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Bioma mais devastado, Mata Atlântica luta para manter biodiversidade

Paula Pimenta
Publicado em 12/1/2024

Com histórico de devastação iniciado logo após a chegada dos colonizadores europeus, há mais de 500 anos, a Mata Atlântica tornou-se o bioma brasileiro com os piores índices de conversão da cobertura vegetal original e consequente perda de biodiversidade. Nada menos que 71,3% das áreas de florestas tropicais nativas, conforme dados do Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais (Inpe), já foram desmatadas para exploração durante diversos ciclos econômicos (como pau-brasil, cana-de-açúcar, ouro e café), expansão da ocupação urbana (no bioma vivem cerca de 70% dos brasileiros, aproximadamente 145 milhões de pessoas), construção de ferrovias e rodovias e avanço da agropecuária.

De acordo com o Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas (MMA), a Mata Atlântica detém a segunda maior biodiversidade das Américas, perdendo apenas para a Amazônia. Apesar de ser o único bioma a usufruir de uma norma específica — a Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428, de 2006) — e ser considerada patrimônio nacional pela Constituição Federal, como um grande centro de espécies endêmicas (que só ocorrem na região), a floresta continua em risco.

Estudo divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que, de 11,8 mil espécies de animais e plantas da Mata Atlântica avaliadas em 2022, 24,1% (2.845) estavam ameaçadas. O percentual continua crescente (em 2014, era de 22,3%) e é bem superior aos dos demais biomas: no Cerrado, por exemplo, onde a situação também é crítica, os índices  ficaram na casa de 16% nos dois anos comparados. 

Tema da quarta publicação da série “Biomas”, da Agência Senado, a Mata Atlântica se espalha pelo maior número de regiões brasileiras: está presente em 3.429 municípios de 17 estados, sendo 100% dominante no Espírito Santo, Rio de Janeiro e Santa Catarina e em 98% do Paraná. Ocorre ainda em Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Goiás e oito estados do Nordeste: Bahia, Sergipe, Paraíba, Alagoas, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí. A área original do bioma no Brasil é 1,1 milhão de quilômetros quadrados, mas também há uma pequena porção na Argentina e no Paraguai.

Mata Atlântica no litoral do Rio e floresta do Parque Nacional de Descobrimento, na Bahia, região da chegada dos portugueses (Tomaz Silva/Agência Brasil e Ricardo R. Maia/Ibama)

Apenas 12% bem preservados

— As florestas da Mata Atlântica foram as mais devastadas do país e hoje o bioma conta com apenas 12% de florestas bem preservadas e maduras, em relação à cobertura florestal original. Sob o ponto de vista ecológico, uma perda de área nessa magnitude significa uma tragédia em termos de conservação da biodiversidade e manutenção de processos naturais vitais e dos quais nós dependemos, como ciclo das águas, regulação do clima local e regional, formação e preservação de solos e equilíbrio de processos ecológicos como polinização, dispersão de sementes das florestas e controle de pragas — afirma o consultor legislativo do Senado Matheus Dalloz.

Um recente alento foi registrado com a divulgação, pelo Sistema de Alertas de Desmatamento Mata Atlântica (o SAD, parceria da Fundação SOS Mata Atlântica com a rede colaborativa MapBiomas e a ArcPlan), de queda de 59% no desmatamento do bioma nos primeiros oito meses de 2023, em comparação com igual período do ano anterior. De janeiro a agosto do ano passado, foram derrubados 9,2 mil hectares, contra 22,2 mil do mesmo período de 2022. Um alívio, após quatro anos de crescimento contínuo da devastação.

— Houve uma queda abrupta em 2023 (ainda com dados parciais, de janeiro a agosto), quando o desmatamento caiu 59% na maior parte do bioma. Mas nos enclaves da Mata Atlântica no Cerrado e na Caatinga houve até um aumento. Estamos numa nova fase de reversão da tendência do desmatamento. Esperamos que a Mata Atlântica possa ser o primeiro bioma a alcançar o desmatamento zero nos próximos anos — diz o diretor-executivo da Fundação SOS Mata Atlântica, Luís Fernando Guedes Pinto.

Ter uma lei específica para o seu uso, conservação e restauração é muito importante e representa “uma conquista enorme”, segundo Pinto. Ele atribui à lei parte da força que promoveu a redução drástica do desmatamento, que até o início dos anos 2000 chegou a alcançar uma média de 100 mil hectares por ano. O número assumiu então um processo de reversão, chegando a 10 mil hectares/ano em 2017, mas voltou a subir para cerca de 20 mil/ano entre 2019 e 2022. Para o diretor da Fundação, o retorno do funcionamento da política ambiental brasileira, da maior fiscalização pelos órgãos ambientais, o embargo de áreas desmatadas, a aplicação da Lei da Mata Atlântica e também o corte do crédito rural para desmatadores ilegais colaboraram para um novo declínio da devastação no ano passado.

— A Lei da Mata Atlântica poderia ser aprimorada, mas o mais importante agora é mantê-la, pois tem sido atacada. Precisamos manter sua integridade e a garantia de que ela continuará a existir e continuará a ser aplicada. Ela não tem sido aplicada corretamente por órgãos ambientais estaduais, principalmente nessas regiões onde a Mata Atlântica está encravada na Caatinga e no Cerrado — afirma o diretor da SOS Mata Atlântica.

Ocupação desordenada

O consultor legislativo Dalloz também reconhece a importância de se ter e manter uma lei específica de proteção — o que, a seu ver, não deveria estar restrita à Mata Atlântica, mas também aos demais biomas.

— Infelizmente, todos os biomas brasileiros passam por um processo de ocupação desordenada, com exploração não sustentável e degradação dos ecossistemas, mesmo que cada bioma tenha suas próprias particularidades em termos de história natural e de ocupação humana. A realidade de crescimento da economia e da sociedade em descompasso com a proteção do meio ambiente aconselha, com alguma urgência, discussões de medidas legislativas e implementação de instrumentos de planejamento de uso do solo (como o zoneamento ecológico-econômico) a fim de estabelecer e orientar como o país pode se desenvolver, em cada uma dessas áreas, de maneira sustentável e com respeito às nossas riquezas naturais.

Para o senador Fabiano Contarato (PT-ES), o Estado tem o dever de zelar pelo cuidado e pela segurança dos biomas, mas a população precisa entender que esse também é um dever individual:

— É não jogando lixo nas matas, não desmatando, não destruindo, não invadindo. Temos a nossa responsabilidade em cuidar da preservação ambiental, sempre lembrando que essa é uma missão global e de garantia da vida humana. Esse alerta merece ainda mais destaque para as empresas e agentes do setor produtivo, que utilizam grandes quantidades de recursos naturais em seus processos produtivos e podem influenciar diretamente a cadeia de consumo.

Cachoeira no interior de Santa Catarina: florestas exuberantes cercadas pelas cidades (Apremavi/Divulgação)

Mudanças na lei barradas no Senado

Em 2023, o Senado rejeitou emendas da Câmara dos Deputados à Medida Provisória (MP) 1.150/2022, que originalmente apenas alterava o Código Florestal para ampliar o prazo para adesão ao Programa de Regularização Ambiental. As emendas traziam propostas de mudanças significativas à Lei da Mata Atlântica, como a previsão de hipóteses de desmatamento sem medidas de compensação.

É o que seria permitido, por exemplo, para implantação de linhas de transmissão de energia elétrica, gasoduto ou sistemas de abastecimento público de água. As emendas da Câmara abririam espaço, inclusive, para que não houvesse a necessidade de estudo prévio de impacto ambiental (EIA) ou compensação de qualquer natureza, com dispensa, ainda, da captura, coleta e transporte de animais silvestres.

Os senadores rejeitaram as emendas sob o argumento de não tratarem do mesmo tema da MP original. Ao voltar para a Câmara, as impugnações do Senado não foram acatadas e o texto com modificações à Lei 11.428 seguiu à sanção. Contudo, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, vetou os trechos do projeto de lei de conversão que ampliavam os riscos à Mata Atlântica — decisão que, após acordos, acabou por ser acatada pelo Congresso quando da análise e manutenção dos vetos à norma.

Fabiano Contarato, Efraim Filho, Eliziane Gama e Otto Alencar: preocupação com risco de mudanças na lei (Pedro França, Waldemir Barreto e Geraldo Magela/Agência Senado)

Relator da matéria no Senado, Efraim Filho (União-PB) considerou legítima “a preocupação com o avanço do desmatamento sobre a vegetação da Mata Atlântica”. O senador lembrou que o bioma já possui lei específica e que qualquer discussão sobre a alteração de sua legislação deveria se dar em outra oportunidade e por meio de projeto de lei.

— E o que vão me perguntar os meus filhos e os meus netos: "Você estava onde, que deixou derrubar a Mata Atlântica? O que é que você fez para não permitir a derrubada da Mata Atlântica? Por que, meu avô ou meu pai, eu não conheço uma caviúna, uma cerejeira, uma baraúna, uma imbuia, um pau d'arco, juazeiro, jatobá, gonçalo-alves, louro, ipê, marupaúba, peroba, maçaranduba, carvalho, mogno, canela, imbuzeiro, andiroba, copaíba, pau-brasil e jequitibá? Por que eu não conheço?". Porque se derrubou criminosamente a Mata Atlântica e querem continuar derrubando a Mata Atlântica... — afirmou o senador Otto Alencar (PSD-BA) durante a discussão da matéria.

A senadora Eliziane Gama (PSD-MA) também reforçou a preocupação diante do fato de a Mata Atlântica ser o bioma brasileiro com maior degradação.

— É um bioma praticamente hoje inexistente do ponto de vista da sua proteção. A Lei da Mata Atlântica trouxe alguns elementos que fazem a garantia para que não pudéssemos ter o desaparecimento desse bioma no Brasil.

Defensor da educação como instrumento de transformação, o senador Contarato diz ser essencial ensinar as crianças sobre a importância da Mata Atlântica e da preservação dos biomas.

— Uma criança que aprende que a sobrevivência dela depende de um planeta controlado vai ser um adulto muito mais consciente. Em sintonia a isso, devemos garantir a execução de políticas públicas eficientes de conservação e recuperação do meio ambiente, devemos buscar cooperação em diversos setores, investir em pesquisa, métodos de exploração sustentável e, principalmente, devemos ser rigorosos na punição a todos que cometerem crimes ambientais.

Floresta de araucárias na serra e vegetação costeira são exemplos da heterogeneidade do bioma (Leopoldo Silva/Agência Senado e Apremavi/Divulgação)

Biodiversidade sob pressão

Formada em sua maioria por florestas tropicais, a Mata Atlântica — cujo dia é celebrado em 27 de maio — proporciona algumas das paisagens mais belas e cênicas ao longo da costa brasileira. Esse rico ecossistema, assim como o Cerrado, está sendo classificado como um hotspot por deter uma grande biodiversidade, altamente ameaçada pela ação antrópica. O bioma é o mais estudado cientificamente entre os ecossistemas brasileiros e abarca o maior número de espécies conhecidas, seja na flora ou fauna.

Bastante heterogênea, a Mata Atlântica tem vegetações moduladas por aspectos de relevo, da paisagem e do clima. Além das florestas, é possível desfrutar da vista das formações de restinga (linha de praia), manguezais, campos rupestres, campos de altitude, entre outras.

Numa altitude um pouco mais elevada e mais restrita às montanhas, em um clima úmido, estão as florestas ombrófilas, ou seja, “amigas da chuva”. Já a formação de platô é geralmente mais encontrada no interior do país, onde a altitude é mais baixa em relação às matas do litoral e onde também se registram períodos de seca, quando muitas das árvores perdem parte de suas folhas.

Conforme levantamento oficial do Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (braço do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima responsável pelo registro nacional) há cerca de 21,2 mil espécies de flora e funga (fungos) catalogadas no bioma, dos quais 10,5 mil seriam endêmicas do Brasil.

De acordo com a Fundação SOS Mata Atlântica, apenas 13% do bioma está inserido em diferentes tipos de áreas de proteção, sendo que somente 9% são dedicados exclusivamente à conservação.

Descrição da nova espécie descoberta em Minas e as já conhecidas orelha-de-pau (um fungo) e flor do pau-brasil (Danilo Zavatin/Divulgação e Apremavi/Divulgação)

Recém-descoberta e já em risco

Recentemente, uma nova espécie de árvore endêmica foi descoberta no Parque Estadual do Itacolomi, em Ouro Preto (MG), uma unidade de conservação de 7 mil hectares, protegida pelo Instituto Estadual Florestal de Minas Gerais (IEF).

Biólogo e mestrando em Botânica do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), Danilo Zavatin é o pesquisador líder da descoberta, que também teve parceria do Instituto Tecnológico Vale e da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). Ele não buscava essa espécie, mas outra, quando a descobriu e depois a nomeou de Mollinedia fatimae. Zavatin a identificou pelas características das plantas pertencentes ao seu grupo de estudo.

— A planta já havia sido coletada, mas nunca identificada. Porque geralmente quem coleta não conhece. E aí, só deposita lá na instituição. E ela não tem um nome, ou recebe o nome de uma outra planta, mas não é ela — expõe o pesquisador da USP.

Foram encontrados no parque apenas pouquíssimos exemplares da árvore, que pode atingir dez metros de altura. Mal foi descoberta, a Mollinedia fatimae já pode ser considerada ameaçada de extinção, segundo o coautor do estudo, o biólogo e pesquisador Renato Ramos, que explica a classificação da espécie na categoria “criticamente em perigo”:

— O desmatamento da Mata Atlântica já avançou muito ali. Minas Gerais foi, muitas vezes, um dos três estados com maiores índices de desmatamento; agora vem baixando. O que mais nos preocupa ali com relação a essa espécie é estar no limite de dois tipos de vegetação: de campo e de floresta. E o que ocorre é que o campo pega fogo. E quando começa a ampliar demais os incêndios, essa formação de campo vai começar a invadir a floresta — diz Ramos, que atua no Planejamento Territorial do Espinhaço Mineiro e no Instituto Tecnológico Vale.

Com a possibilidade de queima da borda da floresta, diante da intensificação de incêndios, como os registrados em anos anteriores, a espécie poderá perder seu habitat, já que possui uma área de ocorrência muito restrita. Segundo Ramos, há que se levar em consideração ainda aspectos relacionados à mudança do clima e, especificamente neste ano, os efeitos do El Niño.

Fiscal do Ibama em ação contra desmatamento e plantio de mudas nativas da mata: fiscalização e recuperação de áreas buscam preservar o que resta do bioma (Divulgação/Ibama e Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Avanço da ocupação

Pesquisador em várias regiões da Mata Atlântica, Danilo Zavatin declara se assustar com a realidade que encontra em algumas regiões, como no Espírito Santo.

— Fiquei impressionado, porque o Espírito Santo está tendo uma retração da Mata Atlântica muito agressiva. Nas reservas se consegue segurar bem o avanço, mas terminou a reserva, já é desmatamento puro. Na região do Espírito Santo está havendo um loteamento muito forte para construção de condomínio, que eu vejo com muita intensidade. O café também tomou conta geral. Eu fiquei impressionado que eles consigam desmatar até nos lugares quase verticalizados e plantar café nesses lugares — afirma Zavatin.

O pesquisador Renato Ramos alerta que é preciso que haja novas propostas para a Mata Atlântica e recuperação das regiões já degradadas. Ele destaca que, somente em Minas Gerais, 30% das áreas de pastagem estão em péssimas condições e nem sequer servem para manter o gado atualmente; por isso, não pode mais ser aceitável qualquer tipo de conversão para esse fim, para a agricultura ou silvicultura. 

— A principal ameaça à Mata Atlântica ainda é o desmatamento. O que a gente observa é perda de biodiversidade, uma grande parcela das espécies ameaçadas de extinção. Isso é muito emblemático. Muita coisa já se perdeu e talvez a gente não vá conseguir reconstruir por falta de dados, de informação, como as relações ecológicas. Hoje a Mata Atlântica está extremamente fragmentada, e esses fragmentos de floresta se encontram em um estado de conservação variável. 

Os pesquisadores apostam na recuperação da floresta atlântica como uma das possibilidades de ampliar estoque de carbono, principalmente com investimentos nos grandes espaços extremamente degradados.

No bioma estão nascentes de rios e importantes bacias, mas baixa cobertura vegetal põe em risco a oferta de água (Danilo Zavatin e Apremavi/Divulgação)

Fonte de água potável

É preciso lembrar ainda que na Mata Atlântica estão algumas das maiores bacias hidrográficas brasileiras, que asseguram água potável a uma grande quantidade de cidades do país. Há preocupação com a baixa cobertura vegetal de algumas bacias, o que afeta a produção de água. Levantamento da rede colaborativa MapBiomas apontou, por exemplo, que a bacia do Paraná teve a cobertura nativa reduzida de 24%, em 1990, para 19% em 2020.

— Quando falo de biodiversidade, sempre falo de água. Precisamos proteger a serra não só pelas plantas, mas também pelas nascentes. As águas límpidas, maravilhosas, saem da serra. Então olhe para a Mata Atlântica e para a recuperação da floresta, que é pensar no conjunto de serviços ecossistêmicos. E recuperar a floresta permite melhorar a condição do solo, permite melhorar a qualidade e a quantidade de água disponível e também a produtividade, na medida em que você está trazendo esse serviço de polinização e de combate à praga, ampliando toda a biodiversidade — completa Renato Ramos.

Mico-leão-da-cara-preta (espécie endêmica da mata), perereca-gladiadora e pica-pau-amarelo (Celso Margraf/ICMBio, Rubens Turin e Hector Bottai/Wikipédia)

Animais ameaçados

Bastante representativos da fauna brasileira, muitos animais da Mata Atlântica estão há décadas na lista dos ameaçados. É o caso do simbólico mico-leão-dourado, que esteve à beira da extinção quando reduzido a uma população de aproximadamente 200 indivíduos na década de 1970 e atualmente aparece na lista do Sistema de Avaliação do Risco de Extinção da Biodiversidade (Salve), do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), como “em perigo”.

Esses pequenos e simpáticos primatas de cor chamativa podem se alimentar de mais de 60 tipos de plantas e contribuir para a dispersão de suas sementes nos ambientes em que vivem. Graças a esforços de conservação da espécie, o número de exemplares atualmente é pelo menos 15 vezes maior, mas ainda não suficiente para afastá-los dos ameaçados de extinção.

Para a analista ambiental do IBGE Angelita Coelho, o estudo do instituto que apontou quase um quarto das plantas e animais do bioma em situação de ameaça é importante para se “saber onde se está e o que é preciso ser feito quando se pensa em políticas públicas”.

— Se a gente compilou fauna e flora juntos, comparando 2014 com 2022, um gestor consegue juntar num lugar só essas informações e pensar em políticas públicas para tentar melhorar nossos processos de preservação e conservação — diz Angelita.

De acordo com o sistema Salve, das atuais 6.387 espécies avaliadas (todos os vertebrados e alguns invertebrados), 561 estão em categorias de ameaça, sendo que cerca de 330 delas são endêmicas. A lista de espécies ameaçadas na fauna é 2,5 vezes maior que a da Amazônia.

São 168 na categoria “criticamente em perigo”, 205 “em perigo” e 188 em “vulnerável”. Entre eles, estão espécies como grazina-de-trindade, albatroz-gigante, pica-pau-amarelo, sapo-de-chifres, jararaca-ilhôa, bugio, mico-leão-da-cara-preta e da cara-dourada, macaco-prego, morceguinho-do-cerrado, gato-do-mato, tatu-canastra, anta, tamanduá-bandeira e onça-pintada.

— O número de espécies ameaçadas no bioma, tanto de plantas quanto animais, tem aumentado, porque a pressão sobre a floresta é enorme. Estamos perdendo floresta mesmo tendo áreas de restauração e recuperação, e para a Mata Atlântica o grau de ameaça é muito grande, o grau de espécies endêmicas é muito alto. Ainda descobrimos novas espécies, há relatos constantes de novas espécies de plantas e animais sendo descobertas, mas o nível de risco de extinção é enorme, e a gente pode estar extinguindo várias espécies sem nem saber que elas existem — afirma o diretor do SOS Mata Atlântica.

Interior da mata é ambiente ideal para muitos animais, e não as bordas, que aumentam com fragmentação da floresta

‘Efeito de borda’

Um dos principais riscos para as espécies da fauna é a destruição e degradação dos habitats. Artigo já publicado na revista científica britânica Nature apontou que o efeito de borda — quando as características de outro ambiente penetram na floresta até uma certa distância — tem impacto nos vertebrados que vivem nas florestas.

Um dos autores do estudo, o professor em Ecologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) Danilo Ribeiro explica que a maioria das espécies é afetada, e a tendência de perda de floresta em todo o mundo torna isso ainda mais preocupante.

Quando há a transformação para outro tipo de cobertura vegetal, como pasto ou campo, ocorre a diminuição da quantidade local de floresta e, consequentemente, o que era bloco único acaba sendo fragmentado. Essa fragmentação leva ao aumento do efeito de borda, ou seja, enquanto no interior da floresta os animais convivem com um ambiente mais úmido, fresco, escuro ou sombreado e mais protegido do vento, na borda eles encontram um clima mais seco, quente e com mais claridade.

E as características serão diferentes a partir da distância do limite da floresta para dentro: com uma distância de 50 metros, por exemplo, há uma realidade; com outro ponto mil metros para dentro, a situação do habitat já é outra. O estudo mostrou que o ambiente mais ideal para muitos animais está mais próximo do núcleo da floresta, e não da borda.

— Quando você vê uma área de floresta, na verdade não se tem toda aquela área como habitat para uma espécie florestal. Na Mata Atlântica, por exemplo, a maior parte ocorre em fragmentos. Então, a área real que se tem para esses organismos usarem é menor do que se vê. Tem que considerar esse impacto que acontece na borda — explica o professor Ribeiro.

Para a publicação do estudo, os pesquisadores analisaram 22 pontos distribuídos em várias regiões do mundo (entre eles, 2 na Mata Atlântica e 3 na Amazônia). Em 2017, apenas 30% dessas florestas tinham o seu núcleo a mais de mil metros da borda, o que é preocupante, já que os cientistas perceberam que, em média, os animais sofrem o efeito de borda a uma distância aproximada de 100 a 400 metros, sendo que para alguns pode chegar a um quilômetro de distância.

O professor Ribeiro também alerta para os impactos das mudanças climáticas globais nos animais:

— Porque você tem as condições para uma espécie ocorrer e, muitas vezes, só ocorre naquela determinada área. Quando você muda essas condições, aquela espécie não pode mais sobreviver naquela área e ela não ocorre mais em outro lugar, devido à perda de habitat. Então ela pode se extinguir por consequência das mudanças climáticas e da perda de habitat — explica o pesquisador da UFMS.

Praia em Ubatuba (SP): Mata Atlântica é o bioma com maior extensão de costa no país (Fernando Mo/Istockphoto)

Sistema Costeiro-Marinho

A Mata Atlântica e o Sistema Costeiro-Marinho, que também aparece na Constituição como patrimônio nacional, estão intrinsicamente ligados. De acordo com o IBGE, o bioma, que possui a maior extensão de costa no país, abriga 20% desse sistema.

Em sua parte continental, o Sistema Costeiro-Marinho não ocupa mais do que 1,7% do território nacional, e a parte terrestre representa 6,27% de sua área total. O estudo do IBGE apontou que havia, em 2022, 2.286 espécies da fauna catalogadas e que, entre elas, 48 estavam “criticamente em perigo”, 37 “em perigo” e 85 foram classificadas como “vulnerável”. Contudo, a analista ambiental do IBGE Angelita Coelho afirma que há muita dificuldade de obtenção de dados na região marinha.

— Há muito mais conhecimento sobre a parte terrestre do nosso território do que do mar. Isso indica que temos de ter mais trabalhos voltados para o mar brasileiro, para a nossa biodiversidade marítima. Estamos na Década dos Oceanos, assim declarada pela Organização das Nações Unidas (ONU), e um dos objetivos é justamente aumentar o número de pesquisas no mar, ainda bastante desconhecido no mundo todo e no Brasil também — expõe Angelita.

A fauna marítima tem sido bastante impactada pela poluição dos mares e os efeitos das mudanças climáticas. O aumento da temperatura nos oceanos já causa problemas sérios como o branqueamento dos corais.

— Temos perdido grandes quantidades de corais por conta do aumento das temperaturas na água, o que muda as concentrações de oxigênio e outros gases que há na água. Isso mata os corais. Impacta toda a cadeia de vida que depende dos corais, que seriam equivalentes à mata atlântica dos mares — diz o professor da UFMS Danilo Ribeiro.

Uma das ameaças mais contumazes às espécies é a pesca, segundo o coordenador de Avaliação do Risco de Extinção das Espécies da Fauna (Cofau) do ICMBio, Rodrigo Jorge.

— Há dois tipos de impacto da pesca: em alguns casos, temos espécies que são de interesse diretamente da pesca, que tem um valor comercial. Por outro lado, as técnicas de pesca em geral, principalmente industrial, não são seletivas, não são específicas de espécies, então se tem o problema da captura incidental — diz o coordenador.

Um grupo que é muito afetado pela captura incidental são os tubarões. Há uma proporção considerável de espécies de tubarão ameaçadas de extinção, principalmente as mais longevas.

— Essas espécies têm uma demora na maturação reprodutiva e muitas delas têm agregações reprodutivas, ou seja, se juntam na época de reprodução. E uma agregação reprodutiva acaba sendo alvo de pesca, são muitos indivíduos que são retirados e o impacto é enorme. Por mais que seja da vontade de muitos conservacionistas, a gente não pode causar uma restrição na atividade pesqueira, o que vai gerar um impacto na economia do país e na vida das pessoas. Temos que ter muitos cuidados com as medidas tomadas. Mas, por outro lado, temos sim de tomar medidas no caso de espécies enquadradas nas categorias de ameaçadas de extinção — afirma Rodrigo Jorge.  

Isso é tanto de interesse da conservação da biodiversidade das espécies do país e do mundo como de interesse da própria indústria pesqueira, segundo o coordenador do ICMBio, "porque não se quer que as espécies se extingam, que colapsem".

Parque do Caracol e Parque Nacional Aparados da Serra, no RS: governo anuncia editais de concessão para recuperação de florestas (Parque do Caracol e Leopoldo Silva/Agência Senado)

Plano nacional de ação

Uma tentativa de frear o avanço na devastação da floresta pode surgir neste ano. O governo federal promete lançar no fim do primeiro semestre de 2024 o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento da Mata Atlântica. O processo de elaboração, segundo o Ministério do Meio Ambiente e Mudanças do Clima (MMA), inclui um seminário técnico-científico sobre as causas do desmatamento no bioma, além de reuniões com parceiros que podem auxiliar no desenvolvimento da iniciativa.

O plano deverá estabelecer metas para contenção do desmatamento no bioma e prever “atividades produtivas sustentáveis, monitoramento e controle ambiental, ordenamento fundiário e territorial e instrumentos normativos e econômicos”.  A política deve seguir os moldes do plano que já foi feito para a Amazônia, em 2004 (o PPCDAm, considerado responsável pela significativa queda do desmatamento na região nos anos posteriores), e para o Cerrado, no ano passado. Os demais biomas (Pampa, Pantanal e Caatinga) também devem ser contemplados com planos específicos.

Em uma linha de retomada da proteção socioambiental e de cumprimento de metas de combate às mudanças climáticas, o Executivo também promete investir em concessões para a recuperação dos biomas. Em junho de 2023, o MMA lançou o primeiro de uma série de editais de concessão destinados à recuperação de florestas e ao plantio de espécies nativas da Mata Atlântica. A ação é uma parceria do Serviço Florestal Brasileiro (SFB) com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Na primeira etapa foram contempladas as Florestas Nacionais de Irati, no Paraná, e de Chapecó e Três Barras, ambas em Santa Catarina.

Riquezas do Brasil

O plano a ser lançado pelo governo federal vai precisar enfrentar um modelo histórico de exploração da floresta. O livro Diálogos das Grandezas do Brasil (Edições do Senado Federal, vol. 134) mostra como as espécies da Mata Atlântica foram vistas como fonte de lucro pelos colonizadores desde o princípio. Na obra, dois personagens, Brandônio e Alviano, conversam sobre a vida na colônia. Um deles, Alviano, é recém-chegado de Portugal; o outro, Brandônio, já vive no Brasil colonial desde 1583 e é um entusiasta das riquezas naturais da terra — como o pau-brasil, já explorado pelos portugueses na época. Em um trecho do livro (veja abaixo), os dois conversam sobre os usos da árvore (hoje ameaçada de extinção), e o recém-chegado se espanta ao saber do alto rendimento proporcionado pela espécie brasileira ao reino português: 


Reportagem: Paula Pimenta
Edição: Tatiana Beltrão
Infografia: Bruno Bazílio e Diego Jimenez
Pesquisa e edição de fotos: Ana Volpe
Imagem de capa: Imagem produzida com auxílio de inteligência artificial (Adobe Firefly)
Finalização: Aguinaldo de Abreu

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)