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Mundo digital esconde perigos para as crianças; saiba como protegê-las

Ricardo Westin
Publicado em 12/9/2025

Em abril, uma menina de oito anos de idade morreu em Ceilândia (DF) depois de inalar desodorante em spray. Ela foi induzida a fazer isso por uma postagem nas redes sociais que desafiava crianças e adolescentes a aspirar o gás do produto pelo maior tempo possível, filmar o ato e compartilhar o vídeo. A família encontrou a garota desacordada ao lado do celular.

No mês seguinte, a polícia prendeu um homem em Holambra (SP) sob a acusação de aliciar crianças em jogos on-line. De acordo com a denúncia, ele oferecia aos menores benefícios como moedas virtuais e acesso a contas VIP em troca de fotos e vídeos íntimos. O acusado tinha um vasto acervo digital de material pornográfico infantil. A denúncia foi feita pela avó de um menino de 11 anos após ela ler mensagens suspeitas no WhatsApp do neto.

Esses são apenas alguns dos inúmeros riscos que as crianças correm na internet. A longa lista de perigos vai de vício em jogos on-line e consumismo (induzido por algoritmos) a cyberbullying e sexualização precoce (pelo acesso fácil à pornografia).

De acordo com Pilar Lacerda, secretária nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (do Ministério dos Direitos Humanos), muitos pais erroneamente acreditam que os filhos se encontram em segurança por estarem dentro de casa e diante de seus olhos:

— Isso era verdade no passado. Hoje não. Da mesma forma que até um tempo atrás sabíamos que era uma loucura deixar uma criança de dez anos de idade sozinha numa praça de alguma grande cidade, precisamos entender que agora é perigoso deixá-la sozinha também na internet, que é simplesmente a maior praça pública do mundo.

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    Ameaças do mundo digital às crianças

  • desafios que induzem à automutilação e à morte
  • pedofilia on-line e aliciamento sexual
  • interação com adultos desconhecidos e predadores sexuais
  • pornografia e conteúdos de natureza sexual inadequados para a idade
  • sexting (fotos ou vídeos íntimos compartilhados, geralmente entre adolescentes, que podem ser compartilhados sem consentimento)
  • sextorsão (extorsão com imagens íntimas, em troca de dinheiro, mais imagens ou favores sexuais)
  • deepfakes (conteúdos falsificados com inteligência artificial que colocam a vítima em situações comprometedoras)
  • superexposição da imagem (pelos pais ou pelas próprias crianças) e perda da privacidade
  • uso da imagem por predadores sexuais
  • dependência digital
  • vício em jogos e apostas on-line
  • cyberbullying (ataques e comentários on-line racistas, homofóbicos, misóginos, gordofóbicos, xenofóbicos, de intolerância religiosa etc.)
  • trabalho infantil (influenciadores mirins explorados pelos pais ou por terceiros)
  • pressões sociais e de consumo
  • manipulação algorítmica para o consumo de certos produtos comerciais ou conteúdos
  • publicidade e comunicação mercadológica abusivas
  • sites e postagens com publicidade ou patrocínio oculto
  • fake news e desinformação
  • discursos extremistas e de ódio
  • golpes financeiros
  • phishing (golpe digital em que criminosos se passam por empresas ou pessoas confiáveis para obter do usuário senhas, dados bancários, números de cartão de crédito)
  • scam (golpe em jogos on-line em que jogadores enganam outros usuários para obter vantagens indevidas, como moedas virtuais e até dinheiro real)
  • coleta abusiva de dados pessoais
  • uso indevido de informações privadas

A pesquisa TIC Kids Online Brasil 2024, que ouviu crianças e adolescentes (entre 9 e 17 anos de idade) e seus pais, revela que, enquanto 29% dos jovens relataram já ter vivido situações incômodas ou ofensivas no mundo digital, apenas 8% dos pais afirmaram acreditar que os filhos já experimentaram situações desse tipo. A discrepância de números indica que os adultos ainda não enxergam a realidade e avaliam que a internet é inofensiva.

O especialista em educação digital Rodrigo Nejm, do Instituto Alana (ONG dedicada à proteção da infância), afirma que existe uma compreensão equivocada do conceito de “nativo digital”:

— Supõe-se que as crianças se movem no mundo digital de forma saudável, segura e crítica porque nasceram na era da internet e usam o computador, o celular e o tablet com desenvoltura. Pesquisas mostram que isso não é verdade. Como crianças, é natural que ainda não tenham maturidade e discernimento para perceber, entender e evitar ameaças.

O número de pequenos internautas expostos às ameaças digitais não é desprezível. Estimativas do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) apontam que, dos 48 milhões de brasileiros com menos de 18 anos de idade, em torno de 35 milhões frequentam o mundo digital — 20% dos 183 milhões de internautas do país.

Jogos on-line permitem que usuários conversem entre si, o que abre espaço para que crianças sejam assediadas por adultos (Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil)

Para protegê-los, é importante que o poder público faça campanhas educativas, as escolas incluam no currículo o letramento digital e as famílias sejam esclarecidas e envolvidas no processo de orientação de crianças e adolescentes.

Especialistas ouvidos pela Agência Senado, porém, avaliam que essas medidas, apesar de necessárias, não são capazes de resolver sozinhas o problema. Segundo eles, o essencial e urgente é que o poder público crie regras que obriguem as big techs (grandes empresas de tecnologia com presença global) a fazer uma reforma profunda no ambiente virtual para eliminar ou pelo menos minimizar os perigos aos usuários de pouca idade — e que elas, as big techs, sejam punidas caso não sigam as normas.

Rodrigo Nejm explica que muitos dos perigos existem porque a internet foi originalmente desenhada para ser utilizada apenas por adultos, e não por crianças, e que isso não se alterou com o passar do tempo:

— Há cada vez mais incentivos para que as crianças e os adolescentes estejam no mundo digital, mas a arquitetura desse mundo não leva em conta a saúde, o bem-estar e a segurança desse público. O que interessa às plataformas é tê-los como consumidores, e não como sujeitos que precisam ser cuidados, educados e cultivados de alguma maneira.

Ele compara o ambiente virtual a uma cidade. Nesse espaço, as crianças podem brincar livremente no quintal de casa ou no playground do edifício em que vivem. Certos lugares da cidade, contudo, oferecem algum risco, como o clube e o shopping center, nos quais os menores só deveriam se aventurar se estiverem acompanhados de algum adulto responsável. Outros espaços exigem que os frequentadores sejam maiores de idade, como a discoteca e a loja de bebidas, que não admitem crianças em hipótese nenhuma.

— Os pais não deixam os filhos circularem sozinhos pela cidade porque sabem que existem lugares inadequados para crianças. Esse mesmo comportamento não é adotado no ambiente digital. Muitos pais não veem a concretude dos perigos e permitem que seus filhos naveguem com total liberdade, sem acompanhamento ou vigilância — observa Nejm, acrescentando que os riscos ficaram ainda maiores com a chegada da inteligência artificial.

De acordo com Nejm, as empresas digitais criam o design das plataformas com o intuito único de maximizar os lucros e, por isso, não se preocupam com a vulnerabilidade das crianças, que ficam sujeitas a todo tipo de ameaça.

As redes sociais só podem ser acessadas, teoricamente, a partir dos 14 anos. Na prática, basta que um adolescente ou uma criança mais nova informe que tem a idade mínima exigida para que consiga criar seu perfil na plataforma.

Adultos com más intenções podem tranquilamente conversar com crianças nas ferramentas de bate-papo dos jogos on-line, sem que a plataforma atue de forma proativa banindo ou denunciando os usuários.

As plataformas digitais rejeitam uma regulação imposta pelo poder público. Numa frente, argumentam que isso representaria uma censura à liberdade de expressão, já que, temendo as punições, acabariam fazendo uma remoção excessiva de conteúdos e, involuntariamente, prejudicando o debate público e a pluralidade de opiniões.

Em outra frente, alegam enfrentar limitações técnicas e operacionais para rastrear e remover conteúdos abusivos com total eficácia, especialmente em ambientes de alto movimento como as redes sociais e os jogos on-line.

Crianças usam tablets em colégio: para especialistas, letramento digital no currículo escolar é importante, mas insuficiente para garantir a proteção das crianças na internet (Divulgação/Pref. Jundiaí)

Para vários especialistas, nenhuma das duas explicações se sustenta. Quanto às supostas limitações técnicas e operacionais, a promotora Mirella Monteiro, da área de infância e juventude do Ministério Público do Estado de São Paulo, afirma:

— O curioso é que, quando o que está envolvido são questões patrimoniais, as plataformas não enfrentam limitações e têm uma atuação muito rápida. Qualquer vídeo publicado violando direitos autorais, contendo uma música não autorizada, é derrubado imediatamente. Isso significa que elas têm, sim, condições de fazer o controle do conteúdo prejudicial às crianças.

Rodrigo Nejm, do Instituto Alana, concorda:

— As plataformas conseguem até mesmo saber se um adolescente está um pouco mais vulnerável emocionalmente. Chegam a essa conclusão quando veem que ele tenta publicar uma selfie e logo desiste ou então quando chega a publicá-la e depois a apaga. Também conseguem analisar as emoções pela força do toque ao digitar na tela do celular. Tudo isso é feito com o objetivo de aproveitar a vulnerabilidade emocional e oferecer determinados produtos que o jovem, nesse estado, provavelmente comprará. Se as plataformas investem milhões de dólares para criar esse tipo de tecnologia, como é que não têm tecnologia para identificar ações criminosas e criar filtros para proteger crianças e adolescentes?

Em relação ao argumento da liberdade de expressão, ele diz:

— Nenhum crime pode ser praticado sob o argumento de que se trata de liberdade de expressão. Ela não é absoluta, principalmente quando viola outros direitos. Não há como dizer que combater conteúdos que incitam o suicídio ou a autolesão de crianças signifique cercear a liberdade de expressão de um adulto.

A promotora Mirella Monteiro acrescenta:

— Quando se recorre ao argumento da defesa da liberdade de expressão, o que na verdade se busca é manter intacta a estrutura das plataformas digitais, conservar liberado o acesso das crianças a todo o mundo digital e, assim, garantir que o lucro dessas empresas não seja prejudicado.

Como denunciar conteúdos criminosos on-line

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Disque 100

ligue para o número gratuito da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, disponível 24 horas por dia, que encaminha a denúncia ao órgão competente; denuncie também via WhatsApp, pelo número (61) 99611-0100

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Polícia Civil

procure a delegacia mais próxima

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Polícia Militar

telefone para o número 190

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Ministério Público

preencha o formulário on-line de denúncia disponível no site de alguns ministérios públicos estaduais

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Conselho tutelar

busque os conselheiros locais, que devem encaminhar a denúncia às autoridades

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Polícia Federal

faça a denúncia de abuso sexual infantil ao Comunica PF quando houver indícios de que se trata de uma ação internacional

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SaferNet Brasil

acesse o site da organização não governamental Safernet e denuncie de forma anônima e segura

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Redes sociais

acione os canais dos próprios aplicativos e plataformas digitais para denunciar crimes e conteúdos sexuais inadequados

A Constituição, no artigo 227, determina que a família, a sociedade e o poder público devem garantir dignidade e respeito às crianças e aos adolescentes “com absoluta prioridade” e protegê-los de “negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Esse preceito constitucional se desdobrou no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que enumera as medidas concretas a serem tomadas.

De acordo com Mirella Monteiro, esse grupo etário ganhou uma atenção especial da legislação por ser “vulnerável”, como se diz no jargão jurídico:

— As crianças e os adolescente dependem de outras pessoas para ter proteção e ver seus direitos cumpridos porque ainda estão em fase de desenvolvimento. Eles não conseguem fazer isso por si próprios. No ambiente digital não é diferente. Se muitos adultos caem em golpes digitais de todo tipo, por exemplo, e se mostram vulneráveis, imagine as crianças, que ainda não têm a maturidade e a malícia necessárias para enxergar as armadilhas.

O senador Alessandro Vieira é o autor de um projeto de lei, que está para ser sancionado, que atualiza o Estatuto da Criança e do Adolescente Waldemir Barreto/Agência Senado

O artigo 227 da Constituição e o ECA, somados às leis que disciplinam a internet — em particular o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais —, seriam, em teoria, suficientes para proteger as crianças na internet. A tecnologia, contudo, tem avançado com tanta rapidez que certas novidades do mundo digital acabaram ficando fora do guarda-chuva da legislação existente.

Essa lacuna será preenchida por uma lei que deve ser sancionada na próxima semana pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A futura lei, que teve origem em um projeto apresentado pelo senador Alessandro Vieira (MDB-SE), atualiza o Estatuto da Criança e do Adolescente para o ambiente virtual. Esse projeto (PL 2.628/2022) foi aprovado no mês passado pela Câmara e pelo Senado — e vem sendo chamado de ECA Digital.

A proposta estabelece, entre outros pontos, que jovens de até 16 anos só poderão usar as plataformas com a supervisão ativa dos responsáveis e que as empresas deverão oferecer ferramentas de controle parental acessíveis e eficazes.

Além disso, o texto prevê que pais, entidades e o Ministério Público poderão solicitar a remoção imediata e sem ordem judicial de conteúdos abusivos. Também prevê que influenciadores, empresas e plataformas que expuserem indevidamente crianças serão responsabilizados de forma solidária. As multas poderão chegar a R$ 50 milhões.

Pilar Lacerda, da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, explica por que o governo federal trabalhou pela aprovação desse projeto de lei:

— Os pais muitas vezes não têm condições de monitorar as atividades dos filhos na internet, quais chats frequentam e com quem falam, seja pela falta de tempo ou conhecimento, seja porque os melhores aplicativos de controle parental são pagos. Qual é o pai que sabe que os jogos on-line têm uma caixa de diálogo entre os participantes e que é lá que os abusos acontecem? As plataformas precisam, sim, fazer a fiscalização e ser responsabilizadas.

Itamar Gonçalves, superintendente da Childhood Brasil (ONG dedicada à proteção da infância contra abuso e exploração sexual), avalia:

— Essa união entre o governo e o Poder Legislativo e esse consenso entre os partidos governistas e oposicionistas são inéditos e mostram que essa mínima regulação era mesmo necessária e urgente.

O youtuber Felca denunciou a exploração e o abuso de crianças no mundo digital (Reprodução/Youtube)

O projeto do ECA Digital ganhou destaque nacional após o youtuber Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca, publicar um vídeo no início de agosto no qual denuncia um influenciador digital por explorar menores de idade. Nesse vídeo, Felca também alerta sobre os riscos da exposição infantil nas redes sociais.

Com mais de 50 milhões de visualizações, o vídeo mobilizou autoridades, especialistas, famílias e organizações da sociedade civil em torno da urgência de se proteger crianças no ambiente digital. O influenciador denunciado por Felca foi preso.

— Temos de agradecer ao Felca por esse trabalho — afirma Pilar Lacerda. — Foi necessário que um youtuber se manifestasse para que o tema entrasse na pauta nacional e o projeto, em tramitação desde 2022, fosse rapidamente aprovado. Isso comprova a força do mundo digital em nossas vidas e a necessidade de cuidar dele com mais atenção.

A denúncia de Felca também motivou a aprovação de uma comissão parlamentar de inquérito no Senado, a CPI da Adultização, que tem o objetivo de investigar crimes contra crianças e adolescentes na internet — como sexualização precoce, exploração de imagem, aliciamento e abuso on-line. A CPI será criada a pedido dos senadores Damares Alves (Republicanos-DF), Jaime Bagattoli (PL-RO) e Magno Malta (PL-ES).

Senadores Jaime Bagattoli, Damares Alves e Magno Malta pediram a criação da CPI da Adultização (Geraldo Magela/Agência Senado e Carlos Moura/Agência Senado)

No mesmo contexto de mobilização, os senadores da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) aprovaram neste mês um projeto de lei do senador Marcos do Val (Podemos-ES) que obriga sites e aplicativos a retirar imediatamente conteúdo pornográfico que envolva crianças ou adolescentes (PL 880/2025).

Essa proposta continua a tramitar no Senado: o texto seguiu para análise na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ).

— O Brasil já entendeu que precisamos proteger as crianças na internet, e não da internet. Não se pensa em afastá-las do mundo digital, que é importante e necessário e faz parte da vida de todos nós, mas em criar as condições para que esse mundo seja seguro para elas — resume Itamar Gonçalves, da Childhood Brasil.


Reportagem: Ricardo Westin
Edição: Ricardo Koiti Koshimizu
Edição de fotosBernardo Ururahy
Infografia:  Diego Jimenez e Fernando Ribeiro
Foto de capa: Joédson Alves/Agência Brasil

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)