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Lei que criminaliza a perseguição deve prevenir formas mais graves de violência contra a mulher

yolanda-pires-sob-supervisao e Nelson Oliveira
Publicado em 21/5/2021

Há exatamente um ano, em decisão unânime, a 3ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT) confirmou a condenação de um homem por perturbar a tranquilidade da ex-namorada utilizando-se de “perseguição cibernética” nas redes sociais, o que causou a ela abalo emocional. Ele foi condenado a 26 dias de prisão, em regime semiaberto, e ao pagamento de R$ 300, por danos morais.

De acordo com informe institucional do TJDF, os dois haviam namorado durante três anos, aproximadamente. Mas, ao término do conturbado relacionamento, que incluiu ações nas varas de violência doméstica e familiar, a Justiça concedeu a ela medidas protetivas de urgência que impediam o denunciado de se aproximar e manter contato com a vítima, seus familiares e testemunhas a menos de 200 metros. O homem descumpriu a medida e foi preso, mas recorreu da decisão. “Assim que saiu da prisão, segundo a autora, ele passou a importuná-la com mensagens de conotação sexual, conteúdo abusivo e fotos, com o intuito de intimidá-la”, diz o informe do tribunal. Os contatos foram feitos por meio de perfil falso no Facebook. A corte decidiu manter a sentença de primeira instância face à necessidade de “responsabilização do réu, não só pela reprovabilidade de sua conduta, como também para coibir e prevenir seu ímpeto de praticar outros ilícitos penais contra a vítima”.

O comportamento desse réu, cujo nome é omitido no informe, recebeu punição com base em uma norma da época da Segunda Guerra Mundial, a Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei 3.688/1941), na falta de legislação mais rígida. Só em em 31 março deste ano, o Brasil passou a contar com Lei 14.132, de 2021, que modificou o Código Penal brasileiro (Decreto-Lei 2.848/1940) e passou a prever o crime de perseguição, com base em ações reiteradas e capazes de restringir a liberdade e a privacidade de uma pessoa, além de perturbar-lhe o bem-estar físico ou emocional.

A nova lei é oriunda do PL 1.369/2019, de autoria da senadora Leila Barros (PSB-DF), proposta que sofreu alterações tanto na Câmara dos Deputados quanto no próprio Senado. A matéria acabou aprovada em 9 de março, na forma de substitutivo, com relatoria do senador Rodrigo Cunha (PSDB-AL).

Pronunciamento da senadora Leila Barros na sessão em que a proposta foi aprovada

A 14.132 nasceu 12 anos depois do surgimento das primeiras propostas sobre o tema, ainda em 2009, embora a perseguição já viesse sendo criminalizada nos Estados Unidos e na Europa desde aos anos 1980, e seus conceitos difundidos pela mídia por meio do termo stalking. Essa palavra da língua inglesa quer dizer justamente “perseguição”, no sentido de alguém que segue ou observa outra pessoa persistentemente, movido por obsessão ou perturbação mental. Stalking remonta ao inglês arcaico, quando dizia respeito a perseguição sorrateira, mas vem agregando uma série de outras condutas à medida que aumenta a conscientização sobre práticas que se mostrem abusivas em relação à tranquilidade e à segurança individual.

No novo texto legal o termo perseguição recebeu o reforço do adjetivo “reiterada” e prevê um leque amplo, mas genérico, de possibilidades de invasão ou perturbação.

Quando ainda timidamente encaixados na Lei de Contravenções Penais, esses atos persecutórios, termo utilizado na legislação italiana, eram puníveis com prisão de 15 dias a dois meses e multa irrisória. A partir da nova norma, a pena poderá ser de seis meses a dois anos, com multa correspondente. O tempo de prisão pode ainda ser acrescido da metade quando a vítima for criança, idoso ou mulher, "por razões da condição de sexo feminino", seguindo neste último caso as motivações que qualificam um homicídio como feminicídio. Ao incorporar o que dispõe a Lei 13.104/2015, o Código Penal estabeleceu que “há razões de condição de sexo feminino" quando nas circunstâncias do crime há "violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher".

Como é descrito, pela Lei 14.132, o crime de perseguição:

Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade. Art. 147-A do Código Penal

O que dizia a Lei de Contravenções Penais:

Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável.
Pena – prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis. Art. 65 da Lei de Contravenções Penais

Durante Sessão Deliberativa, realizada no dia 9 de março no Plenário do Senado, o relator do PL, senador Rodrigo Cunha (PSDB-AL), argumentou que a instituição no Brasil de normas contra a perseguição em sua forma contínua segue uma tendência internacional. Conforme o parlamentar, a repressão a essa prática, considerada como violência de gênero, é essencial “diante da grande probabilidade de as condutas perpetradas pelo agente perseguidor tornarem-se, posteriormente, paulatina ou subitamente mais graves, evoluindo para agressões severas e, até mesmo, para o feminicídio”. Cunha disse ainda que, por isso, “é preciso reprimir a violência contra a mulher em sua escala inaugural, quando iniciada a perseguição.” Tanto na Câmara quanto no Senado a aprovação da proposta foi unânime.

Durante a votação, Leila Barros assinalou que a tipificação do crime poderia significar “a vida ou a morte de muitas mulheres que têm a infelicidade, muitas vezes, de se relacionar com companheiros covardes e abusivos”. E acrescentou: “a gente sabe que isso é real.”

Na proposta original da senadora, havia, inclusive, referência explícita a uma realidade cada vez mais em voga: a da perseguição por meios digitais, justamente o caso julgado em junho passado pelo tribunal do DF. A intensificação do uso da internet abriu para indivíduos obsessivos um novo arsenal de recursos (e-mails, aplicativos de mensagens instantâneas, postagens em redes sociais), por vezes até bem mais à mão do que os físicos (cartas, bilhetes, tocaias e emboscadas).

Pronunciamento de Rodrigo Cunha durante a sessão em que a proposta foi aprovada

De acordo com dados do relatório "Digital 2021", da empresa inglesa We Are Social, em janeiro deste ano havia 4,2 bilhões de usuários ativos de mídia social em todo o mundo, um acréscimo de 400 milhões em comparação aos 3,8 bilhões registrados pelo mesmo relatório em 2020 — aumento que pode ser um reflexo das medidas de distanciamento social exigidas para o combate à pandemia de covid-19.

Nesse período, ampliaram-se as trocas de mensagens por meio de redes sociais, como também a exposição de opiniões e a inserção de dados pessoais em sites e aplicativos de relacionamento digital.

Os usuários brasileiros, de acordo com a publicação, estão conectados em média 3 horas e 42 minutos por dia, atrás apenas dos filipinos e da Colômbia. Contudo, as interações nas redes, bem como fora delas, nem sempre são positivas. Podem até evoluir para ações bastante invasivas.

Inicialmente na forma presencial e agora também na digital, a perseguição passou a receber a atenção de pesquisadores em sincronia com a disposição de legisladores e autoridades judiciais de enquadrar a prática como um tipo penal, dado o potencial danoso que passou a ser descrito por um número maior de vítimas. A associação dos atos persecutórios com a sensação de medo está, aliás, presente em vários textos legais, o que é inclusive objeto de controvérsia, já que o constrangimento independe de temor.

O primeiro grande levantamento estatístico sobre esse universo veio a público em 1995: "Perseguição nos EUA — Descobertas da Pesquisa Nacional sobre a Violência contra a Mulher", a cargo de Patricia Tjaden e Nancy Thoennes, trabalho realizado no âmbito de uma parceria entre o Instituto Nacional de Justiça, órgão do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, e o Centro para o Controle e a Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês). Um dos principais achados no esforço de entrevistar 8 mil mulheres e 8 mil homens pelo telefone é que a perseguição era mais comum do que parecia: 8% das mulheres e 2% dos homens relataram terem sido afetados por práticas persecutórias alguma vez na vida — cerca de 1 milhão de mulheres e 371 mil homens. Em termos relativos, 78% das vítimas eram mulheres e 87% dos perseguidores, homens. Além disso, a faixa etária principalmente afetada era a dos adultos entre 18 e 29 anos (52% do total). Em 2006, uma outra pesquisa encomendada pelo Departamento de Justiça apontou um total de 3,4 milhões de casos de perseguição num universo de 246,5 milhões de adultos entre 18 e 65 anos, ou 13,9 casos por mil pessoas pesquisadas. Essa pesquisa abordou um problema correlato, o do assédio em ambientes de trabalho, cujas proporção mostrou-se igualmente preocupante.

Atualmente há levantamentos apontando que esse comportamento afeta significativamente as mulheres de 18 a 39 anos, por motivos como ciúme e obsessão. De acordo com a Pesquisa Nacional de Parceiros Íntimos e de Violência Sexual (The National Intimate Partner and Sexual Violence Survey, 2017), realizada pelo mesmo Centro Nacional de Controle e Prevenção de Doenças entre 2010 e 2012, uma em cada seis mulheres relataram ter vivido experiências nesse campo, sendo mais comum entre indígenas, nativas do Alasca e aquelas que se autodeclararam mestiças ou multirraciais. Dados da publicação apontam ainda que 68,1% das vítimas receberam ameaças de danos físicos por parte dos perseguidores.

A inquietação frente a esse problema de segurança e saúde pública já havia levado países como Austrália, Reino Unido e Canadá a criarem leis para criminalizar atos como o envio de ameaças e de mensagens indecentes, bem como assédio e perseguição. Em 1984, o Parlamento Britânico aprovou a chamada Lei de Telecomunicações (Telecommunications Act), dispositivo legal que, já na iminência de uma revolução tecnológica, tornou ilegal ligações telefônicas ofensivas e ameaçadoras. Outra legislação, criada em 1988, que recebeu o nome de Lei das Comunicações Maliciosas (Malicious Communications Act), previu pena de até 12 meses de prisão por correspondências consideradas invasivas. Em 1997, a Lei de Proteção contra o Assédio tornou crime, punível com até seis meses de prisão, o assédio de pessoas ocorrido em duas ou mais ocasiões. Na Austrália, as punições podem variar de multa ou serviços comunitários à prisão máxima por dez anos para casos mais graves.

As primeiras propostas a surgirem no Legislativo brasileiro, em 2009, foram apresentadas na Câmara dos Deputados pela atual senadora Rose de Freitas (MDB-ES) e pelo então deputado Capitão Assumção. Uma das preocupações da parlamentar do MDB era (e continua sendo) a escalada da violência que pode se seguir a uma importunação repetida.

Sancionada a legislação brasileira, os estudiosos no tema aguardam como será sua aplicação. Algo que à primeira vista pode parecer o fim de um ciclo é, segundo especialistas em direito penal consultadas pela Agência Senado, o início de uma fase de experimentação. Para as professoras Mônica Aguiar e Alice Bianchini, a lei aprovada ainda apresenta lacunas, como a delimitação da frequência dos atos reiterados, de modo que possam ser enquadrados como criminosos. Em outras palavras, quantas vezes um determinado comportamento, atitude ou ação deve se repetir para configurarem crime de perseguição. Outra indefinição é se o agravamento da pena alcançará a perseguição a mulheres trans e travestis importunadas por motivações de gênero.

De acordo com a professora Mônica Aguiar, que integra o Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia, essas lacunas serão preenchidas à medida que a lei for sendo aplicada pelos tribunais e das nuances da interpretação da norma a cada caso:

— É como se nós tivéssemos colocando o pezinho num lugar que nós ainda não conhecemos. E geralmente o que acontece é que o direito é feito pela cultura, é um bem cultural. Então, a gente vai ter que esperar pra ver quem vai cumprir a lei, qual vai ser a sensibilidade que vai ter na hora da apuração.

De acordo com ela, que também tem graduação em psicologia pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública e atua como terapeuta de casais, o imaginário social supõe a figura do perseguidor como um psicopata, espelhado em personagens de séries como Você (You, 2018). Algo que nem sempre acontece na realidade. Ela explica que a dinâmica psíquica de alguns é neurótica, e muitos nem sabem que estão cometendo algo capaz de fazer a outra pessoa se sentir invadida ou até ameaçada.

Cena da série televisiva 'Você', que retrata um perseguidor com psicopatia (foto: Divulgação)

Fora da ficção também há casos famosos e anônimos que exemplificam a prática da perseguição. Um deles virou notícia nos veículos de comunicação brasileiros em janeiro de 2020, quando o processo de uma menina perseguida e ameaçada por mais de cinco anos por um jovem de 22 foi transferido da Justiça Comum para o Juizado de Violências Domésticas. Trata-se de uma das primeiras ocasiões no Brasil em que uma perseguição continuada foi submetida à Lei Maria da Penha e levada para a esfera das violências de gênero.

A perturbação sofrida pela jovem teve início em 2013, quando, aos 13 anos, esteve hospedada com a família num edifício de veraneio no litoral de São Paulo. Nessa ocasião, conheceu um rapaz de 17 anos, que se interessou por ela. Como a atração não foi correspondida, ele passou a persegui-la e a pressioná-la a satisfazer sua obsessão. Um dos artifícios utilizados foi a criação de perfis falsos nas redes sociais, por meio dos quais enviava mensagens à vítima.

Outro caso que teve bastante espaço na mídia, em 2016, envolveu a apresentadora Ana Hickmann e o fã Rodrigo Augusto de Pádua. No dia 21 de maio daquele ano, ele invadiu o quarto de um hotel em Belo Horizonte, no qual a apresentadora estava hospedada em companhia do cunhado Gustavo Correa e da esposa dele, Giovana Oliveira, assessora de moda da estrela. O episódio resultou na morte de Rodrigo de Pádua pelo cunhado de Ana Hickmann durante luta corporal que se seguiu a dois tiros disparados pelo fã contra Giovana. A obsessão do fã pela apresentadora, de conhecimento da família dele, e traduzida em postagens nas redes sociais, foi fartamente noticiada pela imprensa à época.

Alice Bianchini, doutora em direito penal e conselheira da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP), explica que o primeiro passo para denunciar violações como essas é juntar o máximo de provas possível. Se a ação do perseguidor se dá em meios digitais, é importante que a vítima reúna cópias das ameaças e conversas invasivas para serem juntados numa “ata notarial”, documento que facilita provar o cometimento do crime. Segundo ela, é muito comum que as vítimas, em situações de invasão e perseguição, apaguem as mensagens ou até saiam das redes sociais. Caso os inconvenientes aconteçam por outros meios, como presencialmente, o importante é conhecer e mobilizar as testemunhas dos episódios.

Perfil em rede social evidencia obsessão de perseguidor pela apresentador Ana Hickmann (imagem: Reprodução)

Na opinião do psicanalista e professor Christian Dunker, titular do Departamento de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), é preciso agir o quanto antes para conter o avanço de um perseguidor. Quanto mais tempo a vítima demorar, por medo de dizer que está se sentindo desconfortável, ou por pena do perseguidor, mais difícil será lidar com aquela obsessão e mais necessário o uso de medidas duras.

Dunker conta que as perseguições reiteradas podem ter diversos motivos, como um amor não correspondido, o fim de um relacionamento ou a obsessão de um fã por um artista ou pessoa pública. De acordo com o psicanalista, essas ações incessantes podem ser definidas como “um comportamento de presença na vida de outra pessoa”. Podem ser exercitadas "de forma atual", ou seja, quando o perseguidor aparece nas redondezas, visita o trabalho, a sala onde a pessoa trabalha ou estuda. Com a chegada do ambiente digital, podem se dar também na forma de curtidas, comentários e perguntas. Ele classifica cinco tipos de perseguição, todos com potencial de infligir maior ou menor dano à saúde mental e física dos envolvidos:

— Há um stalkeamento [perseguição] muito clássico, ligado a um tipo de delírio conhecido como erotomania, descrito por [Gaëtan Gatian] Clérambault e baseado na convicção que um sujeito adquire de que o outro está apaixonado por si [a vítima]. O segundo seria o delírio de perseguição, que, infelizmente, muitas vezes evolui mal, porque a pessoa se sente invadida pelo outro. É quase que o contrário. É alguém que se sente stalkeado quando, na verdade, nem sempre está sendo. [Temos] aquele que acontece entre um fã e seu ídolo. Tem o quarto tipo de stalkeador, que é o hater [disseminador de ódio]. É aquele que é quase um fã invertido. E um quinto tipo de stalkeamento muito perigoso, muito ruim, que é aquele da pessoa que não consegue admitir uma separação, um término.

O psicanalista explica ainda que, qualquer que seja a motivação do perseguidor, pode haver casos de maior periculosidade e outros mais brandos. O que depende, segundo ele, da intensidade em que se encontra a obsessão. Ou seja, quando o perseguidor só consegue falar da vítima, como se essa dinâmica fosse a coisa mais importante na vida dele. Outro sinal problemático é quando o silêncio da pessoa importunada torna-se uma mensagem para o perseguidor:

— A pessoa fala como se o stalkeado estivesse agindo ativamente no processo, quando muitas vezes o que ele tá fazendo é silenciar, evitar responder, adiar respostas.

Segundo Dunker, essas práticas podem causar danos e traumas extremamente graves, como a destruição ou redução da capacidade da pessoa perseguida de confiar e de se relacionar com outras pessoas e com o próprio mundo ao redor dela. Existem ocorrências em que toda a família da vítima é afetada, tanto pelo próprio medo do perseguidor à espreita da vítima quanto pelos estigmas sociais que situações como essas podem causar:

— Às vezes a família não entende por que aquela pessoa está sendo stalkeada. Começa a supor que ‘ah, então você teve envolvimento, você deu bola pra essa pessoa, você está alimentando isso’. Muitos não conseguem entender que esse é um processo patológico e acham que, de alguma forma, o stalkeado está correspondendo.

Tudo isso pode contribuir para que a pessoa perseguida alimente um sentimento de culpa pelo processo.

A perseguição no Brasil

De acordo com dados da Stalking Resource Center, coletados pela organização norte-americana Centro Nacional para Vítimas do Crime, 76% das mulheres que morrem por conta do feminicídio nos Estados Unidos são, antes, perseguidas pelo assassino. No entanto, não existem muitos dados estatísticos sobre esses atos no Brasil.

Em 2016, Mariana Tordin Boen e Fernanda Luzia Lopes entrevistaram duas centenas de estudantes de uma universidade do estado de São Paulo e confirmaram a ocorrência de práticas relatadas em outras pesquisas, incluindo o tipo de ato persecutório (do bilhete à invasão de residência), e de consequências para as vítimas, uma delas os danos emocionais, maiores para as mulheres, e a necessidade de mudança de hábitos para fugir aos perseguidores.

Para Alice Bianchini, da OAB-SP,  a nova lei é um estímulo para novas produções intelectuais sobre o tema e facilitará a coleta de dados estatísticos ao tipificar o crime de perseguição.

— Até então, ele [o crime] ficava numa contravenção penal de perturbação de sossego. Só que essa contravenção penal de perturbação de sossego abrangia uma série de coisas que não tinham nada a ver com esse crime de perseguição. E agora, podendo então separar, a gente consegue fazer levantamentos estatísticos para saber quantas pessoas foram denunciadas por esse crime.

No gráfico abaixo, o pico de popularidade do termo stalking nas pesquisas do Google deu-se entre 28 de março e 3 de abril, mesmo período em que a lei foi sancionada e publicada no Diário Oficial da União.

Segundo Bianchini, mesmo com a popularização desses termos e a possibilidade, agora, de se produzirem dados estatísticos sobre práticas persecutórias no Brasil, a subnotificação deverá continuar a ser um problema. A professora argumenta que, como na maioria dos crimes relacionados a violências de gênero, há uma diferença muito grande entre o quantitativo de casos de perseguição e o que é reportado às esferas públicas de poder.

A hipótese pode ser examinada indiretamente observando-se dados publicados na última edição (outubro de 2020) do "Anuário Brasileiro de Segurança Pública", que aponta um aumento de 2% nos números de feminicídios e de homicídios de mulheres, entre o primeiro semestre de 2019 e o mesmo período de 2020, enquanto os percentuais de lesões corporais e ameaças contra mulheres diminuíram 9,6% e 16,7%, respectivamente.

Segundo a publicação, de responsabilidade do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, “é possível entender que alguns destes tipos de crimes parecem ter observado um aumento na subnotificação, tendo em vista a maior dificuldade de registros por parte das mulheres em situação de violência doméstica durante a vigência das medidas de distanciamento social”.

O documento diz ainda que essa diminuição do registro de algumas ocorrências no período pode ter também como causa a “instabilidade sofrida no período pelos serviços de proteção, com diminuição do número de servidores e horários de atendimento e aumento das demandas.”

A subnotificação tem sido apontada mesmo em relatórios de países com padrão estatístico avançado, como os Estados Unidos.

O que pode ser feito

Considerando a subnotificação de violências de gênero, a Agência Senado questionou especialistas sobre quais seriam os meios para lidar com esse problema e enfrentar as lacunas da Lei 14.132, de 2021.

Segundo a professora de direito penal da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Mônica Aguiar, o maior problema da lei que passa a criminalizar a perseguição continuada está no fato de ela não ser uma legislação de crime de ação pública, e sim de ação privada. Em outras palavras, o início do processo judicial depende de representação da vítima, algo que pode trazer dificuldades à denúncia dos perseguidores, especialmente para mulheres de classes mais pobres e com menor acesso à informação.

— Primeiro, as vítimas podem não ter conhecimento de que existe um crime dessa natureza. Veja que é um crime muito novo, então nós dependemos de uma divulgação ampla e, para isso, a imprensa e todos os meios de comunicação são muito importantes.

Para Alice Bianchini, o mais importante é investir em políticas públicas que foquem na educação e na conscientização sobre esse tipo de crime. Como a maioria das vítimas são mulheres em contextos de término de relacionamentos, a conselheira da OAB defende ações de conscientização sobre o direito destas de decidirem quando se separar. Para ela, esse processo de conscientização deve envolver principalmente os homens. Estes devem ser esclarecidos a não perseguirem as mulheres após a separação e que, inclusive, uma lei classifica essa conduta como crime.

— Então essas [medidas], que a gente chama, exatamente, de uma comunicação de fato, a partir da existência de que agora isso é crime, me parece que podem, de alguma forma, sensibilizar alguns setores da sociedade em relação a esse crime. Então temos que falar muito sobre ele — explica Alice Bianchini.

Alice Bianchinni, Mônica Aguiar e Christian Dunker (fotos: Reprodução OAB-SC, João Fábio Kairuz/ACOM/TRF3 e Tatiana Ferro)

Nos Estados Unidos, uma série de políticas nesse campo foram esmiuçadas pelo Departamento de Justiça ao Congresso norte-americano em relatório de 2018 que fala de programas desenvolvidos, por exemplo, em universidades. Após a aplicação de verbas em treinamento de policiais e funcionários ligados ao sistemas judiciário, de assistência social e à saúde, assim como em projetos educacionais de divulgação das restrições legais a práticas de perseguição, as denúncias cresceram.  Na Fairmont State University, em West Virginia, o aumento foi de 160% entre 2013 e 2015. Os repasses financeiros (incluindo aqueles voltados a programas contra o crime de perseguição) do Escritório para o Combate da Violência contra a Mulher cresceram de 225 milhões de dólares em 2015 para 269 milhões em 2018 nos EUA.

Sobre as outras formas de lidar com essas práticas persistentes de importunação, o psicanalista Christian Dunker diz que uma das opções é falar com a família ou outras pessoas próximas ao perseguidor. A ideia é mobilizar uma comunidade de pessoas que têm alguma autoridade sobre a vida desse indivíduo. Também é importante que a vítima tenha coragem para dizer o que sente o quanto antes, de modo que uma aproximação, inicialmente sentida como benigna ou inofensiva, não se torne incômoda ou ameaçadora:

— Me lembro de um caso famoso, que a gente estuda, de um psicanalista que tinha uma stalkeadora benigna, mas, não obstante, chata. Ele ia fazer uma conferência e estava lá ela, na primeira fila, com um maço de flores. Ele publicava um livro, ela estava lá presente. Ele ia ao restaurante e ela estava lá esperando ele sair. Ela queria marcar consultas e mais consultas. Isso durante 15 anos. […] Até um dia que o tal psicanalista chega para atender no seu consultório e tem uma ameaça de bomba, tem uma equipe do esquadrão antibomba no prédio. O prédio está sendo evacuado, as pessoas estão na beirada do prédio, quando o sujeito vê a tal figura, vindo. E daí ele tem a presença de espírito de ir na direção dela e dizer ‘agora chega, eles vieram aqui para resolver esse assunto, você me incomodou demais, essa situação passou dos limites, olha aí o que que vai acontecer se você continuar me importunando desse jeito'. E ela nunca mais se aproximou. Dói na carne, porque a gente diz ‘ah, mas no fundo ela só amava ele’. Mas tem que ser incisivo, assertivo, cortante.


Reportagem: Yolanda Pires (sob supervisão) e Nelson Oliveira
Pauta, coordenação e edição: Nelson Oliveira
Coordenação e edição de multimídia: Bernardo Ururahy
Infografia: Diego Jimenez
Pesquisa e edição de fotosPillar Pedreira
Vídeos: TV Senado
Foto de capa: StockPhotos