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Parceiros na chapa vitoriosa que concorreu a uma cadeira no Senado pelo Rio de Janeiro em 1990, o paulista Abdias Nascimento (1914-2011) e o mineiro Darcy Ribeiro (1922-1997) tiveram seus destinos cruzados muitas décadas antes dessa eleição. Se a tarefa de cravar exatamente quando aconteceu o primeiro encontro entre os dois não é das mais simples, o certo é que Abdias e Darcy participaram dos intensos debates do 1º Congresso do Negro Brasileiro, realizado no Rio de Janeiro em 1950.
Esse congresso ocorreu pouco mais de um mês após a final da primeira edição da Copa do Mundo no Brasil, marcada pela derrota da seleção canarinho para o Uruguai, no Maracanã. O placar de 2x1 no dia 16 de julho daquele ano levou os brasileiros da euforia às lágrimas e, de acordo com o jornalista Mario Filho (1908-1966), evidenciou mais uma vez o racismo no país. O jornalista relatou, na segunda edição do clássico livro O Negro no Futebol Brasileiro (1964), que três jogadores negros foram escolhidos como “bodes expiatórios” pelo fracasso na final: o goleiro Barbosa, o zagueiro Juvenal e o lateral esquerdo Bigode.
A seis quilômetros do estádio em que aconteceu o triunfo uruguaio, outro time entrou em campo entre os dias 28 de agosto e 2 de setembro daquele mesmo ano: Abdias Nascimento, Darcy Ribeiro, Ironides Rodrigues, Guerreiro Ramos, Aguinaldo Camargo, Edison Carneiro, Guiomar Ferreira de Matos e Luiz de Aguiar Costa Pinto, entre outros intelectuais e ativistas brasileiros (negros e brancos) interessados em discutir o que então era conhecido como “o problema do negro brasileiro”. O encontro foi realizado na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no centro do Rio de Janeiro.
Sociólogo, professor e coordenador de diversidade da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Márcio Macedo destaca que o primeiro encontro público entre Abdias e Darcy provavelmente ocorreu no 1º Congresso do Negro Brasileiro. Macedo é autor da dissertação de mestrado Abdias Nascimento, a Trajetória de um Negro Revoltado (1914-1968).
— Foi nesse congresso que identifiquei o primeiro contato entre Darcy Ribeiro e Abdias do Nascimento. Darcy fazia parte do grupo de intelectuais de esquerda que tinham interesse acadêmico e político na questão racial — apontou Macedo.
Organizado pelo Teatro Experimental do Negro (TEN), grupo criado por Abdias, o 1° Congresso do Negro Brasileiro tinha o objetivo de promover debates sobre os estudos afro-brasileiros e propor ações práticas para melhorar as condições de vida da população preta e parda, deixada à margem da sociedade após a abolição da escravatura de 1888. Segundo Márcio Macedo, a ideia era construir, nos termos de hoje, uma espécie de “frente antirracista” para questionar as relações entre negros e brancos.
A historiadora Maybel Sulamita, que desenvolve pesquisas sobre trajetórias, arte e intelectualidade afro-brasileiras, acrescenta que outra motivação do evento era colocar o negro “como produtor de conhecimento, protagonista de sua própria história e destino”. Ela recorda que o evento visava se contrapor aos congressos afro-brasileiros de Recife (1934) e Salvador (1937). Segundo a militância negra, esses dois eventos trataram o negro apenas como um objeto de estudo.
— O congresso [de 1950] contou com um público heterogêneo de participantes, negros e brancos, que possuíam em comum o interesse nos estudos afro-brasileiros. O impacto do evento é plural, ele demonstra a formação de uma rede de sociabilidades organizada por um grupo teatral militante. E as discussões travadas no evento sobre os conceitos de raça e negritude, por exemplo, são fundamentais para as ações do movimento negro que conhecemos hoje — ressalta Maybel.
Os dois pesquisadores lembram que Abdias Nacimento e Darcy Ribeiro frequentavam os mesmos círculos no Rio de Janeiro. Pelo menos desde 1944, ano da criação do TEN, Abdias atuava na então capital federal com vários grupos de artistas, intelectuais, políticos, ativistas, empresários e outras figuras da sociedade civil com o objetivo de construir uma “frente antirracista”. Já Darcy começou a trabalhar em 1947 como etnólogo no Serviço de Proteção aos Índios (SPI), precursor da Fundação Nacional do Índio (Funai), que tinha sede no Rio de Janeiro.
Apesar do interesse comum nos estudos afro-brasileiros, Abdias e Darcy acabaram em lados diferentes durante o 1º Congresso do Negro Brasileiro. Junto com outros intelectuais brancos que participaram das discussões, Darcy assinou uma declaração final distinta da defendida por Abdias e outros nomes do movimento negro.
— O ponto de cisão principal entre os participantes surgiu após a apresentação da tese A Estética da Negritude, do escritor e ativista negro Ironides Rodrigues. O texto apresentava, em linhas gerais, a afirmação do conceito de negritude e a utilização do conceito de raça a partir de um viés sociológico, empregado para a formação e a valorização de uma identidade negra positiva. Mas abordagens e perspectivas para a formação de um futuro se mostraram diferentes e geraram uma divisão dentro do próprio congresso — aponta Maybel Sulamita.
Segundo ela, a ideia trazida por Ironides — e defendida por Abdias — significava ir contra o projeto de democracia racial em voga na época.
— Ao fim do congresso, nove intelectuais participantes do evento se propuseram a redigir uma declaração final específica, assinada somente por “cientistas”, onde afirmavam sua preocupação de que a negritude fosse um “racismo negro contra brancos”. A negritude não era, e não é, uma forma de racismo, mas incomodava por questionar as visões sobre a identidade brasileira, a miscigenação e o viés marxista de alguns participantes — reforça a pesquisadora.
Apesar do fracasso da “frente antirracista”, Márcio Macedo e Maybel Sulamita ressaltam que o 1º Congresso do Negro Brasileiro constituiu um evento importante para a história da luta negra.
Os arquivos e documentos desse congresso — que constituem até hoje uma das fontes mais ricas e valiosas sobre a experiência afro-brasileira no século 20 — estão no livro O Negro Revoltado, organizado por Abdias Nascimento e publicado originalmente em 1968.
Se não acabaram no mesmo time durante aquele congresso, Darcy Ribeiro e Abdias Nascimento faziam parte da mesma seleção. Os dois possuíam trajetórias muito próximas no campo político. Na segunda metade dos anos 1970, em meio à ditadura militar, eles se uniram a Leonel Brizola para a criação do Partido Democrático Trabalhista (PDT). Em pronunciamento feito no Senado em 1998, Abdias recordou a luta que terminou com a criação da legenda.
— “Reintegrados no quadro político graças à anistia, nosso primeiro objetivo", diria Darcy, "foi reconquistar a velha legenda do Partido Trabalhista Brasileiro”, legenda historicamente nossa, e que só nós podíamos conduzir com dignidade. Ainda no exílio, Brizola promoveu duas reuniões em Lisboa com o objetivo de definir o programa do PTB. Escrevi os estatutos do novo PTB e entramos em luta judicial em Brasília contra uma aventureira, Ivete Vargas, que, associada ao general Golbery [do Couto e Silva], disputava a mesma legenda. Ela ganhou. (...) Pouco depois, Doutel de Andrade me procurava para escrever um novo estatuto, agora para o Partido Democrático Trabalhista, que seria a nossa trincheira. Com essa legenda, voltamos à vida política — afirmou Abdias.
E foi nas fileiras do PDT que os dois concorreram em 1990 para o Senado. Ao destacar o legado de Darcy e Abdias, o senador licenciado Weverton Rocha (PDT-MA) observa que a formação da chapa não aconteceu por acaso.
— Darcy Ribeiro e Abdias Nascimento levantaram as bandeiras de duas questões fundamentais para o nosso país: a importância da educação e o combate ao racismo. São temas que precisam ser enfrentados como prioridade para o desenvolvimento do país e a redução das desigualdades econômicas e sociais. O fato de os dois terem partilhado um mandato no Senado não é só coincidência; é emblemático de como as duas causas andam juntas — avalia Weverton.
A tabelinha funcionou. Abdias assumiu o assento no Senado provisoriamente em agosto de 1991, quando Darcy foi convidado a ocupar o cargo de secretário extraordinário de Programas Especiais do Rio de Janeiro, pasta que comandou até fevereiro de 1992. Com a morte de Darcy em 1997, Abdias retornou ao Senado e cumpriu o mandato até 1999. A historiadora Maybel Sulamita recorda a parceria.
— Em diversos momentos Abdias declarou sua admiração por Darcy Ribeiro, principalmente por ele ter sido responsável por projetos educacionais amplos e ambiciosos para o Brasil. Os dois intelectuais possuíam frentes de atuação diferentes, mas integravam um projeto político que já reconhecia o racismo no Brasil — assinala ela.
Pouco mais de um ano após a morte de Darcy, Abdias subiu à tribuna do Senado e homenageou o antigo companheiro. No discurso do dia 4 de março de 1998, ele lembrou a luta conjunta de ambos desde 1950, ano do 1º Congresso do Negro Brasileiro.
— Sob a proteção de Olorum, inicio este meu pronunciamento. É com orgulho e emoção que assumo hoje esta tribuna para reverenciar uma das figuras mais ilustres e brilhantes de nossa história política e cultural contemporânea. [...] Emoção por estar aqui relembrando, não uma figura que eu conheci pelos registros da história, mas uma pessoa com a qual tive a oportunidade de compartilhar alegrias, sofrimentos e esperanças, no caminho de construirmos, ao lado de tantos outros companheiros, uma alternativa, uma possibilidade de futuro para o povo deste país. Refiro-me ao intelectual, ao político, ao educador, ao humanista, ao senador Darcy Ribeiro, cujo primeiro aniversário de falecimento transcorreu em 17 de fevereiro último, com quem mantive uma relação amiga e de cooperação intelectual desde a década dos cinquenta até a sua morte — disse Abdias ao saudar a memória do parceiro de chapa no Senado e de luta na vida.