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As novidades que prometem alavancar os transplantes no Brasil

Ricardo Westin
Publicado em 24/5/2024

Uma ferramenta digital que promete aumentar o número dos transplantes de órgãos no Brasil acaba de ser lançada. Trata-se da Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos (Aedo), pela qual qualquer pessoa pode registrar em cartório — de forma on-line, rápida e gratuita — o desejo de doar os órgãos depois de morrer.

A nova ferramenta, que é resultado de uma parceria entre o Ministério da Saúde e o Conselho Nacional de Justiça e o Colégio Notarial do Brasil, permite que familiares consultem o sistema e saibam se o ente falecido desejava ser doador. Para fazer o registro, basta acessar o site da Aedo.

A iniciativa era necessária. Primeiro, porque nenhum órgão pode ser retirado sem o consentimento da família. Depois, porque as equipes médicas vêm enfrentando dificuldades para encontrar órgãos para transplante. Praticamente a metade das famílias consultadas não autoriza a retirada dos órgãos do ente que teve morte cerebral. 

Essas negativas têm grande impacto no sistema nacional de transplantes. No ano passado, o Brasil realizou somente um quarto dos transplantes cardíacos necessários e 138 pacientes morreram enquanto esperavam um coração novo — uma morte a cada três dias, em média.

Outras duas medidas tomadas recentemente também fortalecem os transplantes de órgãos, que são oferecidos gratuitamente a toda a população pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A primeira foi a Política Nacional de Conscientização e Incentivo à Doação e ao Transplante de Órgãos e Tecidos (Lei 14.722, de 2023), aprovada pelo Senado e pela Câmara dos Deputados e sancionada em novembro pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Por força dessa política, os governos municipais, estaduais e federal devem fazer campanhas para conscientizar a população sobre a importância da doação de órgãos. Além disso, o tema precisa ser incluído no currículo das escolas.

A segunda medida foi a Lei 14.858, de 2024, também aprovada pelos senadores e deputados e assinada há poucos dias pelo presidente. A norma torna obrigatória a reserva de vagas em aviões para órgãos destinados a transplante. Caso o voo esteja lotado e surja um órgão que precise ser transportado, a reserva de algum dos passageiros deverá ser cancelada pela empresa aérea sem que isso configure descumprimento de contrato.


Entrevista

Ronaldo Honorato, cirurgião cardiovascular e membro do Departamento de Transplante Cardíaco da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO)

"Fake news tentam sabotar o sistema brasileiro de transplantes"

Ronaldo Honorato, médico transplantador de coração (Arquivo pessoal)

Agência Senado — Como o senhor avalia o sistema de transplantes do Brasil?

Ronaldo Honorato De forma geral, o sistema funciona bem. Diferentemente do que ocorre em outros países, como os Estados Unidos, os transplantes no Brasil são feitos pela rede pública. Apesar de ser um tratamento muito caro, o acesso é universal e democrático. Naturalmente, há muito a melhorar. Ainda temos barreiras, como a concentração dos transplantes no Sul e no Sudeste, onde os estados são mais ricos e aplicam mais recursos na estrutura hospitalar, na qualificação de profissionais e na própria organização do sistema de saúde. O Norte não tem nenhum centro de transplante de coração. No Nordeste e no Centro-Oeste, só alguns estados oferecem o serviço, e o número de procedimentos é baixo. Outra barreira é a alta taxa de negativa familiar. No Brasil, mais de 40% das famílias não permitem a doação dos órgãos do ente que morreu. Nos Estados Unidos, a negativa fica em torno de 20%. Em alguns países da Europa, é ainda menor. O resultado é que hoje temos no Brasil 43 mil pessoas que necessitam de transplante de órgão e 28 mil, de transplante de córnea. Enquanto ainda houver pessoas morrendo à espera de órgãos, a nossa missão não estará concluída.

Por que muitas famílias não aceitam doar os órgãos?

As famílias costumam ser pegas de surpresa pela notícia de que o ente querido teve morte encefálica. Nesse momento dramático, há muito tumulto e muitas decisões a serem tomadas. Fica difícil pensar com clareza e aceitar a doação dos órgãos. Outro problema é o tabu da morte. As pessoas não gostam de falar sobre ela, mesmo sendo a morte inexorável. Veja que usamos a expressão “seguro de vida”, muito embora esse seguro esteja, na realidade, relacionado à morte. Por causa do tabu, as pessoas acabam não contando aos familiares que desejam ser doadoras depois que morrerem. Quando há a manifestação do desejo em vida, a decisão dos familiares naquele momento de tumulto acaba ficando mais fácil. Além disso, a morte encefálica nem sempre é bem compreendida pelos familiares. É complicado entender que, apesar de o coração bater e o pulmão oxigenar o sangue com a ajuda de uma máquina, o cérebro já não vive e é apenas questão de tempo para que os demais órgãos também parem. Muitas famílias negam a doação dos órgãos na crença de que o ente está vivo ou na esperança de que ele volte à vida. A morte cerebral, porém, é irreversível.


Como se pode reverter essa situação de tantas negativas familiares?

O transplante de órgãos precisa ser tema de debate nas salas de aula. As novas gerações têm um poder muito grande de mudança. Na Espanha, que é o país que tem proporcionalmente o maior número de doadores do mundo, o assunto é discutido já nas escolas primárias. Um avanço importante que tivemos no Brasil há pouco foi a Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos, que permite às pessoas registrarem em cartório o desejo de serem doadoras. Toda a rede nacional de cartórios está conectada nesse sistema. Suponhamos que uma pessoa morreu sem ter dito à família que desejava doar os órgãos. De qualquer lugar do país, a família poderá acessar o sistema e, assim, tomar com mais facilidade e desprendimento a decisão de autorizar a doação. Qual é a família que não gostaria de ver a vontade da pessoa que morreu sendo respeitada? A doação acaba até ajudando no consolo da família enlutada, já que os órgãos doados significam uma nova vida para outras pessoas. Os órgãos não servem mais para aquele que está morto, mas são essenciais para quem está morrendo.


O apresentador de TV Fausto Silva passou recentemente por um transplante de coração e outro de rim e logo correram fake news dizendo que, por ter recebido os órgãos com rapidez, ele havia furado a fila. Por que se espalha esse tipo de mentira?

Eu afirmo categoricamente que é impossível que um doente passe na frente de outro injustamente. Os pacientes que correm mais risco de vida são automaticamente priorizados. Foi o que ocorreu com Faustão. O sistema é eletrônico e auditado pelas autoridades. Não pode ser burlado. Quem espalha esse tipo de fake news não tem amor ao próximo e não tem caráter, pois está agindo para sabotar um sistema eficiente que é responsável por salvar vidas. Eu lembro que, no auge da pandemia de covid-19, inventaram que quem tomasse a vacina viraria lagartixa. Isso é uma coisa insana, mas certamente houve gente que acreditou e não se vacinou. Na minha avaliação, as fake news devem ser combatidas com informações corretas. Por isso é importante que os transplantes estejam na ordem do dia e sejam tema recorrente de debate nos meios de comunicação. A informação tem o poder de acabar com a mistificação.



Reportagem: Ricardo Westin
Edição de texto: Maurício Müller
Edição de imagens e multimídia: Bernardo Ururahy
Infografia: Diego Jimenez
Arte da capa: Aguinaldo Abreu com auxílio de Inteligência Artificial (Adobe Firefly)

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)