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'Adoro o Senado', dizia Darcy na campanha de 1990

André Fontenelle
Publicado em 23/9/2022

Em nenhum momento, durante a campanha eleitoral fluminense de 1990, houve dúvida de que Darcy seria eleito para o Senado. Seu favoritismo era incontestado. A dúvida era outra: se ele tomaria posse.

Não que ele não quisesse ser senador, pelo contrário. “Eu adoro o Senado”, disse Darcy em mais de uma ocasião. Porém, Leonel Brizola, o líder de seu partido, o PDT, queria-o como um "supersecretário de Cultura, Educação, Turismo e Lazer" para seu segundo mandato como governador do Rio de Janeiro.

Darcy Ribeiro, então vice-governador do Rio de Janeiro, com Leonel Brizola, Oscar Niemeyer e Jamil Haddad; Darcy visita turma de alunos em um Ciep (fotos: Acervo Fundar e Acervo/Cieps)

No primeiro mandato de Brizola (1983-87), Darcy, como vice-governador, notabilizou-se por comandar duas grandes empreitadas: a construção de centenas de Cieps (Centros Integrados de Educação Pública), escolas em tempo integral, e a do Sambódromo, passarela permanente para o desfile das escolas de samba no Carnaval. Brizola queria repetir a experiência bem-sucedida. Darcy, porém, não escondia sua preferência ao Senado, pela contribuição que poderia dar a causas como a educação e a defesa dos povos indígenas.

— Não vou usar o mandato para viver de sombra e água fresca — disse Darcy em evento na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), em julho de 1990, dias depois da oficialização da chapa —, mas para defender todos os oprimidos deste país.

Em 1986, Darcy sofrera uma derrota amarga na eleição para o governo do estado do Rio de Janeiro: candidato escolhido por Leonel Brizola à sua sucessão, não resistiu à popularidade do Plano Cruzado, que ajudou Moreira Franco, do PMDB, a vencer com 49% dos votos, contra 36% de Darcy. 

— Só teve um governador que não foi eleito pelo PMDB [Antônio Carlos Valadares (PFL), em Sergipe]. Na noite da eleição o Darcy me ligou, quando estavam saindo os resultados, e ditou uma carta reconhecendo a derrota. "As urnas falaram. E eu me calo", era o início do texto. Foi uma tristeza ele não ter ganhado — lembra o jornalista José Trajano, assessor de imprensa da campanha de Darcy em 1986.

As urnas falam, eu me calo

Darcy Ribeiro

Quatro anos depois, porém, o desencanto da população — no nível estadual, com a gestão de Moreira Franco, e no federal, com o fracasso dos planos de combate à inflação — criou um cenário favorável ao retorno de Brizola ao governo estadual e à ascensão de Darcy ao Senado.

Darcy, ao lado de Leonel Brizola e Oscar Niemeyer, apresenta o projeto da Universidade Estadual do Norte Fluminense (foto: Acevo Fundar)

No início de 1990, chegou a falar-se em uma coalizão do PDT com o PT, em que este indicaria o nome para o Senado. Mas a convenção do PDT, em junho, confirmou uma chapa inteiramente brizolista, com Darcy como titular e dois nomes históricos do partido, Doutel de Andrade e Abdias do Nascimento, como suplentes. Cogitou-se até indicar Oscar Niemeyer, do Partido Comunista Brasileiro (PCB), para a suplência, mas a ideia foi descartada — o que privou o país de ver um dos criadores de Brasília ocupando uma cadeira de senador.

— O Darcy foi uma escolha pessoal do Brizola — recorda Carlos Lupi, então candidato (eleito) a deputado federal e hoje presidente do PDT. — Nesse acordo, ele colocou também o nome do Abdias, para ser o primeiro negro, babalorixá e chefe de terreiro no Senado. E assim foi feito. Quando o Darcy ganhou, o Brizola queria que o Abdias assumisse logo. O Darcy resistiu muito em um primeiro momento e depois assumiu [a secretaria].

Os adversários — Técio Lins e Silva, do PSDB; Milton Temer, do PT (sem parentesco com o então deputado e depois presidente Michel Temer); e Chico Amaral, do PMDB — nunca chegaram a ameaçar Darcy nas pesquisas. Os dois debates realizados pela Rádio Jornal do Brasil foram marcados pela cordialidade — os quatro tinham em comum a militância contra a ditadura.

— Era impossível o Darcy ter um adversário — avalia o jornalista Marceu Vieira, que cobriu a campanha de 1990 para o Jornal do Brasil. — A sensação era de que o Brasil inteiro estava invejoso do Rio, por ter um candidato como ele, probo, que pensava na população de uma maneira geral. Para dar uma ideia, lembro que em uma coletiva perguntaram ao Milton Temer como ele ousava ser candidato numa eleição que tinha Darcy Ribeiro concorrendo também.

Darcy venceu com facilidade eleição para o Senado pelo Rio de Janeiro (foto: Acervo Fundar)

Um Brasil feliz

O quartel-general da campanha era o apartamento de Darcy na esquina da Avenida Atlântica com a Rua Souza Lima, em Copacabana. Quando necessário, Darcy dobrava a esquina para confabular com Brizola, morador de um prédio vizinho.

— O convívio com ele era uma coisa muito prazerosa — conta José Trajano. — Aquele apartamento dele era um barato. Ele dizia que era "o maior sala-e-quarto do mundo". Uma sala imensa, com janela para o mar. Ele falava "fica aí, fica aí", servia uma paçoca salgada, que a mãe mandava de Montes Claros, e uma cachacinha e aí saía a conversa.

Carlos Lupi recorda uma anedota da campanha, em um evento na Rocinha com a presença de Darcy, do suplente Doutel de Andrade e da esposa deste, a deputada federal Lígia Doutel de Andrade.

— Dona Lígia estava ali no morro, sempre elegante, com laquê no cabelo, aqueles sapatos franceses, e o Doutel disse para o Darcy: "Como ela pode querer que o povo goste dela, sem um fio de cabelo desalinhado?” E o Darcy respondeu: "Ô, Doutel, para de ser burro, o povo gosta de gente arrumada!”

Só um acontecimento interrompeu a campanha de Darcy: a morte da mãe, dona Fininha, em agosto, que o fez ir a Minas para o sepultamento. Pouco mais de um mês depois, abertas as urnas, Darcy era eleito senador, com quase 2,8 milhões de votos, ou 56,6%, contra 24,4% de Técio.

Marceu Vieira, que cobriu a campanha de 1990 para o Jornal do Brasil (foto: Arquivo Pessoal)

Seguiram-se meses de negociações, em que Darcy resistiu à pressão de Brizola para que assumisse a super-secretaria criada para ele. Com a morte de Doutel de Andrade, em 7 de janeiro de 1991, vítima de problemas pulmonares, Darcy assumiu a cadeira de senador semanas depois tendo Abdias do Nascimento como único suplente.

— O Darcy no Senado era a representação de um Brasil feliz, utópico — opina Marceu Vieira. — Imagina o Darcy hoje, discursando. Acho que ele ia chacoalhar. Daria pelo menos um pouco mais de graça e de esperança para a gente.


Reportagem: André Fontenelle
Produção: Débora Brito e Rodrigo Baptista
Edição: Mauricio Muller, Valter Gonçalves Jr. e Mayra Cunha
Pesquisa de fotos: Ana Volpe
Edição de fotos: Bernardo Ururahy
Arte de capa: Bruno Bazílio
Fotos da capa: Acervo Fundar