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Racismo religioso cresce no país, prejudica negros e corrói democracia
É provável que as religiões de matriz africana nunca tenham aparecido tanto na imprensa brasileira quanto nas últimas três semanas. As notícias, porém, foram todas negativas.
Uma adolescente de 14 anos sofreu a humilhação de ser barrada na entrada da escola, em Sobradinho (DF), porque usava um colar ritualístico da umbanda. A modelo Letticia Muniz, por sua vez, foi xingada nas redes sociais e perdeu 5 mil seguidores depois de postar um vídeo do seu batismo na mesma religião.
A mãe de uma criança de um colégio de Salvador escreveu diversos ataques às religiões afro-brasileiras num exemplar do livro infantil Amoras, do rapper Emicida, que passou de mão em mão na sala de aula. Nas páginas que tratam dos orixás, ela acusou o autor de disseminar “blasfêmia” e “ideologia” de “religiões anticristãs”.
Na notícia mais rumorosa de todas, três participantes brancos do programa Big Brother Brasil, da TV Globo, ficaram aterrorizados ao ver o colega negro Fred Nicácio fazendo, antes de dormir e em silêncio, as orações do culto de Ifá. Um deles avisou que abandonaria o reality show caso Nicácio insistisse nas rezas.
Segundo especialistas ouvidos pela Agência Senado, esses quatro exemplos recentes de comportamento atendem pelo mesmo nome: racismo religioso. Trata-se do ataque a pessoas negras pelo simples fato de seguirem a umbanda, o culto de Ifá ou qualquer outra religião afro-brasileira, como o candomblé, o batuque, a encantaria, a jurema, o nagô-vodun, o tambor de Mina, o terecó, o xangô e o xambá.
A violência pode se materializar de maneiras ainda mais explícitas e cruéis. Não são raros os casos de pessoas insultadas e atacadas na rua e terreiros fechados pela hostilidade da vizinhança, expulsos de favelas pelo fuzil dos narcotraficantes ou milicianos e até reduzidos a cinzas por incêndios criminosos.
O racismo religioso continuará protagonizando o noticiário nos próximos dias, já que 21 de março acaba de se transformar, por força de lei (Lei 14.519), no Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé. A ideia é que a data comemorativa motive a cada ano debates, esclarecimentos e propostas de solução.
Os pesquisadores que se debruçam sobre o racismo religioso explicam que ele é um dos tentáculos do racismo estrutural, a complexa engrenagem política, econômica e social que faz dos negros brasileiros uma minoria em termos de poder, embora sejam a maioria numérica (56% da população nacional).
É por força do racismo estrutural que esse grupo tem a renda mais baixa, ocupa os piores postos de trabalho, assume poucos cargos políticos, é a maior vítima da violência, ocupa grande parte das vagas dos presídios, tem menos escolaridade, mora nos bairros mais precários, morre mais cedo etc.
Mas de que forma chamar alguém pejorativamente de “macumbeiro” ou agir sutil ou explicitamente para que sua religião desapareça ajuda a prender os negros como um todo aos degraus mais baixos da sociedade? Para responder, o babalorixá (pai de santo) Sidnei Barreto Nogueira, doutor em linguística e semiótica e finalista do Prêmio Jabuti com o livro Intolerância Religiosa (Editora Jandaíra), recorre à história do Brasil:
— As origens do racismo estão no período colonial. Para justificar a escravização e a transferência forçada dos africanos para o Brasil, os europeus criaram uma hierarquia no mundo. Tudo que caracterizasse os pretos seria inferior, da cor da pele à organização social, do comportamento à produção cultural. Foi uma forma deliberada de desumanizá-los, coisificá-los. Sendo reles coisas, os pretos puderam ser escravizados à vontade, sem que os brancos carregassem o peso da culpa. Como parte desse processo, também as crenças foram hierarquizadas. A religião dos pretos, assim, não passaria de magia, superstição, idolatria, bruxaria.
De acordo com Nogueira, o sincretismo religioso típico dos escravizados não foi algo natural. Tratou-se, na realidade, de uma estratégia de sobrevivência cultural. Eles decidiram inserir elementos da crença católica nas religiões africanas de modo a não serem reprimidos e, ao mesmo tempo, manterem algo de suas culturas ancestrais. É por isso que a umbanda e o candomblé, embora tenham inúmeras características africanas, não existem na África.
O babalorixá explica que a Lei Áurea, de 1888, acabou com a separação do Brasil entre senhores e escravizados, mas não foi suficiente para eliminar a hierarquização racial:
— O racismo estrutural se adaptou aos novos tempos. Os pretos continuaram sendo tratados como não humanos e sustentando aquilo que hoje se conhece como “privilégio branco”. Livraram-se dos grilhões, mas não da exploração. É por essa razão que muita gente, deliberada ou inconscientemente, enxerga as religiões de matriz africana como inferiores às religiões hegemônicas. É isso que explica hoje o racismo religioso.
A historiadora Valquíria Velasco, que nos próximos dias defenderá uma tese doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) sobre o racismo religioso e oferecerá um curso on-line na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) sobre como combatê-lo, explica que a grande acusação que recai sobre as religiões de matriz africana é a de que idolatram o demônio e praticam o mal:
— A demonização dessas religiões é algo que vem desde os tempos da colonização. O estigma colou. Na realidade, não há nada mais manipulador e falso. O demônio é uma figura que não existe nas religiões afro-brasileiras. Da mesma forma que inúmeras outras religiões, incluindo a católica, as umbandas e os candomblés acreditam em Deus, são monoteístas, pregam o amor, defendem valores morais e sociais, contam com orações, cânticos, danças e oferendas e têm sacerdotes que vestem roupas especiais e celebram cultos.
Há, contudo, uma diferença importante. De acordo com a historiadora, as religiões de matriz africana não se julgam superiores, são tolerantes à diferença, não acusam as demais crenças de serem erradas e não têm o arrebanhamento do maior número possível de novos seguidores como missão.
Em sua dissertação de mestrado, também produzida na UFRJ, Velasco estudou a perseguição religiosa nas primeiras décadas da República brasileira. Ela encontrou em jornais e inquéritos policiais da época inúmeros relatos sobre terreiros que foram fechados e sobre sacerdotes e seguidores que foram mandados para trás das grades.
O Código Penal de 1890 enquadrava quem praticava “o espiritismo, a magia e seus sortilégios” e usava de “talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou amor”, com pena de multa e até seis meses de prisão. Era o que bastava para transformar pais e mães de santo em bandidos.
— No início do século passado, não era barato tirar fotografia. Mesmo assim, sempre que havia uma batida policial num terreiro, os jornais faziam questão de publicar alguma foto daquelas pessoas com roupas e instrumentos ritualísticos — continua a historiadora. — Tanto o poder público quanto a imprensa ajudaram a reforçar o estigma, que sobreviveu ao tempo. Hoje em dia, quando um negro aparece vestido de branco, ele é imediatamente tachado de “macumbeiro”. Quando é um sujeito de pele clara, é visto como médico.
Quando se paramentam assim e saem em público, os religiosos costumam sentir uma mistura de orgulho e medo. Em 2015, uma menina de 11 anos foi parar no hospital depois de levar uma pedrada na cabeça quando caminhava na rua, no bairro da Vila da Penha, no Rio de Janeiro. O ataque foi motivado por sua vestimenta: um vestido longo branco, um turbante da mesma cor e fios de contas no pescoço e nos braços. A jovem saía de um terreiro de candomblé. Os agressores, de um culto evangélico. Era domingo. Antes de apedrejá-la, eles levantaram suas bíblias, bradaram “Jesus está voltando” e a chamaram de “diabo”.
Valquíria Velasco discorda de quem tenta justificar o racismo religioso alegando, como atenuante, que os brasileiros têm “medo do desconhecido”. A historiadora compara:
— Quando viajam para o exterior, os brasileiros adoram tirar fotos de mesquitas, sinagogas e templos xintoístas ou budistas. Ficam maravilhados. A verdade é que essas religiões também são desconhecidas da maioria dos brasileiros, mas não provocam medo. Isso significa que no Brasil, quando se trata das religiões de matriz africana, o que de fato desperta aversão e ódio é, sem dúvida, a pele preta dos devotos.
Ela entende que a perseguição religiosa vem sendo mais discutida nos últimos tempos no Brasil por causa da reação dos movimentos negros ao governo Jair Bolsonaro, que negava a existência de discriminação racial no país, e em razão dos debates internacionais em torno do racismo estrutural levantados pelo assassinato do negro americano George Floyd em 2020. Outro fator importante, segundo a historiadora, foi a adoção da Lei de Cotas (Lei 12.711) em 2012, que levou mais negros às universidades públicas e, por tabela, ampliou os estudos científicos sobre o racismo.
De acordo com o Censo de 2010, apenas 0,3% da população brasileira diz seguir alguma religião de matriz africana. Uma pesquisa mais recente, feita pelo Datafolha em 2020, encontrou um índice maior, ainda assim baixo, de 2%. Nos próximos meses, os resultados do Censo de 2022 serão divulgados com os dados mais atuais.
Para os pesquisadores da questão, não importa o número apresentado pelas pesquisas, ele sempre será inferior à realidade. Justamente por temer o racismo religioso e suas violências, muitos negros adeptos das religiões afro-brasileiras preferem não se identificar como tais. Além disso, outros tantos têm vontade de seguir a crença de seus antepassados, mas decidem não fazê-lo em nome da própria segurança.
Um levantamento realizado pela instituição Ilê Omolu Oxum e pela Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro) com 255 pais e mães de santo em todo o país em 2022 mostrou que 60% dos terreiros sofreram pelo menos um ataque nos dois anos anteriores. Além disso, 80% dos líderes entrevistados relataram que pessoas de suas comunidades já sofreram algum tipo de violência motivada por racismo religioso.
Em 2015, no Paranoá (DF), o terreiro de candomblé conduzido pela ialorixá (mãe de santo) Mãe Baiana foi devastado por um incêndio criminoso. Ela, que hoje tem 60 anos, lembra que até mesmo os representantes do poder público que deveriam ajudá-la agiram de forma racista na ocasião:
— Quando um dos bombeiros soube que era um terreiro, ele logo anunciou que a causa do fogo foi um curto-circuito. Nem investigação fez. Esse oficial era evangélico. Eu sei disso porque ele citou Jesus várias vezes e conversou comigo mantendo distância. Toda vez que me aproximava, ele dava um passo para trás, como se eu fosse um bicho. Também tive problemas com a polícia. Uma delegacia não quis fazer o boletim de ocorrência alegando que o terreiro não ficava na sua área e me mandou para outra delegacia, que também me dispensou usando o mesmo argumento. Precisei agir com firmeza para enfim ser atendida.
O terreiro de Mãe Baiana foi reconstruído com dinheiro doado pelos seus 40 filhos de santo e por outros terreiros. Mesmo em situações corriqueiras, o poder público evita o local. Ela conta que os agentes de saúde encarregados de vistoriar os imóveis em busca de focos do mosquito Aedes aegypti simplesmente ignoram o terreiro porque imaginam que lá vão “dar de cara com o capeta”.
— Eu sou obrigada a morar no terreiro — ela continua. — Preciso estar aqui o tempo todo. Sei que, se eu sair e deixá-lo sozinho por dez minutos, o terreiro vai estar apedrejado quando eu voltar. É difícil entender por que há tanta perseguição, já que somos uma religião que só prega o amor e a paz. Se fôssemos uma religião de brancos, tenho certeza que não se incomodariam conosco.
A antropóloga Ana Paula Miranda, que é professora na Universidade Federal Fluminense (UFF) e há 15 anos estuda o ataque às religiões de matriz africana, compara o racismo religioso a um iceberg, do qual a pequena ponta que emerge da água e pode ser vista a olho nu é o preconceito religioso e a grande massa que fica submersa e é não pode ser enxergada com facilidade é o racismo.
— No ataque às religiões de matriz africana, mesmo que o agressor não explicite o seu racismo, ele está lá. À primeira vista, a motivação é religiosa, mas o que está por trás é a discriminação racial. Quem pratica o racismo religioso, portanto, de alguma forma age para que o outro não exista. Nas discussões internacionais, entende-se esse tipo de ação como crime de ódio, uma classificação que surgiu motivada pelo Holocausto judaico.
Atualmente, como parte de suas pesquisas, ela está viajando pelo país para visitar terreiros de dez capitais. Nos arredores de Brasília, o que mais lhe chamou a atenção foi a violência policial em 2021, quando vários terreiros foram revirados e até depredados na caçada do serial killer Lázaro Barbosa. Os policiais suspeitavam que ele praticasse “magia negra” e, por preconceito, associaram-no automaticamente às religiões afro-brasileiras.
Miranda lembra que a expressão que antes se usava era “intolerância religiosa” e que só bem recentemente, em meados da década de 2010, os pesquisadores se deram conta de que “racismo religioso” seria o termo mais apropriado.
— Quando digo que eu “tolero” uma religião, é como se eu agisse com benevolência e permitisse a existência de algo que não deveria ou mereceria existir. E “tolerar”, do ponto de vista político, não implica a garantia de direitos. Ao mesmo tempo, “intolerância religiosa” é um eufemismo para um problema grave, uma forma de suavizar ou até esconder o racismo. A história do Brasil foi construída em cima da negação do racismo, incluindo a mentirosa ideia de que somos uma democracia racial. É por essa razão que por muito tempo não se conseguiu enxergar o racismo religioso com clareza.
De acordo com a antropóloga da UFF, a expressão “intolerância religiosa” pode ser utilizada para descrever ataques às religiões cristãs, por exemplo, cujos seguidores não se caracterizam por pertencer a nenhum grupo étnico-racial específico.
Ana Paula Miranda acrescenta que a criação de um termo para descrever uma prática que existiu por muito tempo sem nome é importante também para o Estado, que enfim consegue mapear o problema e destinar-lhe políticas públicas específicas. Foi o mesmo raciocínio que levou à adoção de termos como “trabalho análogo à escravidão”, “homofobia” e “feminicídio”.
De acordo com os especialistas, o combate ao racismo religioso precisa ser dividido em três frentes. A primeira frente é a da educação, a partir das escolas. Deve-se ensinar às crianças o respeito às diferenças e também a história da África e a cultura afro-brasileira, de modo que essas religiões sejam conhecidas e desmistificadas. Isso já é obrigatório nos colégios desde 2003 (Lei 10.639).
A segunda frente é a da representatividade. Os cultos de matriz africana precisam aparecer no noticiário, nas novelas e nos filmes com mais frequência e sem carga negativa, da mesma forma que aparecem as missas e as cerimônias católicas de casamento, por exemplo.
A terceira frente é a jurídica. Pela legislação brasileira, o racismo é crime e como tal deve ser sempre tratado. No início deste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou uma lei que equipara a injúria racial ao crime de racismo e cita especificamente o racismo religioso (Lei 14.532). O criminoso pode ser condenado a cinco anos de prisão.
Tanto a lei que transformou o 21 de março no Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas quanto a que tornou mais dura a repressão ao racismo religioso foram aprovadas pelo Congresso Nacional. No Senado, o relator dos dois projetos de lei foi o senador Paulo Paim (PT-RS), defensor histórico da causa negra.
— Aprovar e reconhecer a importância de leis como essas é uma forma de educar e orientar a nossa sociedade para um convívio ecumênico. É disso que precisamos. Não podemos tolerar mais o terrorismo religioso — diz o senador.
Paim aponta como importante na luta antirracista a recente criação do Ministério da Igualdade Racial, encabeçado por Anniele Franco. O novo ministério anunciou que criará na semana que vem, no Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas, um grupo de trabalho com representantes do governo, das religiões e de entidades da sociedade civil dedicado exclusivamente a elaborar políticas públicas de combate ao racismo religioso.
Os estudiosos advertem que, quando o racismo religioso é tolerado e prevalece, a democracia se enfraquece e corre o risco de ruir.
— Às vezes me acusam de ser militante com o intuito de proteger a minha própria religião. Isso não é verdade — diz o babalorixá Sidnei Nogueira. — O que eu defendo é a liberdade de religião que está prevista na Constituição. Os brasileiros precisam poder exercer o direito de ter qualquer crença ou até mesmo crença nenhuma. Não podem deixar de professar uma fé por causa do medo. A religião não deveria ser um marcador de exclusão social.
— Quando não age contra o racismo religioso, o Estado contribui para que certas religiões sejam perseguidas e outras sejam impostas às pessoas. Há quem justifique isso alegando que a democracia é o regime em que a maioria manda. Isso é uma deturpação. Na realidade, a maioria apenas elege um grupo político, que precisa governar também para a minoria e garantir os seus direitos. Isso, sim, é democracia — acrescenta a antropóloga Ana Paula Miranda.
— A sociedade que é racista e não abre espaço para a diversidade é necessariamente violenta. Os indivíduos que assistem passivos à perseguição de minorias podem imaginar que aquilo não os afeta. Esse ambiente, no entanto, torna-se propício à perseguição de vários outros grupos no futuro, e inclusive aqueles que se acham blindados podem de uma hora para a hora se tornar o novo alvo. Numa sociedade excludente, todos são potencialmente vulneráveis — conclui a historiadora Valquíria Velasco.