oliveira
Produção: Débora Brito e Rodrigo Baptista
Edição: Valter Gonçalves Jr.
Pesquisa de fotos: Ana Volpe
Tratamento de fotos: Bernardo Ururahy
Imagens em vídeo: Pedro França
Edição de vídeo: Aguinaldo Abreu
Arte de capaBruno Bazílio
Foto de capa: Arquivo/Senado Federal