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Embora seja elaborado pelo governo, o Orçamento federal não é responsabilidade exclusiva do Poder Executivo. O Poder Legislativo exerce um papel decisivo nesse processo: cabe aos senadores e deputados, além de discutir e votar o projeto de lei enviado anualmente pela Presidência da República, modificá-lo quando necessário — principalmente por meio das emendas parlamentares.
A economista Ursula Peres, professora da Universidade de São Paulo (USP) e do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), afirma que a atuação do Parlamento no processo orçamentário é essencial:
— O Congresso é, por excelência, o espaço do conflito democrático. É nele que diferentes interesses e visões de sociedade se confrontam e se equilibram, produzindo decisões sobre o que fazer, quanto arrecadar e como distribuir os recursos públicos. Esse conflito é a força que torna o Orçamento mais legítimo e representativo, pois traduz a diversidade da sociedade em escolhas concretas de política pública.
O Orçamento federal indica quanto o governo espera arrecadar em tributos ao longo do ano e como pretende usar esses recursos para manter a máquina pública funcionando e custear serviços para a população.
As emendas parlamentares, hoje um dos principais instrumentos de distribuição de recursos federais para estados e municípios, são aplicadas principalmente em projetos locais de saúde, educação, infraestrutura urbana e assistência social.
O Parlamento participa do processo orçamentário desde os primórdios do Brasil independente, de forma cada vez mais decisiva. Ao longo da história, o Orçamento nacional precisou quase sempre do aval do Poder Legislativo para ser executado, mas o grau de influência dos parlamentares na destinação das verbas variou conforme o momento político.
Em momentos de autoritarismo, os senadores e deputados tiveram pouca ou nenhuma voz no Orçamento. Em momentos democráticos, por outro lado, o poder decisório esteve compartilhado entre o Executivo e o Legislativo.
O Senado e a Câmara nasceram, em 1826, já com a atribuição de votar a proposta de Orçamento elaborada pelo governo. No Império (1822-1889), apesar de o Brasil ser uma monarquia constitucional (e não absolutista), os parlamentares tinham pouca margem de interferência, restando-lhes basicamente endossar o projeto redigido pela equipe do primeiro-ministro.
Na época, a arrecadação provinha, entre outras fontes, do lucro das empresas estatais — como a Fábrica da Pólvora e a Estrada de Ferro D. Pedro II — e dos tributos pagos na exportação de café e no registro de pessoas escravizadas. O Orçamento destinava o dinheiro recolhido, por exemplo, à catequização de indígenas, à manutenção do Presídio da Ilha de Fernando de Noronha e à cobertura dos gastos diários da família imperial.
Foi na Primeira República (1889-1930) que os parlamentares passaram a ter peso no Orçamento, quando as emendas foram criadas. Nesse período de presidencialismo forte, o Senado e a Câmara desempenhavam um papel limitado no processo orçamentário. Muitas das emendas parlamentares eram rejeitadas pelos relatores, quase sempre ligados ao grupo oligárquico no poder.
Em 1922, por exemplo, o senador Irineu Machado (DF) apresentou uma emenda destinando uma pensão mensal à viúva de um senador recém-falecido, e o deputado Francisco Valadares (MG) redigiu uma reservando verbas para a conclusão da rodovia Rio-Petrópolis.
Na Era Vargas (1930-1945), houve um retrocesso. A elaboração do Orçamento federal passou integralmente para as mãos do presidente da República, que pôde arrecadar e gastar os recursos públicos livremente. Isso ocorreu porque Getúlio Vargas governou como ditador na maior parte dos 15 anos de governo e, à exceção do curto período entre 1934 e 1937, o Brasil não teve Senado nem Câmara.
O Poder Legislativo foi reaberto em 1946 e, com isso, o processo orçamentário voltou a ser compartilhado entre o presidente e os parlamentares. Nesse mesmo ano, o senador Luís Carlos Prestes (PCB-RJ) fez um discurso em que demonstrou a importância de o Parlamento ter voz. Referindo-se à proposta de Orçamento para 1947 enviada pelo presidente da República, marechal Eurico Gaspar Dutra, ele observou:
— O que chama imediatamente a atenção de qualquer patriota é o peso específico, sem dúvida exagerado, das despesas militares. Basta dizer que 44% da renda tributária nacional são empregados nos orçamentos do três ministérios militares, o que é lamentável para um país pobre como o nosso. Além disso, estão reduzidíssimos os orçamentos dos ministérios da Agricultura e da Educação e Saúde e as verbas destinadas aos planos de obras.
Nesse período democrático, conhecido como República de 1946 (1946-1964), as emendas parlamentares ainda tinham um alcance limitado se comparadas ao poder que adquiririam décadas mais tarde. Nem sempre eram aprovadas e, quando eram, por vezes não saíam do papel por decisão do governo.
O golpe de 1964 marcou uma nova ruptura na parceria entre o Executivo e o Legislativo na moldagem do Orçamento federal. Ao contrário da ditadura de Vargas, a ditadura militar (1964-1985) manteve o Poder Legislativo aberto, mas sob controle, para criar a ilusão de normalidade democrática. Apenas formalmente os parlamentares contavam com a prerrogativa de apresentar emendas ao projeto e modificá-lo. Na prática, não decidiam nada. As regras inviabilizavam as emendas, e o governo militar usava os senadores e deputados para simplesmente legitimar o Orçamento produzido pelo Ministério do Planejamento.
O senador oposicionista Nelson Carneiro (MDB-Guanabara) se queixou:
— Se antes podíamos nós, na Câmara e no Senado, atender a algumas reivindicações municipalistas, por via de emendas ao Orçamento da União, já agora e cada vez mais crescentemente estamos de mãos atadas para qualquer interferência válida, limitando-nos a aprovar o que a tecnoburocracia oficial nos impinge.
Com a redemocratização, em 1985, o Poder Legislativo ganhou a prerrogativa de participar ainda mais ativamente da moldagem do Orçamento federal: passou a poder modificar quase toda a proposta do Poder Executivo.
A Constituição de 1988 estabeleceu que as emendas parlamentares não podem aumentar a despesa sem indicar a correspondente fonte de receita e, ao mesmo tempo, precisam ser compatíveis com o Plano Plurianual (PPA) e a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) — leis que orientam a elaboração do Orçamento anual e garantem a viabilidade e a continuidade de políticas públicas.
O Parlamento, aliás, analisa e aprova os projetos do PPA e da LDO, elaborados pelo governo, o que confere aos congressistas ainda mais peso no processo orçamentário.
O economista James Giacomoni, professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB) e consultor orçamentário aposentado do Senado, lembra que, no atual período democrático, o episódio mais marcante envolvendo o Orçamento federal foi a investigação conduzida por uma comissão parlamentar de inquérito da Câmara entre 1993 e 1994, que apontou o uso de emendas para desviar recursos públicos: a CPI dos “Anões do Orçamento”, que pediu a cassação do mandato de 18 deputados federais.
— O período da ditadura militar, em que foi negada aos parlamentares uma atuação relevante nas leis orçamentárias, deixou o Senado e a Câmara desinteressados e institucionalmente desaparelhados para o trato dessa questão. A Comissão Mista de Orçamento [do Congresso] passou a aplicar as determinações da nova Constituição sem experiência e regras adequadas. A CPI apresentou várias conclusões e recomendações úteis para o aperfeiçoamento do trabalho do Parlamento — diz.
Uma mudança feita na Constituição em 2015 aumentou o poder do Congresso no processo orçamentário. O Executivo passou a ser obrigado a executar uma parte das emendas parlamentares. Até então, o governo podia escolher quais emendas liberar, quando e que valor. O Orçamento, nesse ponto, deixou de ser autorizativo e tornou-se impositivo.
Giacomoni recomenda:
— É importante que os ecos daquela CPI alcancem os tempos atuais, marcados pelo Orçamento secreto e pelas desconfianças do Supremo Tribunal Federal em relação à transparência de determinadas modalidades de emendas.
As decisões tomadas pelos senadores e deputados relativas ao Orçamento federal são embasadas por audiências públicas — nas quais são ouvidos ministros, presidentes de órgãos públicos, especialistas e representantes da sociedade civil — e por estudos técnicos realizados pelas Consultorias de Orçamento do Senado e da Câmara.
A economista Ursula Peres, da USP, explica por que existe hoje uma imagem ruim das emendas parlamentares:
— As emendas passaram a ser percebidas como algo negativo e desviante em decorrência da CPI dos “Anões do Orçamento” e do caráter de disputa e barganha que permeia o processo orçamentário, embora não constituam necessariamente um instrumento nocivo.
De acordo com ela, as emendas patrocinadas por senadores e deputados atendem a interesses legítimos dos municípios mais pobres, que por vezes têm dificuldade para obter recursos federais, e até mesmo a demandas de uma parte próprio governo — em especial dos ministérios com orçamentos reduzidos, como o da Cultura e os das Mulheres.
— A atual forma de utilização das emendas, porém, é inadequada. Com tantas e distintas destinações, os recursos do Orçamento acabam sendo pulverizados e desperdiçados. É preciso fazer uma reforma orçamentária, com regras mais racionais, a exemplo da reforma tributária — avalia Peres.
A consultora orçamentária Rita Santos, do Senado, concorda que o atual processo orçamentário não é o ideal e faz uma comparação:
— É como se picotássemos uma nota de R$ 100 em vários pedacinhos e os destinássemos a diferentes municípios. Cada um usaria o seu pedaço para fazer uma pequena intervenção e resolver algum problema local. Essa não é a melhor estratégia porque a mesma nota de R$ 100, se mantida inteira, poderia custear uma política estruturante para enfrentar algum problema prioritário que afetasse um grande número de municípios, produzindo resultados muito mais robustos.
Santos ressalva, porém, que não é correto interpretar que o Poder Executivo prepara uma proposta perfeita de Orçamento e o Poder Legislativo a “estraga” com as suas emendas. De acordo com ela, existem falhas no planejamento orçamentário feito pelo governo.
— De qualquer forma, apesar das amplas prerrogativas em matéria orçamentária, o Parlamento tem atuado de forma tímida, por vezes na lógica de atender às bases eleitorais em vez de olhar os interesses nacionais de forma sistêmica na hora de alocar os recursos. Os parlamentares acabam virando “vereadores federais”, cada um olhando apenas para o seu próprio município — ela afirma.
A consultora do Senado avalia que o problema não são as emendas parlamentares em si, mas o modo como foram desenhadas e são aplicadas:
— As emendas acabam dando poder excessivo a parlamentares e perpetuando mandatos. É preciso modernizar as regras orçamentárias, tanto para o Legislativo quanto para o Executivo. Um bom modelo seria aquele que vinculasse o Orçamento a metas de resultado e desempenho em áreas como redução da mortalidade infantil, do feminicídio e do desmatamento.