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Delito de 'vadiagem' é sinal de racismo, dizem especialistas

Ricardo Westin
Publicado em 15/9/2023

O Senado estuda retirar a vadiagem da lista de contravenções. Trata-se de um delito que existe no direito penal brasileiro desde os tempos do Império e enquadra os indivíduos que não têm trabalho e se dedicam à ociosidade.

A punição está atualmente prevista na Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei 3.688), assinada pelo presidente Getúlio Vargas em 1941, na ditadura do Estado Novo. A ociosidade pode custar aos vadios até três meses de prisão.

A existência desse delito é uma das razões pelas quais muitas pessoas, em especial as mais pobres, têm o hábito de carregar a carteira de trabalho sempre que saem à rua. Elas se sentem assim protegidas diante da eventualidade de uma batida policial.

O projeto de lei que extingue o delito de vadiagem (PL 1.212/2021) acaba de avançar no Senado. Foi aprovado no último dia 29 pela Comissão de Segurança Pública (CSP) e está agora em discussão na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Se passar no Senado, irá para a Câmara dos Deputados.

O autor do projeto é o senador Fabiano Contarato (PT-ES), que tem formação em direito e é delegado de polícia. Segundo ele, a contravenção de vadiagem deveria ter sido eliminada há muito tempo porque seu verdadeiro intuito é estimular o racismo e o ódio aos pobres.

— Os próprios termos da definição de “vadiagem” são tão abertos e genéricos que se prestam à má interpretação dos operadores do direito e autorizam uma espécie de controle social do Estado sobre os cidadãos, promovendo a desigualdade e penalizando o pobre — diz Contarato.

Jornal carioca A Noite noticia em 1929 prisão de pessoas por vadiagem na Estação D. Pedro II, atual Central do Brasil (Biblioteca Nacional Digital)

O juiz de direito Rubens Casara, que é integrante da Associação Juízes e Juízas para a Democracia (AJD), concorda com a avaliação de que a vadiagem é um delito que sempre teve a população pobre — majoritariamente negra — como alvo específico. Ele diz:

— A tipificação penal da vadiagem vem de uma época em que prevalecia o chamado direito penal do autor. Punia-se a pessoa pelo que ela era, não pelo que ela fazia. Esse direito penal foi depois aplicado em regimes como o fascista, o nazista e o stalinista. Na democracia, não há espaço para ele. Por isso, muitos juízes e doutrinadores entendem que a vadiagem como contravenção não foi recepcionada pelo ordenamento jurídico da Constituição de 1988.

Casara continua:

— Esse é um exemplo típico de controle dos indesejados, daqueles que não interessam ao poder econômico. Viver na ociosidade sendo pobre dá cadeia, mas viver na ociosidade sendo rico dá coluna social. Podemos pensar em Jorginho Guinle, uma figura cultural famosa do Brasil [cuja família construiu o hotel Copacabana Palace], que se orgulhava de jamais ter trabalhado na vida. Ele nunca responderia a um processo por vadiagem.

De acordo com historiadores, a criminalização da vadiagem começou no contexto da Revolução Industrial, no século 18, especificamente na Inglaterra. No nascimento do capitalismo, a indústria pioneira foi a têxtil de lã, e os camponeses foram as principais vítimas.

Dada a necessidade de pastagem para a criação de ovelhas, eles foram expulsos do campo. Em razão da necessidade de mão de obra abundante e barata para a indústria, foram constrangidos por leis penais ao trabalho urbano.

Aqueles que se recusassem a trabalhar na indústria eram acusados de “vagabundagem” e, como punição, poderiam ser açoitados, marcados a ferro em brasa, ter uma orelha cortada, ser transformados em escravos e até mesmo receber a pena capital e ser executados. Na época, os funcionários das fábricas não eram protegidos por direitos trabalhistas.

Pintura de Augustus Earle dos anos 1820 retrata repressão à capoeira: população negra perseguida (Reprodução)

A pesquisadora Manuela Abath, que é professora de direito na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), explica:

— No início do capitalismo, a criminalização da vadiagem serviu de instrumento disciplinador para que as pessoas aprendessem à força os hábitos e os comportamentos de proletário, de trabalhador fabril. Várias teorias no campo da criminologia entendem que as prisões modernas surgiram com esse mesmo propósito correcional de reduzir as pessoas, nas palavras do filósofo Michel Foucault, a “corpos politicamente dóceis e economicamente úteis”.

Abath afirma que o contexto do Brasil foi diferente. Dada a realidade escravista, a preocupação não foi moldar a mão de obra para a indústrica, até mesmo porque não havia fábricas relevantes no país, mas sim manter sob controle a população negra que havia obtido a alforria ou já nascido livre.

A professora diz que, na prática, o objetivo das prisões por vadiagem no Brasil não era incutir nos considerados vadios o espírito do trabalho, já que elas eram de curta duração — poucos dias ou semanas — e os detidos não passavam por nenhum curso profissionalizante.

— Com as detenções, a população negra entendia a mensagem de que ela estaria sendo sempre vigiada e poderia ser encarcerada a qualquer momento. Como os casos de vadiagem muitas vezes permaneciam nas delegacias e não chegavam à Justiça, a polícia acumulava um poder de decisão muito grande, o que criava uma espécie de soberania policial e abria espaço para abusos.

Usuários de drogas na chamada cracolândia, no centro de São Paulo (Rovena Rosa/Agência Brasil)

O desembargador substituto do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) João Marcos Buch, que nos últimos dez anos atuou em inspeções de presídios pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), diz que o delito de vadiagem buscou deixar a população negra permanentemente com medo da polícia para que não ousasse fazer nenhuma rebelião.

O grande temor da elite nacional do século 19 era a repetição no Brasil da Revolução do Haiti, ocorrida no fim do século anterior, em que escravizados e ex-escravizados massacraram a população branca, tomaram o poder, aboliram a escravidão e declararam a ilha independente da França.

Buch apresenta outro motivo para a existência do delito de vadiagem no Brasil:

— A elite brasileira sabia que a escravidão seria abolida mais cedo ou mais tarde e certamente os futuros ex-escravizados não receberiam trabalho, terra, moradia, escola, indenização. Eles se transformariam automaticamente, na visão dessa elite, numa grande massa perigosa, violenta, criminosa, sem nada a perder. Com a criminalização da vadiagem, a elite buscou garantir a sua própria proteção e conservar, não mais pela via da escravidão, mas por meio da lei, o controle sobre a população negra.

A vadiagem foi um crime previsto no Código Criminal de 1830, o único do Império, e no Código Penal de 1890, o primeiro da República. Deixou de ser crime em 1940, quando Vargas assinou o Código Penal que está em vigor até hoje. A chance de enterrar definitivamente a vadiagem como delito, porém, foi perdida. Logo no ano seguinte, foi resgatada e incluída na Lei de Contravenções Penais.

Na comparação com os crimes, as contravenções penais são delitos considerados menos graves. Por isso, os contraventores recebem punições mais brandas que os criminosos.

Código Criminal de 1830, no Império, traz vadiagem como crime (Biblioteca do Senado)

A historiadora Neuma Brilhante, que dá aula na Universidade de Brasília (UnB) e pesquisa o Brasil imperial, lembra que a vadiagem abria ainda mais um caminho para o controle das pessoas negras:

— O alistamento militar no Brasil, que era forçado, também tinha o papel de dar um destino aos grupos sociais que não eram considerados úteis. A equipe responsável pelo alistamento, ao chegar a determinada localidade, dava um prazo aos moradores para que se alistassem. Como o serviço militar era pesado e violento, era comum que ninguém ou quase ninguém aparecesse. A equipe, então, saía prendendo aqueles que encontrassem pelo caminho, incluindo bêbados e indivíduos dormindo na rua. Os “vadios” eram um grupo particularmente fácil e conveniente de ser recrutado.

De acordo com Brilhante, as pessoas detidas por vadiagem nem sempre eram realmente vadias. Muitas tinham trabalho, mas não conseguiam comprová-lo. Podiam trabalhar, por exemplo, num pequeno roçado no quintal de casa. Para que fossem trancafiadas, bastava que estivessem perambulando por um local onde não eram desejadas ou num horário considerado inadequado pelos policiais.

A historiadora explica que nenhuma das Constituições brasileiras autorizava a discriminação das pessoas por motivo racial. Até mesmo a Constituição do Império, de 1824, que vigorou durante o período escravista, estabelecia que todos eram iguais perante a lei. No entanto, segundo a professora, havia brechas que tornavam determinadas leis na prática racistas:

— O que se criavam eram leis que tinham como objetivo aberto reprimir comportamentos da população pobre. Como ser pobre, no Brasil, coincidia com ser negro, as leis automaticamente acabavam tendo um viés racista. Já tivemos leis que criminalizavam a mendicância, a capoeira e a "magia”, que se referia às religiões de matriz africana. Isso mostra que inexistência de leis raciais não significa inexistência de racismo.

A mendicância também aparecia na Lei das Contravenções Penais de 1941, no mesmo capítulo da vadiagem. Ela foi retirada no ordenamento jurídico em 2009, por meio de um projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional.

Senador Fabiano Contarato, autor do projeto de lei que retira a vadiagem da Lei das Contravenções Penais (Pedro França/Agência Senado)

De acordo com os especialistas entrevistados pela Agência Senado, faz alguns anos que o Poder Judiciário não recebe e julga ações relativas à vadiagem, principalmente por contrariar os princípios da Constituição de 1988.

O desembargador João Marcos Buch, do TJ-SC, ressalva que, apesar de não aparecer mais na Justiça, a vadiagem ainda faz parte do dia a dia da polícia:

— Na ponta, esse dispositivo da lei pode ser empregado como um argumento extra para legitimar intervenções policiais que vitimam as populações negras e vulnerabilizadas.

Os especialistas também avaliam que a revogação da vadiagem como contravenção penal não melhorará a situação do sistema carcerário brasileiro, superlotado e ocupado majoritariamente por negros.

O juiz Rubens Casara, da AJD, afirma que, mesmo assim, a revogação é necessária e urgente:

— Será uma medida simbólica. Isso não é pouco, já que a realidade também é construída a partir do simbólico e do imaginário. Essa mudança legal será importante para ajudar a enfim criar a percepção social de que o encarceramento em massa de populações previamente selecionadas a partir de visões preconceituosas não é aceitável.

Operação militar de combate a traficantes de drogas na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, em 2017 (Fernando Frazão/Agência Brasil)

De acordo com a professora Manuela Abath, da UFPE, a função não declarada de controlar a população negra, que no passado coube à criminalização da vadiagem, cabe hoje, na prática, à lei que reprime o tráfico de drogas:

— É claro que os bens jurídicos protegidos pelas duas leis são diferentes, mas na dinâmica policial ambas as normas permitem abordagens aleatórias e o controle da população de comunidades pobres. Vemos muitas operações sem critério, deflagradas a partir de denúncias anônimas ou simples suspeitas policiais. Antes, vagar era crime. Hoje, crime é viver numa zona dominada pelo tráfico de drogas.

A historiadora Neuma Brilhante, da UnB, acrescenta que a vadiagem como crime ou contravenção deixou marcas na sociedade brasileira que, tão profundas, não poderão ser apagadas com facilidade:

— A polícia e a estatística criminal no Brasil começaram com um vício de origem. A população negra foi a mais vigiada desde o início, pois era escravizada. Por essa razão, as estatísticas que se produziram foram majoritariamente sobre os negros. Assim se criou e se reforçou a ideia de que são realmente degenerados e perigosos. Não porque de fato eles cometam mais crimes, mas porque são e foram mais observados e controlados. Esse estigma é presente até hoje.


Reportagem: Ricardo Westin
Edição: Nelson Oliveira
Pesquisa de fotos: Ana Volpe e Bernardo Ururahy
Edição Multimídia: Bernardo Ururahy
Montagem: Aguinaldo Abreu
Foto de capa: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)