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Senadores, cientistas e ONGs temem que, diante das notícias incessantes a respeito do fogo abrindo clareiras na Amazônia e matando animais selvagens no Pantanal nos últimos meses, a população brasileira acabe ficando insensível aos crimes ambientais.
Os satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Especiais (Inpe) mostram que, em toda a última década, 2020 é o ano em que mais houve incêndios no Brasil. O número de focos na Amazônia foi o dobro do registrado em 2013. No Pantanal, houve 14 vezes mais incêndios do que em 2018. As chamas arrasaram neste ano mais de 25% da superfície pantaneira.
A bióloga brasileira Erika Berenguer, que é pesquisadora das Universidades de Oxford e Lancaster, ambas na Inglaterra, e estuda os efeitos do fogo na Amazônia, vê semelhanças entre os incêndios recordes e a pandemia do novo coronavírus:
— Chegamos a ter no Brasil, num único dia, mil mortes pelo coronavírus e mil focos de incêndio na Amazônia, mas a manchete dos jornais foi qualquer outra coisa, como alguma declaração polêmica do governo. Parece que as pessoas ficaram anestesiadas e começaram a normalizar mortes e incêndios que poderiam ter sido evitados. Isso é muito ruim porque, quando a opinião pública não faz pressão, abrem-se as portas para que esses problemas, que já são péssimos hoje, fiquem ainda piores no futuro.
De acordo com a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), o risco da banalização e da apatia fica maior quando o próprio poder público não encara os incêndios nos ecossistemas brasileiros como tragédias. Ela cita o discurso que o presidente Jair Bolsonaro proferiu em setembro na Organização das Nações Unidas (ONU).
— Culpar índios e caboclos [pelo fogo na Amazônia] é algo absurdo — afirma a senadora. — A comunidade indígena, na realidade, é hoje uma das que mais contribuem com a proteção ambiental no país. O discurso negacionista do presidente é algo que deve trazer indignação.
Especialistas explicam que as condições climáticas deste ano estão na origem do excesso de incêndios. A estiagem e o calor foram particularmente severos. Mas não é só isso. Eles chamam a atenção para o fato de que o fogo não nasceu de forma espontânea, mas foi provocado pelo homem — e, muitas vezes, de forma criminosa.
No caso da Amazônia, o mais comum é que grileiros invadam terras públicas, derrubem a floresta e, para limpar o local, queimem as árvores acumuladas no solo. Depois de espalhar por essas terras algum gado ou iniciar um roçado, pleiteiam a regularização fundiária. Uma vez donos de terras até então públicas, podem vendê-las e lucrar.
O fogo ateado por grileiros, além disso, em vez de ficar apenas na área ilegalmente desmatada, pode acabar entrando na floresta.
— No ano passado, tivemos recorde de desmatamento na Amazônia. Com tantas árvores derrubadas, já prevíamos que neste ano teríamos recorde de incêndios. O fogo é a última etapa do desmatamento — explica a bióloga Erika Berenguer.
No caso do Pantanal, segundo especialistas, o mais frequente é a queima da pastagem do gado para eliminar o mato que cresce de forma indesejável. Quanto mais seca está a vegetação, maior é a chance de que o fazendeiro perca controle sobre o fogo.
O senador Fabiano Contarato (Rede-ES), que comanda no Senado a Comissão de Meio Ambiente (CMA), lembra que o presidente Bolsonaro, antes mesmo de tomar posse, dava sinais de que seria menos rígido com quem cometesse crimes ambientais. Chegou a dizer que havia no país uma “indústria da multa”. Contarato diz que o presidente cumpriu a promessa:
— A trajetória crescente do número de incêndios, tanto na Amazônia quanto no Pantanal, é resultado direto do recente desmonte da política de proteção do meio ambiente. Não há fiscalização, e as multas ambientais não são sequer cobradas. O sinal dado aos grupos criminosos é que podem atacar a natureza o quanto quiserem porque não sofrerão nenhuma consequência ou sanção. E esses grupos agiram. Os principais biomas brasileiros, de fato, estão sendo destruídos.
O Senado tem agido contra os incêndios. Em setembro, criou uma comissão temporária externa para acompanhar as ações do poder público no combate às chamas do Pantanal e propor ações para que a tragédia não se repita. Os senadores da comissão fizeram duas viagens à região e organizaram diversas audiências públicas com especialistas e representantes do governo federal e dos governos de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
— Vejo que o governo federal foi sensível à situação e se mostrou bastante ágil no auxílio aos dois estados — avalia o relator da comissão, senador Nelsinho Trad (PSD-MS).
— A demora nas ações de prevenção não pode voltar a acontecer, e estaremos atentos — diz o presidente da comissão, senador Wellington Fagundes (PL-MT). — O desastre provocado pelas queimadas não pode cair no esquecimento. O verde que logo voltará não pode apagar a imagem das cinzas, da vegetação queimada e dos animais mortos.
A senadora Eliziane Gama propôs a criação de uma comissão parlamentar de inquérito para investigar o que ela chama de crise ambiental. Ela já obteve as assinaturas necessárias para a abertura da CPI. Em outra linha, o senador Carlos Fávaro (PSD-MT) apresentou um projeto de lei que permite que o poder público alugue aviões agrícolas de particulares para o combate de incêndios (PL 4.629/2020). A proposta já foi aprovada pelo Senado e agora está na Câmara dos Deputados.
Na avaliação da pesquisadora Ane Alencar, uma das diretoras do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), os brasileiros não lucram absolutamente nada com os incêndios e a destruição do meio ambiente:
— Quando os grileiros ateiam fogo a uma área para invadi-la, o patrimônio público está sendo expropriado. A terra deixa de ser minha, sua, de todos os brasileiros, e o poder público não arrecada um centavo sequer. O combate aos incêndios ainda exige que o governo desembolse dinheiro público. Os brasileiros só são prejudicados. Quem lucra com isso tudo são interesses particulares, quadrilhas privadas.
Além das perdas óbvias para a diversidade de plantas e animais, a lista dos prejuízos provocados pelo fogo inclui o aumento da poluição atmosférica, da incidência de doenças respiratórias e da sobrecarga no sistema público de saúde — o que é especialmente negativo em meio à atual pandemia. O fogo também prejudica o funcionamento de aeroportos. Por causa da fumaça, o avião em que Bolsonaro viajava em setembro foi obrigado a arremeter antes de conseguir pousar em Sinop, cidade de Mato Grosso localizada entre o Pantanal e a Amazônia.
Os incêndios também são decisivos para as mudanças climáticas. Na Amazônia, a destruição das árvores prejudica o ciclo do dióxido de carbono, um dos gases causadores do efeito estufa. Estudos mostram que a vegetação que posteriormente nasce numa área queimada costuma ser menos robusta que a anterior e não tem o mesmo poder de absorver o dióxido de carbono.
No comércio global, o Brasil acaba sofrendo sanções por não proteger o meio ambiente. Empresas estrangeiras já deixaram de comprar produtos agropecuários do país por essa razão. O presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, afirmou que o Brasil sofrerá “consequências econômicas significativas” caso não pare de “destruir a Amazônia”. Bolsonaro respondeu que, “quando acaba a saliva [da diplomacia], tem que ter pólvora”.
Ane Alencar, do Ipam, acredita que o Brasil não precisa de novas leis ambientais para enfrentar o problema dos incêndios:
— Já temos leis muito boas, como o Código Florestal. O que falta é colocá-las em prática. Em outras palavras, o que falta é vontade política de combater o problema. E isso é possível. Na virada dos anos 1990 para os anos 2000, nós vivíamos uma situação péssima no meio ambiente. Com vontade política, conseguimos mudar esse quadro nos anos seguintes e tivemos reduções enormes no desmatamento e nos incêndios. Eu tenho muita esperança que isso vai acontecer de novo.
A Agência Senado pediu entrevista ao Ministério do Meio Ambiente e ao Ibama, mas não obteve resposta até a conclusão desta reportagem. O Ministério do Desenvolvimento Regional afirmou, por meio de nota, que "a orientação do presidente é não poupar esforços para debelar o fogo no Pantanal" e que repassou R$ 20,6 milhões aos governos de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul e R$ 19 milhões ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que é ligado ao Ministério do Meio Ambiente.