Ir para conteúdo principal

Papéis históricos do Senado mostram luta de Pelé contra o racismo: 'Negro vota em negro'

Ricardo Westin
Publicado em 3/2/2023
Edição 97
Esporte

Pelé, que morreu em dezembro, aos 82 anos, foi inúmeras vezes acusado de manter distância do movimento antirracismo. Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado revelam que, embora de fato não tenha sido militante, o maior jogador de futebol de todos os tempos agiu, sim, à sua maneira, a favor da população negra.

Em 1995, quando comandava o Ministério Extraordinário dos Esportes, Pelé declarou que os negros deveriam votar em candidatos negros “para defender a nossa raça” no Congresso Nacional. Só assim, segundo ele, a vida dessa população poderia enfim melhorar.

O ministro deu o conselho a militantes do movimento negro, no seu gabinete em Brasília, às vésperas do 300º aniversário de morte de Zumbi dos Palmares.

O senador Eduardo Suplicy (PT-SP) subiu à tribuna do Senado e relatou que a fala do rei do futebol teve grande repercussão e dividiu a sociedade:

— Alguns estranharam e criticaram violentamente as palavras de Pelé. Outros, sobretudo aqueles da comunidade negra, saudaram as palavras de Pelé. Muitos até registraram que de há muito esperam de Pelé que ele assuma inteiramente a sua negritude.

Para demonstrar que Pelé tinha razão, Suplicy lembrou que, dos 513 deputados federais, apenas 11 eram negros, dos quais somente 6 assumiam o sangue africano. O senador prosseguiu:

— Ainda em minha vida, como branco, gostaria de poder votar em um negro para a Presidência da República e vê-lo resgatar a cidadania dos negros, que sofrem extraordinariamente no Brasil, dos negros, cujos nomes não lembramos tão bem porque enorme número está no sistema penitenciário, em virtude de não terem caminhos adequados desde a infância, sendo levados ao crime, à violência, à marginalidade. Que as palavras de Pelé sirvam de alerta para todos nós.

 

Pelé, o atleta do século, tinha especial preocupação com as crianças pobres (imagem: Pelé Foundation)

Em 1997, ainda como ministro dos Esportes, Pelé voltou a mostrar, mesmo que de forma indireta, a sua preocupação com a desigualdade racial. Ele gravou para o Ministério da Educação o videoclipe de uma campanha de alfabetização no qual cantava que “toda criança tem que ler e escrever”. Os índices de analfabetismo sempre foram mais altos na população negra.

A música ABC foi composta pelo próprio rei do futebol. O vídeo, em que ele aparece sorridente entre crianças brancas e negras, foi transmitido por vários meses no intervalo comercial das emissoras de TV.

A convite do presidente Fernando Henrique Cardoso, Pelé se tornou ministro dos Esportes no início de 1995, quase duas décadas depois de pendurar as chuteiras. Foi nesse momento que o Brasil teve pela primeira vez um ministério específico para a área esportiva.

Numa entrevista pouco antes de assumir o cargo, Pelé disse aos jornalistas que “o salário de ministro, ó, é pequenininho”, entre risos, e que só aceitara a missão porque Fernando Henrique lhe prometera total liberdade para trabalhar.

Quando tomou posse em Brasília, Pelé anunciou que uma de suas prioridades seria profissionalizar o futebol. Apesar de o Brasil vir do tetracampeonato mundial, conquistado em 1994 nos Estados Unidos, os jogadores que atuavam nas equipes pelo país afora — muitos deles negros e pobres — gozavam de parcos direitos trabalhistas.

Propaganda oficial de 1997 em que Pelé defende a alfabetização das crianças (vídeo: Fundação FHC)

Em 1997, o ministro enviou ao Congresso Nacional o projeto da chamada Lei Pelé, seu plano mais ambicioso no governo, que, ao lado de mudanças como a transformação dos clubes em empresas e a reestruturação dos tribunais esportivos, tinha como principal medida a abolição do passe nos contratos entre clubes e jogadores.

O time era o detentor do passe do atleta. Como tal, era, na prática, o dono do próprio jogador. Após o fim do contrato, o atleta muitas vezes permanecia preso à equipe e sem salário. Ele só seria liberado se pagasse uma multa rescisória ou outro time comprasse o passe. Alguns jogadores só conseguiram a liberdade após recorrer à Justiça.

Na justificativa do projeto, Pelé escreveu que o esporte não conseguiria se desenvolver plenamente no Brasil enquanto dependesse apenas de talentos individuais, sem construir um “quadro institucional adequado”. Ele acrescentou:

“Sob o pálio das normas vigentes, subsistem a desorganização, o amadorismo, a falta de transparência, o desprezo à condição do atleta. A extinção do passe é uma necessidade peremptória e inadiável. O referido vínculo desportivo escraviza o atleta e desmoraliza o esporte, não possuindo amparo jurídico, ético ou moral. A Constituição assegura a todos o livre exercício de qualquer trabalho. Dessa forma, a existência do passe configura uma afronta à dignidade e à liberdade”.

Coube ao senador José Roberto Arruda (PSDB-DF), líder do governo no Congresso, anunciar a chegada do projeto ao Legislativo. Ele não resistiu à metáfora futebolística:

— Pelé pegou uma bola que estava na defesa, saiu driblando o time adversário, atravessou o meio de campo, foi à linha de fundo e está cruzando a bola para a área. E a área é o Congresso Nacional, é a nossa Casa, que deve discutir o projeto e votá-lo.

Arruda continuou:

— Os brasileiros, principalmente os mais pobres e muitas vezes os mais mal alimentados, têm uma capacidade natural que lhes foi dada por Deus de jogar bola. Isso é um dom da nossa raça, formada pela miscigenação dos povos no processo de colonização. No dia em que conseguimos melhorar a organização do esporte através de uma legislação firme, segura, sensata e equilibrada, ninguém vai segurar o Brasil.

O ministro Pelé com os presidentes da República, Fernando Henrique Cardoso, e do Senado, Antônio Carlos Magalhães (imagens: Fundação FHC e Jane de Araújo/Senado Federal)

Curiosamente, de acordo com os documentos do Arquivo do Senado, integrantes da base governista no Congresso, composta de partidos como PSDB, PFL e PMDB, colocaram-se contra o projeto da Lei Pelé. Para o senador José Fogaça (PMDB-RS), o passe deveria ganhar alguma sobrevida, e não ser extinto abruptamente. Ele discursou:

— O passe no Brasil é a maior e a mais abrangente fonte de sustentação financeira dos clubes de futebol. Acabar com essa fonte significa suprimir do espaço social brasileiro associações esportivas com mais de cem anos de existência, de grande conteúdo histórico e popular. Clube de futebol é um valor que precisa ser respeitado e considerado neste país. 

Por sua vez, praticamente toda a oposição ao governo Fernando Henrique, liderada pelo PT, manifestou apoio ao projeto. O senador José Eduardo Dutra (PT-SE) afirmou:

— Um aspecto que considero bem-vindo é o fim da famigerada lei do passe, autêntica escravidão ainda existente no Brasil. O jogador de futebol profissional brasileiro, na verdade, ainda é submetido a leis que remontam à época da escravidão.

A senadora Benedita da Silva (PT-RJ) bateu na mesma tecla:

— Concordamos que é fundamental resolver a questão do passe. Poderá até parecer estranho que a oposição esteja defendendo um projeto do governo. Eu não concordo. O projeto deve extrapolar siglas partidárias, porque ele trata do futebol, que é uma arte, uma cultura do povo brasileiro.

Reportagens do Jornal do Senado noticiam empenho do ministro na aprovação da Lei Pelé em 1998 (imagem: Jornal do Senado)

As mudanças no esporte propostas por Pelé também encontraram resistência fora da arena legislativa. Os principais adversários foram os grandes times, reunidos na organização Clube dos 13, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e até mesmo a Federação Internacional de Futebol (Fifa).

O presidente da Fifa, João Havelange, ameaçou excluir o Brasil da Copa do Mundo de 1998, na França, caso a Lei Pelé fosse aprovada.

— Essa ameaça cheira à chantagem mais barata possível. Trata-se de jogar a opinião pública brasileira contra o projeto — reagiu o senador José Eduardo Dutra. — Espero sinceramente que o presidente da República não se submeta à chantagem de Havelange e apoie o projeto, pois este moderniza o futebol brasileiro e evita uma série de escândalos, como os que temos visto ao longo da história da CBF. De qualquer forma, a questão não é tão simples assim, até porque Michel Platini, coordenador da equipe organizadora da Copa, já disse que, sem o Brasil, talvez até nem haja o campeonato internacional de futebol.

Em 1998, a Lei Pelé foi aprovada e, com algumas modificações, está em vigor até hoje. Tal vitória se deveu, em parte, ao envolvimento político do ministro, que esteve diversas vezes no Senado e na Câmara falando em audiências públicas e negociando.

Apesar de ser sido uma vitória de Pelé, a norma não saiu do Congresso exatamente do jeito que ele desejava. Primeiro, porque a extinção do passe teria que ocorrer dentro de três anos, e não imediatamente, como estava originalmente previsto. Depois, porque se incluiu na Câmara dos Deputados um dispositivo liberando os bingos, algo que Pelé abominava.

O ministro, porém, não reclamou. Pelé conhecia a força do lobby esportivo e sabia que, antes dele, o ex-futebolista Zico e o ex-jogador de vôlei Bernard, secretários nacionais de Esportes no governo Fernando Collor, haviam se frustrado na tentativa de moralizar o esporte brasileiro.

Aprovada a lei, Pelé deu por concluída a sua missão em Brasília e deixou o Ministério Extraordinário dos Esportes. Sem a grande estrela, esse órgão do governo foi absorvido pelo Ministério da Educação e rebaixado a secretaria.

Assinatura do ministro Pelé na justificativa do projeto de lei apresentado em 1997 que previa o fim do passe nos contratos de futebol (imagem: Arquivo do Senado)

Na época de jogador, Pelé também agiu contra a desigualdade racial. Em 1969, por exemplo, na célebre partida em que marcou o milésimo gol, disputada entre o seu Santos e o Vasco, ele anunciou, diante de microfones do mundo inteiro, que dedicava aquele feito à infância marginalizada do Brasil. Tal qual hoje, naquele momento a pobreza atingia com mais força a população negra.

O senador Vasconcelos Torres (Arena-RJ) discursou:

— Pelé é homem que realizou o que jamais nenhum outro homem realizou: completou mil gols. Ao chorar de emoção abraçado com a bola, teve nesse instante culminante da sua vida um só pensamento. Nesse momento em que todo homem pensa em si, Pelé disse: “Peço que todos auxiliem as crianças pobres deste país, que todos pensem nas crianças pobres e ajudem as crianças pobres”. Pelé é a glória do Brasil.

O senador Arnon de Mello (Arena-AL) também subiu à tribuna: 

— Essas palavras de sensibilidade são ditas na hora do maior triunfo, quando o pretinho magro e de pernas finas de Bauru sobe ao zênite, no instante da vitória, em momento propício aos desequilíbrios. Dias depois, Pelé esclareceu [à imprensa]: “Não sei por que disse aquilo. Eu podia ter falado no aniversário da minha mãe, que era naquele dia. Eu queria oferecer meu milésimo gol à minha filha. E, no entanto... Eu estava muito emocionado. Eu já gostava de crianças e tinha especial deferência pelas crianças pobres, porque fui criança pobre”. É realmente espantoso que, vindo de tão longe, não se embriague Pelé com as alturas da glória.

O senador Ruy Carneiro (MDB-PB) contou aos colegas que já havia estado cara a cara com Pelé e confirmou que ele tinha mesmo uma personalidade extraordinária: 

— Dirigia eu o Banco Hipotecário Lar Brasileiro e fui inaugurar a agência de Santos. Lá tive a oportunidade de me encontrar com o famoso jogador. Conversamos durante as solenidades de inauguração e senti que ele não era um homem comum, mas dotado de grande inteligência e bondade. Quando lhe perguntaram o que queria ser se não fosse o grande jogador, disse que queria ser como seu pai. Tal declaração prova que ele é um homem superior e que a pigmentação da pele não o faz inferior. É igual a todos nós. 

Falas como as de Carneiro (ligando cor da pele a inferioridade) e Arnon de Mello (dizendo “pretinho”) eram comuns e não causavam indignação pública. No Brasil de 1969, estava disseminada a ideia de que o país era uma “democracia racial”. Isso significa que, dada a miscigenação da sociedade, os brasileiros naturalmente não teriam como ser preconceituosos.

Hoje, ao contrário, enxerga-se com clareza que o racismo não só existe no país como também tem sido historicamente um dos alicerces das relações sociais, econômicas e políticas do Brasil, beneficiando a população branca e prendendo a população negra nas posições mais baixas da sociedade. É o que se chama racismo estrutural.

Pelé comemora o tricampeonato mundial no México em 1970 (imagem: Fifa)

O historiador Mateus Gamba Torres, que leciona história do futebol e história da ditadura militar na Universidade de Brasília (UnB), explica que Pelé foi corajoso ao chamar a atenção do mundo para as crianças pobres do Brasil justamente no momento em que o país, governado por generais, vivia o auge da repressão:

— A ditadura fazia a propaganda do “Brasil grande”, levando a sociedade a crer que estava tudo dando certo: o PIB crescendo 10%, grandes obras de infraestrutura em andamento, multinacionais se instalando aqui, empregos surgindo para a classe média nas empresas e no serviço público, muita gente com o seu Fusca zero na garagem. A censura se encarregava de vetar qualquer notícia capaz de sujar a imagem ufanista do “Brasil grande”, como a falta de democracia, a perseguição dos adversários do regime e o aprofundamento das desigualdades sociais. Pelé, de certa forma, furou o bloqueio imposto à imprensa e chamou a atenção para a miséria das crianças brasileiras.

Os militares fizeram vista grossa para o atrevimento. Vasconcelos Torres e Arnon de Mello, que aplaudiram o milésimo gol e a preocupação com a infância miserável, eram senadores da Arena, o partido que apoiava os generais no poder. Um ano depois, em razão da conquista do tricampeonato no México, o senador Petrônio Portella (Arena-PI) chamou Pelé e companhia de “generais da vitória”.

Na avaliação de Torres, o movimento negro certamente teria alcançado mais visibilidade e vitórias se tivesse contato com a militância de uma estrela de renome internacional como Pelé. O professor da UnB entende que, apesar disso, não se poderia exigir do rei do futebol que levantasse a bandeira da luta contra o racismo:

— Até meados dos anos 1970, qualquer movimento social era considerado subversivo e acabava sendo desmantelado pela ditadura. Isso valia para o movimento negro. Pessoas que se envolviam em militância eram perseguidas e tinham a carreira prejudicada ou até destruída. Pelé não queria isso. No fim dos anos 1970, na abertura do regime, os movimentos sociais se reorganizaram e passaram a cobrar a adesão de Pelé, mas ele nunca quis ser um baluarte da luta negra. Era um direito dele. Se não aderiu à militância, tampouco a atrapalhou. Ele jamais criticou o movimento negro ou negou a existência do racismo no Brasil.

O historiador avalia que, mesmo não militando, Pelé abriu muitas portas para os negros. Isso, de acordo com ele, não se deu apenas por meio das suas ações pontuais que ficaram registradas nos papéis históricos do Arquivo do Senado — o fim da exploração dos jogadores de futebol, a exortação para que negros votassem em negros, a defesa das crianças das periferias.

— A mera figura de Pelé abriu muitas portas para a população negra — ele explica. —  Na Copa de 1950, antes dele, espalhou-se que o Brasil perdera a final para o Uruguai em pleno Maracanã porque os jogadores brasileiros negros, incluindo o goleiro, amarelaram. A culpa foi jogada neles. A interpretação racista se repetiu em 1954. Em 1958, o jovem Pelé, com apenas 17 anos, marcou três gols na semifinal e dois na final, dando o primeiro título ao Brasil, e mostrou que aquela interpretação era falsa. Pelé, simbolicamente, foi importantíssimo para a autoestima das pessoas negras, porque atingiu projeção mundial com seu talento e se transformou num modelo em que elas puderam se espelhar. A figura de Pelé é, ainda hoje, um golpe no racismo estrutural.


Reportagem: Ricardo Westin
Edição: Maurício Müller
Pesquisa histórica: Arquivo do Senado
Edição de fotografia: Pillar Pedreira
Foto de capa: Acervo CBF
Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)