Ir para conteúdo principal

Senado ganha protagonismo nas intersecções com o Executivo

Guilherme Oliveira
Publicado em 1/5/2021

O trabalho do Senado não se resume a produzir leis. Manter um olhar crítico e vigilante sobre as atividades do Executivo está entre as principais responsabilidades do Parlamento, num sistema conhecido como checks and balances (freios e contrapesos): cada Poder supervisiona os demais.

Nos tempos de normalidade, isso toma várias formas. As comissões e o Plenário podem solicitar informações e requisitar a presença de autoridades do governo federal para falar sobre a execução de políticas públicas. Decretos legislativos podem derrubar atos administrativos do governo. As medidas provisórias dependem do aval do Congresso para não perderem a validade depois de um prazo de quatro meses. As nomeações do Planalto para cargos judiciais, diplomáticos e nas agências reguladoras também precisam ser aprovadas — nesse caso, especificamente pelo Senado.

Palácio do Planalto (Ao fundo) e a Cúpula do Senado (Foto: Roque de Sá/Agência Senado)

Durante a maior parte do ano de 2020, vivendo a pandemia de covid-19, a relação entre os Poderes experimentou novos parâmetros. O Executivo ganhou margem para fazer movimentações que não são usuais. A urgência trazida pela crise demandava ação mais imediata e desimpedida. O Congresso, por sua vez, estava alijado de algumas das suas ferramentas e limitado a uma rotina de encontros remotos, menos frequentes, e sem o apoio das comissões permanentes. O risco era que, somados esses fatores, a fiscalização das atividades governamentais perdesse força e recursos.

O Senado resistiu a essa aparente inércia e pôs em prática maneiras de não perder o seu papel no xadrez dos Poderes. Isso aconteceu não somente apesar dessas limitações, mas também, e muito, por causa delas. A pandemia abriu portas para a excepcionalidade, o que fez crescer a importância de atividades de controle institucional.

Além disso, a Casa tinha interesse em demonstrar condição de cumprir as suas funções elementares mesmo em face das grandes dificuldades. Exibir essa capacidade de organização e superação seria uma demonstração de liderança importante para não enfraquecer a posição do Senado aos olhos dos seus parceiros de governança.

O Senado, então, manteve o Executivo ao seu alcance durante a pandemia e buscou ter iniciativa nas relações institucionais, remodelando as ferramentas de que ainda podia dispor. O importante era não se apagar e não deixar o país desfalcado de um dos seus pontos de equilíbrio num período de aparente insegurança.

As incertezas não tinham a ver apenas com a natureza da situação vivida. Os próprios recursos empregados eram "terra não desbravada". Desde o momento em que o governo federal pediu ao Congresso a decretação de um estado de calamidade pública para lidar com a pandemia, e antes mesmo da aprovação desse instrumento, o Brasil já se encontrava em uma situação inédita. As medidas para um estado de calamidade, previstas na Constituição, só foram regulamentadas em 2000, com a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF - Lei Complementar 101, de 2000). A covid-19 precipitou o primeiro acionamento desse dispositivo em caráter nacional na história do país.

A mensagem presidencial que chegou ao Congresso era simples e seguia apenas os parâmetros da LRF. O governo pedia o reconhecimento do estado de calamidade para que o Executivo pudesse se ver temporariamente livre de amarras como o cumprimento de meta fiscal, os limites de empenho de despesas e as restrições a operações de crédito.

Os parlamentares aprovaram o estado de calamidade, viram espaço para exercitar a criatividade e foram além. No decreto legislativo que oficializa a situação excepcional e autoriza a União a contornar regras fiscais, o Congresso inseriu a criação de uma comissão parlamentar que acompanharia de perto todos os passos. Deputados e senadores perscrutariam a execução orçamentária das medidas do governo de combate à pandemia e vigiariam a situação das contas públicas.

A comissão (CN-Covid19) foi instalada no dia 20 de abril, exatamente um mês depois do início do estado de calamidade. O senador Confúcio Moura (MDB-RO) dirigiu a sua inauguração, na condição de membro mais idoso, mas manteve esse posto após ser eleito para a presidência pelos colegas.

Não havia, nem há, dispositivo legal antecipando essa medida. Ela foi concebida pelo Congresso por ele mesmo entender que deveria fazê-lo: se o Executivo estava mais desembaraçado, o Legislativo estava incumbido de seguir logo atrás. A criação da comissão mista, uma intervenção parlamentar para o cenário que se desenhava para os próximos meses, sugeriu que o Legislativo não se furtaria de conceber os próprios meios para marcar a sua presença.

O consultor legislativo Gilberto Guerzoni explica o raciocínio que motivou essa movimentação.

— A ideia do Congresso era não ficar alheio à situação. Não dar um cheque em branco para o Executivo. Havia um temor de o Legislativo ser escanteado durante o processo. Do ponto de vista da fiscalização e da imagem externa, o Congresso não podia deixar de existir durante a pandemia.

Confúcio coordena os trabalhos da comissão de seu gabinete no Senado (Foto: Pedro França/Agência Senado)

Mais uma demonstração disso apareceu na segunda sessão do colegiado, quando os 12 membros aprovaram o plano de trabalho do relator, deputado Francisco Jr. (PSD-GO). O documento orientou a comissão a não apenas acompanhar as movimentações financeiras da União mas também se converter em um “ponto focal” de informações sobre a covid-19 (e suas repercussões) para toda a sociedade.

Orientada por essa missão, a comissão se espraiou. As tarefas mais recorrentes nas 40 audiências realizadas durante o ano foram a observação da política econômica e o acompanhamento fiscal, e mesmo assim elas ocuparam cerca de 40% da agenda apenas. No restante das reuniões, os parlamentares abordaram uma variedade de outros temas.

— Como não havia uma regra, o que a comissão ia fazer era definido pelas contingências de cada momento. Ela foi além da ideia original e funcionou como caixa de ressonância para a sociedade — afirma Guerzoni.

Alguns desses temas também tinham a ver com a economia, como o apoio a pequenas empresas por meio de linhas de crédito e o auxílio financeiro a estados e municípios. Em outros casos, porém, a comissão trouxe especialistas em saúde para entender a evolução da covid-19; entidades da educação para discutir o impacto do fechamento das escolas; e abordou até mesmo o apagão de vários dias que atingiu o estado do Amapá no mês de novembro, afetando hospitais da região.

O diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, em audiência em abril de 2020, e um dos depoimentos do ministro da Economia, Paulo Guedes, em junho de 2020 (Reprodução TV Senado )

A comissão ouviu a secretária de Educação Básica do MEC, Ilona Becskeházy, em abril (Reprodução TV Senado), e discutiu o apagão no Amapá, em novembro (Foto: Rudja Santos/Amazônia Real)

No comando da comissão, o senador Confúcio Moura foi o principal ponto de contato entre o Parlamento e as autoridades do governo que compareciam para prestar contas. Além da mediação das audiências, buscando o equilíbrio entre o diálogo institucional e a cobrança política, ele coordenava os esforços cotidianos de consolidar as informações registradas na multiplicidade de plataformas de prestação de contas que surgiram para consolidar dados sobre a pandemia. O trabalho tinha o auxílio de dois técnicos do Tribunal de Contas da União (TCU).

— Foram criados portais de transparência em quantidade muito grande: tribunais de contas, ministérios, Tesouro, Senado e Câmara... Foi um ganho extraordinário. Os órgãos de controle e os próprios cidadãos fazem buscas diárias sobre gastos, estoques, convênios e liberações - conta o senador

Audiências da Comissão Mista da Covid (CN-COVID19)

Ações de política econômica (10)
Saúde, pesquisa e vacina (8)
Bancos e crédito (7)
Estados e municípios (4)
Acompanhamento fiscal (4)
Educação (4)
Outras (3)

Abril ⇓

  • 20.04 - Instalação e votação de requerimentos
  • 24.04 - Votação de requerimentos
  • 30.04 - Paulo Guedes - Ministro da Economia

Maio ⇓

  • 07.05 - Onyx Lorenzoni - Ministro da Cidadania
  • 11.05 - Pedro Guimarães - Presidente Caixa Econômica
  • 14.05 - Mansueto Almeida - Secretário do Tesouro
  • 22.05 - Walter Braga Netto - Ministro da Casa Civil
  • 25.05 - Felipe Salto - Dir. Executivo IFI (Senado)
  • 28.05 - Waldery Rodrigues - Secretário de Fazenda

Junho ⇓

  • 01.06 - Roberto Campos Neto - Presidente Banco Central
  • 08.06 - Rubem Novaes - Presidente Banco do Brasil
  • 16.06 - Gustavo Montezano - Presidente BNDES
  • 18.06 - José Múcio Monteiro - Presidente TCU
  • 23.06 - Eduardo Pazuello - Ministro da Saúde
  • 25.06 - Governadores
  • 30.06 - Paulo Guedes - Ministro da Economia

Julho ⇓

  • 02.07 - Glademir Aroldi - Presidente Conf. Nac. Municípios
  • 07.07 - Associações de crédito e pequenas empresas
  • 09.07 - Entidades de educação
  • 14.07 - Wagner Rosário - Ministro da CGU
  • 20.07 - Entidades de educação
  • 21.07 - Secretários de Fazenda estaduais
  • 30.07 - Waldery Rodrigues - Secretário de Fazenda

Agosto ⇓

  • 04.08 - Entidades de educação
  • 06.08 - Ações de saúde para populações indígenas
  • 11.08 - Reunião cancelada
  • 13.08 - Eduardo Pazuello - Ministro da Saúde
  • 17.08 - Ações de pesquisa e desenvolvimento científico
  • 24.08 - Bancos internacionais

Setembro ⇓

  • 01.09 - Paulo Guedes - Ministro da Economia
  • 08.09 - Acompanhamento estatístico da pandemia
  • 17.09 - Milton Ribeiro - Ministro da Educação
  • 28.09 - Waldery Rodrigues - Secretário de Fazenda

Outubro ⇓

  • 05.10 - Acompanhamento de ações dos estados e municípios
  • 13.10 - Associações de crédito e pequenas empresas
  • 20.10 - Desenvolvimento e aquisição de vacinas
  • 29.10 - Paulo Guedes - Ministro da Economia

Novembro ⇓

  • 11.11 - Votação de requerimentos
  • 13.11 - Desenvolvimento e aquisição de vacinas
  • 17.11 - Apagão no Amapá
  • 24.11 - Waldery Rodrigues - Secretário de Fazenda

Dezembro ⇓

  • 02.12 - Eduardo Pazuello - Ministro da Saúde
  • 07.12 - Relatório de Políticas e Programas de Governo TCU
  • 11.12 - Paulo Guedes - Ministro da Economia
  • 18.12 - Votação do relatório final

Essas estruturas foram surgindo gradativamente, em resposta ao avanço da pandemia. De início eram brutas, mas, segundo Confúcio, atingiram um bom nível de confiabilidade com o passar do tempo. A comissão fazia a depuração dos dados, consultava seus convidados e, periodicamente, transmitia seus achados aos demais senadores. Essa corrente de informação embasava o conjunto dos parlamentares nas atividades de Plenário.

Para o senador, a diligência do Congresso em cavar para si esse nicho de atuação que não estava previsto é uma postura que precisa ficar de herança do ano da pandemia. Em vez de ser um polo passivo nas relações entre os Poderes, esperando em seus gabinetes os acontecimentos baterem à porta, são os legisladores que precisam tomar a dianteira nas ações e articulações.

— O parlamentar tem a obrigação de ser proativo. A função do Senado, hoje, é sair na frente, fazer coordenação, ter liderança nacional.

Além disso, o Poder Legislativo precisa se valer do seu caráter plural. A comissão mista acabou representando todo o Congresso na interlocução cotidiana com o Executivo, de modo que cabia aos seus integrantes — e, principalmente, ao seu presidente — a responsabilidade de manter uma comunicação aberta com os demais parlamentares. Era como se, com o colegiado, todos pudessem exercer esse lado dos seus mandatos. Para Confúcio, a mesma lógica vale para o trabalho de representação do Congresso como um todo.

— Vejo que só o Congresso tem condição política de ser a casa do consenso e de encontrar soluções compartilhadas: o que um tem, passa para o outro. A experiência de um não é só dele, é nossa.

Confúcio ouve o então ministro da Saúde Eduardo Pazzuelo em dezembro (Reprodução Tv Senado )

A CN-Covid19 foi a única comissão do Congresso Nacional que funcionou regularmente durante todo o ano de 2020. Foram 44 reuniões entre abril e dezembro, sendo uma para a instalação, três para deliberações de requerimentos, 40 para audiências e uma para votar o relatório final. Vinculada ao decreto do estado de calamidade, a comissão encerrou suas atividades automaticamente no dia 31 de dezembro, quando se esgotou o prazo das medidas excepcionais autorizadas para o governo.

Os trabalhos da comissão também tiveram que entrar na lógica remota desenvolvida para o Plenário em 2020. Os deputados e senadores se reuniam virtualmente, pela mesma plataforma de videoconferência usada para as sessões deliberativas (Zoom), e os convidados de cada audiência eram ouvidos assim.

Inicialmente, Confúcio fazia do seu gabinete a base de operações da comissão. Essa prática acabou abandonada. A equipe de bastidor do colegiado podia envolver até 20 pessoas, entre secretariado, assessoria parlamentar, consultoria e técnicos de TV e informática, que precisavam circular pelos corredores do Senado nos dias de sessão. Houve alguns casos de contaminação entre os servidores. A partir de meados de agosto, Confúcio trocou o gabinete pela própria casa, e as equipes de apoio também passaram a trabalhar remotamente.

Em 2021, o Senado instalou, por iniciativa própria, uma comissão apenas de senadores para herdar o bastão da comissão mista. Como sua antecessora, ela monitora o Executivo e trabalhará, a princípio, até junho. O senador Confúcio Moura também foi escolhido como seu presidente.

Medidas Provisórias

O impacto do fechamento das comissões do Congresso também atingiu uma das principais atribuições de interação institucional do Legislativo, que é a análise de medidas provisórias. As MPs são enviadas para comissões mistas antes de irem para os Plenários de cada uma das Casas, onde recebem parecer e as primeiras emendas. Assim como as comissões permanentes fazem com os projetos de lei, as comissões mistas para MPs amortecem o tema para os parlamentares, viabilizando uma apreciação embasada.

Isso não aconteceu em 2020. Com as comissões interditadas, primeiro houve incerteza quanto ao rito adequado para as medidas provisórias. No final de março, o Executivo acionou o Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a suspensão dos prazos de validade das MPs. A alegação era que, sem comissões, haveria o risco de os textos não se moverem no Congresso e pifarem sem sair do lugar.

Prédio do Congresso visto do Supremo Tribunal Federal (Foto: Pedro França/Agência Senado)

A Câmara e o Senado se manifestaram contra essa proposta, alertando contra uma expansão desmedida do poder do governo: se as MPs valessem indefinidamente, seriam essencialmente leis produzidas sem os legisladores. Ao mesmo tempo, construíram a sua própria alternativa, que foi oficializada no início de abril por um ato conjunto das suas Mesas Diretoras. O STF rejeitou a ação do Executivo e, posteriormente, autorizou a fórmula de tramitação proposta pelo Congresso. Foi mais uma iniciativa do Legislativo para a nova realidade da pandemia que prosperou.

Na tramitação excepcional concebida para o período de trabalhos remotos, todas as medidas provisórias foram direto para os Plenários, sem a formação de comissões mistas. Em vez de um relator único, cada casa teria o seu próprio relator para a MP. Emendas deveriam ser apresentadas à Secretaria Legislativa do Congresso Nacional. A mudança teve que ser autorizada pelo STF, pois a passagem por essas comissões é uma norma constitucional. As propostas mantiveram o prazo de vigência de até 120 dias, mas a Câmara e o Senado se comprometeram, com o ato, a tentar analisar cada peça num prazo de 16 dias, para manter a fila andando.

E logo se provou que haveria uma fila: o ano de 2020 foi o mais repleto de medidas provisórias desde que a contagem começou nos moldes atuais, em 2001. Foram 108 MPs, o dobro do registrado em cada um dos 12 anos anteriores e mais de 20 acima do antigo recorde (2002).

A aceleração no ritmo se deveu, naturalmente, à pandemia: as MPs são instrumentos para situações de urgência, que valem como leis a partir do momento em que são publicadas. As MPs são também o veículo para os créditos extraordinários, que complementam o Orçamento e permitem ao governo fazer mais gastos emergenciais. Das 108 medidas de 2020, 42 abriam créditos para o Executivo.

Para o consultor Gilberto Guerzoni, o resultado mais imediato desses dois cenários para as medidas provisórias — tramitação acelerada e grande volume — foi uma perda do poder de fogo da oposição para intervir nas propostas do governo.

— O debate fica muito empobrecido em sessões remotas, os parlamentares têm dificuldade para ter assessoramento. Instrumentos típicos de oposição, como obstruções, requerimentos e emendas, se perderam e quem controla a pauta acaba controlando as decisões com muito mais força — avalia.

Para Guerzoni, a tramitação acelerada e o grande volume de MPs diminuíram o poder da oposição (Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado )

A perda das comissões mistas também significou que o primeiro contato dos senadores com as medidas provisórias só se dava quando elas já haviam passado pela Câmara (antes, pelo menos alguns senadores já interagiam com o texto nas comissões mistas). Isso não só impediu que eles participassem das discussões logo no primeiro momento como também agravou um velho problema: MPs chegando ao Senado com poucos dias de vigência. Além de pressionar a pauta, esse fato representa uma “corda no pescoço” dos senadores, que se veem quase coagidos a aprovar a MP sem promover mudanças nela.

Mesmo com todas essas dificuldades, as medidas provisórias não ganharam passe livre pelo Congresso. Aliás, muito pelo contrário: em 2020, o Executivo perdeu nada menos do que 30 MPs, entre expirações de vigência e revogações expressas. O número também é alto para um único ano. Doze dessas eram remanescentes de 2019 que ainda precisavam de deliberação e foram pegas no turbilhão do ano da pandemia.

Com uma grande quantidade de MPs sendo editadas, a tendência natural é que uma porção numerosa fique pelo caminho, explica Guerzoni. Mas também houve outro fator, que representa o reverso da moeda do sistema remoto para o Executivo nessa questão:

— Não se consegue votar matérias mais polêmicas no SDR [sistema de deliberação remota desenvolvido pelo Prodasen]. Você não tem como arredondar projetos mais complexos. O que joga contra as MPs é que, se o assunto for muito complicado, todo mundo está mais propenso a deixar vencer. Precisam ser coisas com um mínimo de consenso ou uma urgência absoluta — destaca o consultor.

Tal foi a encruzilhada da deliberação remota para o Executivo: se conseguisse pautar seus interesses no Congresso, provavelmente conseguiria a aprovação, mas qualquer foco de resistência mais insistente geraria um efeito dominó de receio que é fatal para uma medida provisória. Um projeto de lei pode ser guardado para outra ocasião, mas a MP sempre está em contagem regressiva.

Em sessão remota comandada do "bunker" do Prodasen, senadores votam MP que amplia dispensa de licitação na pandemia, em setembro de 2020 - (Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado )

Assim, a fiscalização das MPs foi desafiada pelo acionamento muito mais frequente do Poder Executivo dessa ferramenta e também pelo entendimento entre os próprios senadores de que o momento exigia mais ações imediatas do governo federal. Ao mesmo tempo, os parlamentares tinham como trunfo nesse processo o próprio relógio interno de cada MP, e dele fizeram uso. O resultado mostra um Congresso que não se eximiu de ser o “porteiro” das medidas provisórias, mesmo num ano diferenciado.

O número de MPs perdidas pelo governo em 2020 não inclui mais de duas dezenas de propostas de créditos extraordinários que não tiveram votação. Essa, porém, foi uma jogada ensaiada que não prejudicou as MPs. Já a partir de abril, o Senado optou por não votar créditos extraordinários, sabendo que a mera edição da medida provisória já liberava o dinheiro. Depois disso, o que acontecia com o documento, na prática, não interferia no gasto, que já estava feito. A decisão foi justificada pelo então presidente do Senado, Davi Alcolumbre, como uma forma de não interditar a pauta do Plenário.

Davi Alcolumbre decidiu não votar MPs de crédito extraordinário (Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado )

Indicações

Após seis meses de trabalho exclusivamente remoto, o Senado precisou resolver, no final de setembro, uma pendência inescapável. Um batalhão de nomeações do governo federal para postos diplomáticos, jurídicos e em agências reguladoras se acumulava aguardando o aval dos senadores. Os indicados precisam ser sabatinados pelas comissões e ter seus nomes confirmados pelo Plenário em votação secreta. Esse processo é uma das mais importantes funções de cheque do Senado sobre o Executivo, pois garante a voz do Congresso sobre a composição da máquina pública em cargos estratégicos.

O acúmulo de nomeações em 2020 foi considerável. Precisavam ser ocupadas vagas no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Tribunal de Contas da União (TCU). Três dos 15 ministros do Superior Tribunal Militar (STM) precisavam ser substituídos, bem como o chefe da Defensoria Pública da União. Duas agências reguladoras tinham a totalidade das suas diretorias por preencher: a recém-criada Agência Nacional de Proteção de Dados (ANDP) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) — talvez a mais estratégica do país numa situação de pandemia, pela sua responsabilidade em certificar as vacinas contra a covid-19. Em outra agência, a de Aviação Civil (Anac), quatro dos cinco postos de diretor também precisavam de confirmação, bem como o cargo de ouvidor. Além disso, 38 embaixadas aguardavam confirmação dos seus titulares, incluindo algumas em países que são parceiros fundamentais do Brasil nas relações internacionais, como Estados Unidos, Argentina e Noruega.

Anvisa: todos os diretores da agência deveriam ser sabatinados e votados (Foto: Agência Senado )

Nas agências e nos postos diplomáticos os indicados já trabalhavam nas suas funções, mas sem a confirmação a sua situação ainda era precária. O Senado precisaria resolver a situação, mais cedo ou mais tarde, e teria que fazê-lo com votações presenciais. O SDR foi planejado para não comportar deliberações secretas, por uma questão de segurança para o voto do parlamentar. As comissões até poderiam fazer algumas sabatinas virtualmente, mas também nelas a votação dependeria da presença dos parlamentares.

O pesadelo logístico de uma sessão com convidados virtuais, senadores em pessoa e a distância e votações presenciais que seguissem protocolos sanitários adequados era evidente. Ele seria multiplicado por seis, pois era esse o número de comissões que precisavam ser envolvidas no processo: a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que vota nomeações judiciais; a Comissão de Relações Exteriores (CRE), que vota embaixadores; a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), que vota indicados em órgãos como o Banco Central e o TCU; e as comissões de Infraestrutura (CI), Assuntos Sociais (CAS) e Meio Ambiente (CMA), responsáveis pelas agências reguladoras. Idealmente, elas não trabalhariam ao mesmo tempo, para que apenas um plenário de comissões fosse mantido em operação.

Coordenador de Comissões Permanentes do Senado, Bruno Cunha Lima relata um sentimento de “apreensão” com tantas novidades a serem implementadas de uma só vez. A mistura entre o sistema remoto e o sistema presencial para os senadores era a principal delas. No caso da CRE, que tinha a pauta mais extensa, havia também o desafio de integrar dezenas de sabatinas numa única reunião, algo que não é praxe.

O resultado, porém, aponta para o futuro das audiências no Senado.

— É uma economia muito grande para o Senado e um benefício para [os sabatinados], que não precisam vir ao Brasil só para isso — aponta Bruno. É comum que embaixadores e cônsules sejam transferidos diretamente de um posto diplomático no exterior para outro, e, no meio do caminho, precisem passar por Brasília para a sabatina.

O presidente da CRE em 2020, senador Nelsinho Trad (PSD-MS) também considera as sabatinas virtuais como um “caminho sem volta”.

— Deslocar um embaixador do posto onde está atuando só para vir a Brasília e depois voltar gera um gasto para o erário que poderá ser economizado. As reuniões foram mais dinâmicas. Esse legado não vai se perder - garante.

Nelsinho Trad (C) comanda sabatina de embaixadores, em dezembro (Foto: Pedro França/Agência Senado)

A CRE fez quatro reuniões em setembro e duas em dezembro para analisar as nomeações diplomáticas do governo. A equipe técnica do colegiado conseguiu montar um calendário que reunia até 11 candidatos em cada sessão por videoconferência, equilibrando os diferentes fusos horários de cada um deles. Bruno Cunha Lima lembra que os testes do sistema com os diplomatas, na véspera de cada encontro, eram sempre ocasiões curiosas.

— Muitos deles não se viam desde os tempos do Instituto Rio Branco, então deixávamos eles conversando — relata.

O plenário que sediou todos os seis colegiados foi o de número 3 da Ala Senador Alexandre Costa, o mais espaçoso do prédio das comissões. Na sua cabine de controle audiovisual foi instalada uma placa de vídeo que integra o sistema de câmeras e microfones do plenário com a plataforma Zoom, permitindo a interação entre os senadores presentes e os que acompanhavam virtualmente, além dos convidados. Ao todo, a arena viu 17 reuniões, espalhadas em três séries nos meses de setembro, outubro e dezembro.

Jorge Oliveira é sabatinado pela CAE em outubro para o cargo de ministro do TCU (Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado )

Nem todos os encontros com nomeados foram virtuais. As sabatinas são momentos de “olho no olho”, em que os parlamentares medem os candidatos a posições de relevância na administração federal e têm a oportunidade de confrontá-los em proximidade. Para alguns cargos, esse contato não foi dispensado. A CAE optou por sabatinar em pessoa o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, que foi indicado para o TCU. E a CCJ, principalmente, recebeu seus avaliados no plenário da comissão, como foi o caso do juiz federal Nunes Marques, aprovado para ministro do STF.

Kassio Nunes Marques (E) é sabatinado pela CCJ em outubro para ocupar o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal - (Fotos: Edilson Rodrigues e Marcos Oliveira/Agência Senado)

Depois da sabatina, vem a votação. Um plenário de comissão tem apenas um posto para votação secreta, localizado dentro de uma pequena casa de máquinas de onde são monitorados os equipamentos audiovisuais e o sinal de televisão do plenário. Os senadores, tradicionalmente, entram lá um por um e registram seus votos.

Para evitar filas e aglomerações, a Secretaria de Comissões e o Prodasen instalaram urnas adicionais: dois totens provisórios nos corredores do Senado e dois nas garagens. Estes últimos permitiam que os senadores votassem sem sair dos seus carros e eram ideais para parlamentares de grupos de risco, que acompanhavam as sabatinas e audiências de seus escritórios e depois se dirigiam ao Senado apenas para o voto. Em cada par dessas estruturas, uma foi usada pelas comissões e a outra ficou de reserva. Depois, todas elas foram aproveitadas pelo Plenário principal, quando as indicações chegaram para a votação definitiva.

Um segundo plenário também foi equipado com a placa de vídeo especial para integrar sessões presenciais e remotas e ficou de prontidão para sediar reuniões das comissões — o que acabou não sendo necessário. Sua cabine audiovisual seria o sexto posto de votação.

Nomeações votadas nos plenários de comissões em 2020

22.09

CCJ ⇓

  • Conselho Nacional de Justiça (CNJ)

CRE ⇓

  • África do Sul
  • Angola
  • Argentina
  • Estônia
  • Estados Unidos
  • Holanda
  • Israel
  • Líbano
  • Mali
  • Organização da Aviação Civil Internacional (Oaci)

23.09

CCJ ⇓

  • Superior Tribunal Militar (STM)
  • Superior Tribunal Militar (STM)
  • Superior Tribunal Militar (STM)

CRE ⇓

  • Benin
  • Botsuana
  • Burkina Faso
  • Cabo Verde
  • Chile
  • Costa do Marfim
  • Dinamarca
  • Filipinas
  • Geórgia
  • Guiné
  • Irã
  • Iraque
  • Irlanda
  • Kuwait
  • Myanmar
  • Nepal
  • República do Congo
  • Senegal
  • Suriname
  • Timor-Leste
  • Trinidad e Tobago
  • Ucrânia
  • Zâmbia
  • Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea)

20.10

CAE ⇓

  • Tribunal de Contas da União (TCU

CAS ⇓

  • Agencia Nacional Vigilância Sanitária (Anvisa)
  • Agencia Nacional Vigilância Sanitária (Anvisa)
  • Agencia Nacional Vigilância Sanitária (Anvisa)
  • Agencia Nacional Vigilância Sanitária (Anvisa)

CI ⇓

  • Agência Nacional de Aviação Civil (Anac)
  • Agência Nacional de Aviação Civil (Anac)
  • Agência Nacional de Aviação Civil (Anac)
  • Agência Nacional de Aviação Civil (Anac)
  • Agência Nacional de Aviação Civil (Anac)
  • Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel)
  • Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel)
  • Agência Nacional de Petróleo (ANP)
  • Agência Nacional de Petróleo (ANP)
  • Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD)
  • Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD)
  • Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD)
  • Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD)
  • Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD)
  • Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq)

CMA ⇓

  • Agência Nacional de Águas (ANA)

21.10

CCJ ⇓

  • Supremo Tribunal Federal (STF)

CAE ⇓

  • Comissão de Valores Mobiliários (CVM)

15.12

CCJ ⇓

  • Defensoria Pública

CI ⇓

  • Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel)

CRE ⇓

  • Omã
  • Tunísia
  • Nações Unidas (rejeitada)

16.12

CCJ ⇓

  • Conselho Nacional de Justiça (CNJ)

CRE ⇓

  • Eslovênia
  • Noruega
  • Quênia

Apesar das atividades reduzidas e das rotinas adaptadas, o senador Nelsinho Trad julga que as comissões permanentes não sofreram prejuízo na sua atribuição de monitorar as nomeações do Executivo. As reuniões remotas, pelo contrário, podem renovar o arsenal das comissões, oferecendo versatilidade para elas exercerem suas prerrogativas de fiscalização do Executivo.

O consultor Gilberto Guerzoni pondera, por exemplo, que a capacidade de fazer sabatinas e oitivas a distância com desenvoltura pode garantir ao Senado mais poder de barganha na convocação de autoridades federais para prestação de contas.

— Há uma logística dificultada pela questão de agenda, mas agora um ministro não precisa nem se deslocar do seu gabinete para comparecer. Pode até estar em outra cidade. Também enfraquece a alternativa de mandar um representante, que era comum e acabava reduzindo a importância da reunião.

Senador Paulo Paim vota em urna eletrônica no sistema "drive-thru" (Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado)

Uma conclusão certa é que a ferramenta dará novos poderes aos presidentes das comissões. Na hora de realizar audiências, eles poderão fazer a opção entre ter eventos exclusivamente presenciais ou abrir o sistema virtual para participações externas, dependendo da necessidade do momento e da conveniência política. Será mais uma dobra no leque de comando desses parlamentares que já ocupam posições influentes dentro do Senado.

Já as votações remotas, em si, são uma ferramenta mais delicada, que a Secretaria-Geral da Mesa e a direção da Casa hesitam em naturalizar. Mesmo assim, o Congresso agora aprendeu que pode deliberar sem se reunir, e é difícil imaginar que essa alternativa não vá ficar guardada num compartimento de fácil acesso.


Pauta e reportagem: Guilherme Oliveira
Edição: Maurício Müller
Edição de multímidia: Wilian Matos de Lima
Infografia e ilustrações: Diego Bruno Jimenez
Pesquisa fotográfica: Marri Nogueira
Foto de capa: Pedro França/Agência Senado