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Embora seja uma planta de uso milenar e proscrita em vários países há bem pouco tempo, em termos históricos, a Cannabis está enredada na sua dupla condição de droga psicoativa, por conta da qual recebe vários nomes — sendo maconha o mais popular deles no Brasil — e planta com propriedades medicinais. Pesquisas sobre o tema têm avançado em todo o mundo, mas no Brasil ainda há entraves para a regulamentação.
A criminalização da maconha no Brasil data do início do século 19, mas foi na primeira metade do século 20 que aqui e em outros países se intensificou a repressão ao consumo da droga. Essa atitude sistemática é atribuída pelos ativistas de seu uso a tentativas de controle sobre populações marginalizadas, como os negros, e a interesses agrícolas e industriais nos campos farmacêutico, têxtil e de celulose. Uma de suas variedades, o cânhamo, serve à fabricação de vários produtos: tecidos, papel e até suplementos alimentares.
A solução que alguns países vêm adotando para fugir a esse dilema é considerar as variedades da planta como insumo farmacêutico e industrial, distinguindo-as do caráter de entorpecentes que possam ter em outros usos. No caso do cânhamo, isso se torna mais fácil, uma vez que essa variedade costuma apresentar teores muito baixos de tetrahidrocanabinol (THC), o temido princípio que gera embriaguez.
Foi o que fez, por exemplo, o Estado de Israel, país no qual a planta passou a ser estudada com afinco a partir dos anos 60 do século passado, levando às primeiras descobertas em torno dos seus princípios ativos, ou canabinoides, entre os quais, o THC.
Em 2016, ao constatar aumento no uso medicinal de Cannabis, tanto em seu território, como ao redor do mundo, assim como progresso significativo na pesquisa científica da planta Cannabis e do sistema endocanabinoide presente no cérebro, as autoridades israelenses decidiram tratar as atividades médicas e pesquisas com a utilização da Cannabis por meio de uma política pública de saúde.
— Embora a Cannabis não seja registrada como medicamento, o Ministério da Saúde de Israel acredita que seus produtos podem ser benéficos no tratamento de certas condições médicas. Mesmo contendo substâncias definidas como estupefacientes, que requerem controle e regulamentação para garantir a saúde e a segurança do público, a Cannabis deve ser tratada, na medida do possível, da mesma forma que um medicamento ou medicamento registrado — explica o diretor da Agência Israelense para a Cannabis Medicinal (IMCA, na sigla em Inglês), Yuval Landschaft.
A criação da IMCA permitiu a Israel ter um foco muito claro para as complexas interações que surgem quando é preciso lidar com substâncias ilegais em certas práticas, mas que se mostram promissoras para a ciência e a medicina.
— O uso de Cannabis para fins médicos é um campo dinâmico e em desenvolvimento e a regulamentação de seu uso medicinal é um processo contínuo em muitos países — prossegue Landschaft. Segundo ele, em qualquer programa relativo à utilização da Cannabis para fins médicos, o Estado de Israel está vinculado às disposições da Convenção Única Internacional sobre Drogas Narcóticas, de 1961, e à observância rigorosa das disposições do decreto e regulamentos da Lei das Drogas Perigosas de 1973. As questões de “legalização ou descriminalização” da Cannabis para uso pessoal não médico ficaram de fora da reforma e são de responsabilidade do parlamento israelense, conforme o diretor da IMCA.
O regulamento da Cannabis medicinal estabeleceu como um dos princípios a garantia da oferta de produtos padronizados, reproduzíveis em concentrações constantes e controladas de ingredientes farmacológicos ativos (IFAs), permitindo aos médicos prescrevê-los com segurança e ao paciente obtê-los nas farmácias.
Para tornar isso possível, o governo publicou a primeira edição da "cannacopeia israelense", que constitui a literatura regulatória sobre as atividades de Cannabis medicinal em Israel, incluindo os procedimentos de licenciamento (Israeli Medical Cannabis), os procedimentos de qualidade e segurança de Boas Práticas e um “livro verde” com o método clínico de fornecimento de tratamentos de Cannabis medicinal.
Desse modo, a IMCA passou a atuar simultaneamente em vários eixos para promover a reforma da atividade médica relacionada à Cannabis e “criar um mercado bem regulamentado para uso médico e em pesquisa”, nas palavras de Landschaft:
— O país já alcançou muitos objetivos e marcos no cumprimento desse propósito e é atualmente um dos principais países do mundo na esfera da Cannabis para fins médicos — afirmou o dirigente.
Em janeiro de 2017, foi inaugurado o primeiro seminário de treinamento médico, durante o qual os profissionais receberam os conhecimentos científicos e clínicos básicos existentes e foram apresentados à metodologia para a prestação de cuidados ao lidarem com a Cannabis medicinal.
— O médico assistente deve determinar o tipo de produto apropriado e ajustar a potência, via de administração, quantidade mensal, dosagem diária e consumo — esclarece Landschaft.
Em 2020, já havia operações clínicas e industriais ativas e em grande escala, mais de 100 mil pacientes elegíveis e autorizados, médicos qualificados para prescrever e tratar com Cannabis medicinal, fazendas e unidades fabris relacionadas, organismos de certificação para boas práticas, laboratórios de controle de qualidade e sistemas de distribuição, além de farmácias registradas para dispensar medicamentos canábicos. Sem contar as centenas de pedidos de pesquisa aprovados em todos os níveis científicos.
Quanto ao campo da pesquisa, o Ministério da Saúde israelense entende que “falta conhecimento científico sobre o mecanismo de ação da Cannabis e seus constituintes no corpo humano e que há pouca medicina baseada em evidências no campo”. A razão, de acordo com a IMCA, é que “a pesquisa de Cannabis é proibida em muitos países ao redor do mundo devido ao seu status legal”.
— Eis porque o ministério é a favor da promoção da pesquisa e do avanço do conhecimento científico em todos os níveis, desde a ciência das plantas até os ensaios clínicos — observa Landschaft.
Para a psiquiatra Eliane Nunes, que prescreve compostos canábicos a seus pacientes em seu consultório em São Paulo, o Brasil está amarrado a uma visão “racialista” herdada da chamada “Lei do Pito de Pango”, código de posturas baixado pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro em 1830, que proibia o consumo e a comercialização de cigarros de maconha (pitos de pango), sob pena de cadeia para escravos e demais usuários e multa para os comerciantes.
Diretora da Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis Sativa (Sbec), Eliane colabora em programas educacionais de plantio e extração de óleo iniciados em companhia do Padre Ticão (1953-2021) e agora encampados pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ticão chegou a ser ameaçado em 2019 por grupos de extremistas insatisfeitos com sua atuação a favor de grupos de oprimidos e feministas.
A diretora da Sbec diz que quase 200 anos depois de uma lei do tempo da escravidão, o país se mantém dentro de um modelo repressivo que, ao contrário de equacionar a questão das drogas, estimula o consumo ilegal, inclusive por jovens, manda para a cadeia acusados de pequenos delitos e vê o envolvimento de integrantes das forças de segurança no tráfico.
— A verdade é que nós somos uma narconação e não é por causa da Cannabis.
Ítalo Alencar, advogado Criminal e ativista pró-Cannabis no Ceará, diz que parte substancial dos problemas vividos pela sociedade, principalmente por quem precisa do composto é causado pela Lei de Drogas (11.343/2006), que faz quinze anos no dia 23 de agosto, mas nunca foi adequadamente regulamentada.
O Decreto 5.912/2006 prevê que as atividades de cultivo de plantas para fins de extração de substâncias com fins medicinais devem ser regulamentadas pelo Ministério da Saúde, o que não foi feito, segundo o advogado. Tanto ele quanto Sheila Geriz, usuária de compostos de Cannabis e coordenadora da Liga Canábica da Paraíba e da Federação das Associações de Cannabis Terapêutica (Fact-Brasil), entendem o plantio e a extração de óleo da Cannabis como um “ato de desobediência civil” apoiado no direito constitucional à saúde.
Em comparação com o quadro brasileiro de descompasso entre realidade e legislação e muita incerteza jurídica, Alencar cita entre os países que vêm evoluindo em termos de legislação o Uruguai, a Colômbia, a Argentina, o México, o Canadá e os Estados Unidos (em quase todo o território) a África do Sul e a Espanha.
Os entraves à pesquisa e ao cultivo da Cannabis são duramente criticados pelo médico especialista em dor Gustavo Resende Trianni, de Belo Horizonte. Ele classifica como “grande” o grau de confiança nos estudos disponíveis, ainda que haja necessidade de se avançar nesse terreno.
— São estudos, na sua maior parte internacionais, robustos em termos de dados, com respostas muito coerentes. A resposta dos pacientes é fantástica e não há grandes efeitos colaterais. Uso para tratar epilepsia, dores crônicas, em associação com outros medicamentos, ansiedade e as chamadas síndromes demenciais (Alzheimer, por exemplo) e Parkinson. São muito interessantes também no caso dos pacientes idosos, que já tomam um grande número de remédios. — testemunha ele.
Trianni é favorável a um aproveitamento amplo das plantas:
— Ainda bem que desfizeram esse mito do CBD santificado e do THC demonizado. Ambas as substâncias são muito boas. No Brasil, o Estado não está abraçando essa causa. Vivemos em uma sociedade conservadora, na qual os políticos temem a perda de votos se aprovarem algo pró-Cannabis.
O médico ressalva que, como em qualquer medicação, o profissional de saúde deve estar atento a reações e calibrar a dosagem ou mesmo suspendê-la diante de quadros específicos:
— Em geral, os tratamentos envolvem o uso contínuo dos remédios, mas eventualmente se pode reduzir as doses. As pessoas que melhoram da fibromialgia sentem menos dor e podem voltar a praticar exercícios, o que acaba melhorando as dores, podendo ocorrer a mudança da medicação. Os pacientes pedem para tirar menos os remédios à base de Cannabis e mais aqueles agressivos, que podem causar sonolência. Mas há também casos em que os produtos de Cannabis de espectro amplo, que contém outros canabinoides, além do CBD, podem gerar algum efeito psicotrópico que incomoda alguns pacientes, o que nos leva a trocar a medicação.
Eliane Nunes entende que dúvidas sobre os efeitos psicotrópicos só vão ser sanadas, tanto para a sociedade, quanto para a classe médica, quando as pesquisas forem ampliadas e difundidas. Segundo ela, muitos estudos mostram que a Cannabis não é necessariamente prejudicial ao aprendizado, mas isso não é verdade em qualquer tipo de uso, importando a intensidade e a frequência.
No caso dos adolescentes, motivo de grande preocupação geralmente relacionada ao temor de psicoses, a psiquiatra diz que até o amadurecimento, os seres humanos experimentam uma profusão de neurônios, que precisam de “poda”.
— Se você usa a Cannabis na época da poda, pode interferir, sim [na atividade mental]. Mas para tirar a Cannabis dos adolescentes, temos que regulamentar, porque o ser humano sempre vai querer usar drogas. Não pode usar a ciência para proibir. É preciso discutir a cadeia de canabinoides. Na falta de regulamentação, quem ganha é o tráfico. Veja que na favela o Estado não chega. Agora, o argumento de que o Brasil não daria conta, de que não é organizado, não vale. Nós somos desorganizados para tudo. Se for por aí, teremos que fechar o Brasil.
Ela argumenta ainda que há receptores cerebrais semelhantes aos canabinoides no cérebro que podem se beneficiar bastante da Cannabis.
Machado de Assis (1839-1908) tinha epilepsia. Preconceito agravou sofrimento de uma doença sem tratamento à épocaO sofrimento de milhares de brasileiros às voltas com doença crônicas de difícil tratamento pode ser comparado ao que era vivido nos tempos em que a epilepsia — hoje combatida com terapias diversas, algumas à base de Cannabis — era um mal sem cura. Dela sofreu aquele que é considerado por vários críticos o maior escritor brasileiro e um dos gênios da literatura universal: Machado de Assis. Segundo o neurologista e estudioso Carlos Guerreiro, o escritor relatava ter tido crises epilépticas na infância, chamadas por ele de “coisas esquisitas”, “fenômenos nervosos”, “ausências” ou “minha doença”. No trabalho A Epilepsia, de Machado de Assis, ele reproduz um relato do contemporâneo Carlos de Laet sobre uma das crises que atingiu um Machado já idoso: “...quando de nós se acercou o Machado e dirigiu-me palavras em que não percebi nexo. Encarei-o surpreso e achei-lhe demudada a fisionomia. Sabendo que de tempos em tempos o salteavam incômodos nervosos, despedi-me do outro cavalheiro, dei o braço ao amigo enfermo, fi-lo tomar um cordial na mais próxima farmácia e só o deixei no bonde das Laranjeiras, quando o vi de todo restabelecido, a proibir-me, que o acompanhasse até casa”. Mário de Alencar, outro contemporâneo do autor, também escreveu, segundo Guerreiro: “a preocupação com a saúde era freqüente: ou havia os efeitos de um acesso do mal terrível ou a iminência dele. Falava-me como a seu próprio médico, confiando-me tudo, consultando-me sobre minúcias da moléstia e o que havia de dizer ao seu facultativo”. O diagnóstico de Carlos Guerreiro é que Machado apresentava “epilepsia localizada sintomática com crises parciais complexas secundariamente generalizadas, de etiologia desconhecida”. Segundo o neurologista, as crises tiveram início na infância, diminuíram na adolescência e reincidiram a partir dos 30 anos, tornando-se mais frequentes na velhice. Machado também apresentou episódios de depressão, que se acentuaram na última década de vida, afirma. “Em nossa opinião, a maior consequência da epilepsia de Machado de Assis foi o sofrimento psicológico devido ao preconceito vigente. A despeito disto, Machado foi capaz de mostrar toda a sua genialidade, que ainda é atual e cada vez mais reconhecida universalmente”, diz Guerreiro em seu estudo. |
Para o neurocientista, as discussões sobre uso e aproveitamento científico e médico da Cannabis e outras drogas estão longe de ser fundamentadas na ciência e na razão. Na opinião dele, questões como o abuso de substâncias entorpecentes devem ser tratadas “por meio de iniciativas baseadas na educação, e não na repressão”, com maiores chances de sucesso.
Agência Senado — Por que é tão polêmica a utilização de insumos como a Cannabis e outros de natureza psicoativa em pesquisas e na fabricação de medicamentos? Os riscos à saúde mental das pessoas e ao padrão comportamental esperado justifica os receios de parcela da população e líderes políticos?
Claudio Queiroz — Sou um neurofisiologista (pesquisador que estuda o funcionamento do sistema nervoso) e, portanto, talvez não seja a melhor pessoa para discutir questões sociais associadas ao uso de drogas. Entretanto, no meu entendimento, a polêmica decorre da ignorância a respeito do que são as drogas, sobre como elas agem no corpo humano, dos riscos do uso e abuso. Esse desconhecimento leva a afirmações sem sentido, como ouvi outro dia uma apresentadora de um canal de rádio importante dizer que ela era a favor da Cannabis medicinal, mas contra a maconha. Talvez ela se referia ao uso que as pessoas fazem dos fitocanabinoides (terapêutico versus uso adulto), uma vez que Cannabis e maconha são sinônimos. Esse caso ilustra que o debate sobre as drogas no Brasil está longe de ser fundamentado na ciência e na razão, sendo considerado um tabu.
Sobre os riscos à saúde mental e ao "padrão comportamental", é importante ressaltar que todas as substâncias quando abusadas oferecem risco. Desde o açúcar, passando pela "cervejinha" (álcool), até mesmo remédios controlados. Veja a crise dos opioides nos Estados Unidos! Nesse sentido, muitos indivíduos que abusam de drogas também são diagnosticados com algum tipo de distúrbio psiquiátrico. Entretanto, a relação de causalidade entre ambos não está clara. Isto é, se pessoas que ainda não manifestaram sintomas clínicos, mas irão fazê-lo em um futuro próximo, são aquelas que têm mais chance de desenvolver relações de abuso, ou se é o uso que desencadeia o primeiro sintoma clínico da doença. Acredito que quando o uso e o abuso de drogas passar a ser entendido como uma questão de saúde pública e não de polícia, podemos ter mais dados confiáveis e provavelmente, poderemos esclarecer essa questão.
Agência Senado — Por que em países de orientação conservadora e com forte apego à religiosidade, como Israel, as pesquisas são autorizadas e (até onde se sabe) livres de embaraços, e o Brasil mantém-se fechado a esse assunto, mesmo tendo tido experiências de governos de democráticos e culturalmente liberais depois da redemocratização?
Claudio Queiroz — Como disse acima, não sou especialista nos aspectos sociais do uso de drogas. Mas a experiência israelense mostra que religiosidade e desenvolvimento de alternativas em saúde não precisam ser antagônicas. Sugere ainda que, em algumas situações, políticas voltadas à resultados econômicos, além das já conhecidas aplicações em saúde, podem suplantar visões obsoletas sobre o que são as drogas. Importante ressaltar que o THC, molécula com propriedades psicoativas, foi isolada e caracterizada pelo pesquisador israelense Raphael Mechoulam, que contribui fortemente com o desenvolvimento do programa de Cannabis do seu país. Acredito que se os políticos brasileiros ouvissem mais os seus cientistas e se as políticas públicas fossem construídas baseadas na ciência, e não em dogmas, o cenário nacional seria muito diferente. Para um exemplo recente, sugiro (re)ver a discussão em torno do PL 399/2015 da Câmara dos Deputados.
Agência Senado — Como vê a capacidade e a segurança dos laboratórios de pesquisa no Brasil para lidar com substâncias psicoativas?
Claudio Queiroz — O Brasil avançou significativamente na criação e consolidação de instituições regulatórias e de vigilância sanitária. Basta ver o prestígio da Anvisa no mundo nos últimos anos. Acredito que os laboratórios, tanto no setor industrial como no acadêmico, são amplamente capazes de implementar e seguir os rígidos protocolos de segurança e controle necessários para trabalhar com esse tipo de substâncias.
Agência Senado — Como vê a atuação de indivíduos e associações que produzem remédios à base de Cannabis? É seguro o que estão fazendo? Em que medida esse trabalho pode ser considerado científico? O produto que disponibilizam é de boa qualidade? Vê a necessidade de seguirem rígidos protocolos científicos para validar seus produtos, como prevê o Projeto de Lei 399/2015?
Claudio Queiroz — Infelizmente, a inação do poder público, ou pelo menos uma parte dele, fez com que a sociedade civil se movimentasse para conseguir acesso a um tratamento eficaz, seja em termos de habeas corpus individuais para plantio, seja em autorizações especiais para importação de formulações ricas em fitocanabinoides, seja na criação de associações. Na minha experiência, algumas dessas pessoas e associações são sérias e compromissadas em produzir produtos com qualidade e preço acessível, mas novamente, na ausência do poder público, tudo pode acontecer. Considerando a orientação conservadora da sociedade brasileira atualmente, acredito que o PL 399/2015 é um avanço para o estabelecimento de uma indústria de Cannabis no Brasil, com segurança, qualidade e acessibilidade.
Agência Senado — Acredita que a autorização para o plantio e o processamento de espécies como a Cannabis apenas para uso medicinal é o caminho a ser trilhado pelo Brasil? A inclusão da Cannabis para uso recreativo pode atrasar o processo ou o ideal é que tudo fosse legalizado?
Claudio Queiroz — Acredito que o desenvolvimento de uma indústria nacional baseada na Cannabis é fundamental para o país, não apenas por seu potencial científico, em relação ao qual ficamos para trás a cada dia, mas principalmente pelo potencial econômico. Países que derrubaram os tabus e preconceitos em relação à planta estão literalmente colhendo bons frutos na economia. Nesse sentido, acho o PL 399/2015 um grande avanço e parabenizo os deputados e técnicos do Congresso Nacional por essa iniciativa e trabalho sério. Entretanto, o país dificilmente irá conseguir vencer os desafios da terrível desigualdade social enquanto as drogas forem usadas como subterfúgio para o encarceramento da juventude preta, pobre e periférica.
Agência Senado — A proibição do uso de drogas é factível? Que riscos o consumo de maconha e outras drogas pode trazer para as pessoas?
Claudio Queiroz — As drogas são proibidas há décadas e o consumo não diminui. Apesar da forte repressão, o consumo vem aumentando nos últimos anos, em especial durante a pandemia. Isso mostra que a política de "guerra às drogas" não funcionou e nunca funcionará. Uma abordagem verdadeiramente nova deve ser empregada. O consumo de drogas deve deixar de ser um tabu e conversado na família, na escola e na igreja. Por exemplo, os jovens (abaixo de 21-23 anos especialmente) não devem consumir qualquer tipo de drogas, considerando que ainda não completaram seu desenvolvimento cortical. Apesar disso, a legislação brasileira restringe o consumo de álcool a menores de 18 anos! Na minha opinião, os riscos podem ser de dois tipos: os agudos, quando sob efeito de uma substância psicoativa a pessoa coloca em risco a si própria ou outros indivíduos (por exemplo, dirigir embriagada) e os crônicos, que envolvem o desenvolvimento do vício (por exemplo, quando a pessoa coloca o consumo da substância como prioridade em sua vida). Em ambos os casos, iniciativas baseadas na educação, e não na repressão, tendem a dar melhores resultados.
Agência Senado — Que substâncias psicodélicas proscritas, além da Cannabis, poderiam trazer benefícios em termos de tratamento de doenças? No exterior parecem estar avançando as pesquisas, inclusive com drogas como o ecstasy, para a utilização na psiquiatria.
Claudio Queiroz — Atualmente, diversos estudos clínicos estão sendo desenvolvidos com o objetivo de verificar o efeito de substâncias psicodélicas (como psilocibina, ácido lisérgico, dimetiltriptamina) em desordens psiquiátricas, como a depressão e ansiedade. Importante ressaltar que o uso dessas substâncias para esses fins é feito de maneira assistida (por um médico ou terapeuta), em ambientes controlados e com infraestrutura hospitalar.
Agência Senado — O que você e a equipe do Laboratório do Cérebro estão pesquisando acerca dessas substâncias? Poderia nos adiantar algum achado?
Claudio Queiroz — Nosso laboratório estuda a interação de fitocanabinoides no controle de crises epilépticas usando modelos animais. De maneira geral, estamos interessados em compreender se o efeito anticrise é maior após o tratamento com um único fitocanabinoide ou com combinações de fitocanabinoides. Outros laboratórios do Instituto do Cérebro da UFRN avaliam os efeitos de fitocanabinoides sobre o zumbido (tinnitus) e em comportamentos sociais em modelos animais de autismo, bem como de substâncias psicodélicas sobre a depressão. Ainda não publicamos os nossos resultados [oficialmente], e por isso declino do convite de compartilhá-los aqui.
Agência Senado — Como o laboratório obtém os extratos da planta para a pesquisa? Tudo é importado?
Claudio Queiroz — Os extratos que usamos foram doados por pacientes que conseguiram um habeas corpus na Justiça para cultivar e extrair os fitocanabinoides.
PerfilFormado em ciências biológicas (modalidade médica) pela Universidade Federal de São Paulo (1996), com mestrado em farmacologia (1999) e doutorado (2005) em medicina (neurologia) pela Universidade Federal de São Paulo. Com experiência em eletrofisiologia, etologia e biologia celular, atualmente pesquisa os mecanismos responsáveis pela deflagração de crises epilépticas em modelos animais de epilepsia. Mais recentemente, iniciou uma linha de pesquisa dedicada aos fitocanabinoides e sua relação com crises comportamentais e eletrográficas em modelos animais de epilepsia. |