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Mesmo que um terço dos deslocamentos nas cidades brasileiras seja feito a pé, os cidadãos que usam as próprias pernas ou uma cadeira de rodas em seus trajetos não são tratados com prioridade. As palavras “pedestre” e “calçada”, aliás, nem aparecem na Lei 12.587/2012, que estabelece as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana, sinal de um quadro de inconsistência jurídica em nível federal e municipal.
Embora a Lei determine a prioridade do transporte não motorizado sobre o motorizado, apenas o artigo 24 menciona o deslocamento “a pé”, e ainda assim para apontar qual deve ser o foco do Plano de Mobilidade Urbana “nos municípios sem sistema de transporte público coletivo ou individual”.
Caminhar é a forma mais natural, antiga e econômica de o ser humano ir de um lugar a outro. Ainda assim, a avaliação média dos equipamentos necessários a uma jornada confortável e segura nas capitais brasileiras é de 5,71, quando deveria ser pelo menos 8. Isso quer dizer que a caminhabilidade, medida quantitativa e qualitativa dos espaços para a circulação de pedestres, está longe de ser considerada aceitável.
Buracos, rachaduras, calombos, degraus, poças, lixo e obstáculos diversos convertem o trajeto dos pedestres em um calvário. E não raro provoca lesões — muitas vezes graves.
Já é consenso entre estudiosos e ativistas que o espaço social, principalmente no que tange à mobilidade, não é justo. E um dos motivos é que os locais destinados aos pedestres são desproporcionalmente menores do que aqueles que ocupam os carros. É o que se convencionou chamar de “lógica rodoviarista”, desde os anos 50 do século 20 o cerne do planejamento (ou da falta de planejamento) urbano no Brasil. Por isso, dificilmente um indivíduo que possui um veículo irá preferir andar dois quilômetros — distância recomendada para o deslocamento a pé — a usar um automóvel para chegar ao seu destino.
A média da caminhabilidade foi obtida a partir de 835 avaliações a cargo de voluntários da campanha Calçadas do Brasil 2019, realizada pelo portal Mobilize Brasil. Idealizado com o objetivo de produzir dados concretos sobre o que já estava evidente — por meio da observação e da experiência — o levantamento se baseou em quatro aspectos principais: acessibilidade, sinalização, conforto e segurança em passeios sob responsabilidade direta do setor público.
A finalidade da campanha é fomentar o debate sobre o assunto e pressionar os governos a implementarem políticas públicas que beneficiem o pedestre. Não sem fortes motivos: São Paulo, a cidade que teve a nota individual mais alta — 6,93 — ainda não alcançou a média mínima satisfatória. O cenário na base do ranking, Belém, é ainda mais catastrófico: pontuação de 4,52.
Do ponto de vista do órgão responsável pelo equipamento, as calçadas com maior nota são aquelas cuidadas por órgãos do Poder Legislativo. Os passeios mantidos pelo Poder Judiciário vêm em seguida. As piores condições são observadas próximas a serviços de saúde e de segurança pública, atividades típicas do Poder Executivo.
A situação dos passeios públicos foi abordada no dia 6 de dezembro em uma audiência na Subcomissão Temporária sobre Mobilidade Urbana do Senado. Solicitada pela senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP), que ficou tetraplégica aos 16 anos e luta pela acessibilidade desde o mandato de vereadora em São Paulo. Ela é autora da Cartilha da Calçada Cidadã, que oferece instruções sobre a implementação de calçadas com ênfase na acessibilidade a todos os indivíduos. A reunião foi coordenada pelo senador Paulo Paim, presidente da Comissão de Direitos Humanos (CDH) e autor da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 19/2014, que inclui os direitos individuais e coletivos à acessibilidade e à mobilidade no texto constitucional.
Representante do portal Mobilize Brasil, a arquiteta e urbanista Marília Hildebrand observou na audiência que os deslocamentos a pé precisam crescer de importância no conceito dos brasileiros, de modo a ampliar a cidadania.
— O problema não é só de imóveis e proprietários de lugares particulares, mas da sociedade que não olha para essa infraestrutura como uma parte fundamental do que a gente chama de mobilidade — disse a arquiteta.
Marília explicou que a caminhabilidade é tratada usualmente “como se fosse um sistema”, apoiado em padrões e referências técnicas, e não na realidade palpável à frente de lotes, residências e estabelecimentos comerciais. O desejável e essencial, segundo ela, é que se construam “caminhos caminháveis” em trajetos livres, visto que as pessoas, em suas individualidades e circunstâncias, precisam usar a cidade.
— Se o poder público não cuida do espaço, como pode se esperar que o cidadão cuide? — questionou.
O Projeto de Lei (PL 8.331/15), atualmente tramitando na Câmara dos Deputados, é mais um a fixar parâmetros técnicos, entre os quais a exigência de calçadas com piso tátil, capaz de facilitar o movimento de cadeiras de rodas, sinalização para quem tem problemas de visão e travessias facilitadas nos cruzamentos.
O PL, que saiu do Senado, onde foi apresentado pelo ex-senador Aloysio Nunes Ferreira, com o número de PLS 541/2011, inclui entre as diretrizes gerais da política urbana um plano de rotas estratégicas para a melhoria e padronização dos passeios públicos. O plano teria de contemplar faixa livre, exclusiva para pedestres, visualmente destacada e largura mínima de 1,20 m. O texto determina ainda que o documento abarque preferencialmente rotas e vias que contenham alto fluxo de pedestres. Ocorre que, dada a lentidão com que tramita, o projeto acabou superado pela incorporação do plano de rotas acessíveis ao Estatuto da Cidade em 2015.
— O projeto de lei instituiu coisas que já são obrigatórias nos manuais que existem sobre a construção de calçadas. Acho importante que essas imposições apareçam nas leis, porque isso vincula de alguma maneira, mas é preciso responsabilizar a administração dos municípios, cobrar delas que a lei seja de fato cumprida — ponderou Marília, em entrevista à Agência Senado.
Um padrão para as calçadas está igualmente presente na Lei de Acessibilidade (10.098, de 2000), que exige a observância das normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), no caso a de número 9.050/2015.
Na opinião do consultor legislativo do Senado Victor Carvalho Pinto, a melhoria da acessibilidade para o pedestre tem sido muito defendida, mas o país não conta com um modelo jurídico eficaz para as calçadas.
De fato. Se a Política Nacional de Mobilidade sequer cita os termos pedestre e calçada, o tema é de alguma forma contemplado em três leis federais: a Lei de Acessibilidade, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, de 2015, e, em razão desta, o Estatuto da Cidade, de 2001, que trata da obrigação do poder público de promover a construção de passeios públicos.
Diante desse cipoal jurídico, que ainda inclui o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), as calçadas acabam sem um dono. Os municípios, que, no entender de Victor Carvalho Pinto, são os proprietários dos logradouros e, portanto, seus responsáveis diretos, tradicionalmente costumam atribuir aos proprietários dos lotes a responsabilidade pela manutenção dos respectivos passeios.
— Isso contraria a Lei 6.766/1979, que diz em seu artigo 22: 'Desde a data de registro do loteamento, passam a integrar o domínio do Município as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo'. Ninguém tem dúvida de que as calçadas pertencem ao município — assinala o consultor.
Especialista em Direito Constitucional pela Unisul, Luíza Cavalcanti Bezerra, alerta para a Constituição federal, que fixa a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios de “conservar o patrimônio público”.
“Resta claro, portanto, que normas com esse conteúdo, por serem materialmente inconstitucionais, precisam ser afastadas do ordenamento jurídico, para que se possa exigir do Poder Público municipal, titular legítimo das obrigações pertinentes aos bens públicos municipais, a obrigação de construir e manter as calçadas urbanas de sua alçada”, escreveu ela em artigo no site Jus.com.
Victor Carvalho Pinto diz preferir que normas técnicas não sejam tratadas em lei. Daí que, a seu ver, a Lei de Acessibilidade remete acertadamente às normas da ABNT.
Em uma ou outra esfera, porém, resta a questão de como sanar o déficit na prática, reestruturando espaços apertados ou inexistentes.
Excetuando casos de invasão de área pública, que obviamente têm de ser revertidos, Victor Carvalho Pinto acha difícil que a tentativa de propiciar espaço ao pedestre possa vir de áreas no domínio de particulares. Desapropriar não seria uma medida eficaz, de acordo com o consultor.
— O que vejo são calçadas invadidas, mal conservadas e não padronizadas, além de um sistema viário excessivo para o automóvel. Eu pensaria em eliminar esse sistema de responsabilidade privada pela conservação das calçadas e em converter faixas de sistema viário em ciclovias e calçadas.
Conforme a advogada Claudia Acosta, mestre em Estudos Urbanos e em Direito e Desenvolvimento, além de especialista em políticas fundiárias, o modelo institucional que rege o provimento e a manutenção de calçadas na cidade de São Paulo é bastante similar, por exemplo, ao de Nova York, mas “os resultados são completamente opostos”.
Em estudo realizado para a Fundação Getúlio Vargas e o Lincoln Institute of Land Policy, a pesquisadora observa que “as calçadas da cidade refletem um sério conflito social, caracterizando-se pela permanente depredação e formas de privatização do espaço, seja para fins lucrativos ou não”.
As normas obrigam os empreendedores imobiliários a proverem calçadas e fazerem reformas nesses equipamentos. Os proprietários de imóveis antigos localizados em vias secundárias onde já há passeios devem mantê-los em boas condições. A fiscalização, entretanto, é muito falha, por motivos que vão de regras frouxas para a concessão do “habite-se”, passando pelo não inclusão do objeto nas rotinas de fiscais, até a vista grossa da parte de administradores regionais com o fim de não aplicar desagradáveis multas a potenciais eleitores.
Por outro lado, o próprio governo municipal descumpre com sua obrigação de fazer manutenção de calçadas nos prédios públicos e nas vias a seu cargo por questões ligadas ao endividamento, à arrecadação inadequada ou insuficiente de recursos.
“A cidade não utiliza como fonte de financiamento a contribuição de melhoria, ainda que seja uma ferramenta justa e com bastante capacidade para gerar bens públicos”, assinala a estudiosa.
Outro “vazio institucional” de São Paulo expõe o passeio público como o primo pobre da organização urbana: “as obras de melhoria de vias estruturais e corredores não necessariamente incluem as calçadas no orçamento”, o que é agravado pelo descuido das empresas concessionárias e de serviços públicos, que até 2017 não estavam claramente obrigadas a reparar danos frequentes a calçadas necessários à execução de serviços como a colocação de postes, “repassando para a cidadania parte do custo da sua atividade comercial”, nas palavras de Cláudia Acosta.
Outros fatores complicam, entretanto, a gigantesca tarefa de dotar as vias brasileiras de pisos adequados para os caminhantes.
Durante a audiência pública no Senado, o chefe da Secretaria Nacional de Mobilidade Urbana, Higor de Oliveira, reconheceu que há deficiência de pessoal qualificado para poder executar a Política Nacional de Mobilidade Urbana em benefício do pedestre.
Wilde Cardoso, da Associação Andar a Pé, lamentou que no Brasil um serviço só funcione com base em modismos:
— Se a gente construir um ambiente em que andar a pé passe a ser racionalmente aquilo que é mais moderno, nós temos condições de reverter esse cenário.
Para isso, seria necessário melhorar a situação das calçadas.
Segundo Cardoso, caminhar, além de poder aumentar em 60% a criatividade, previne doenças como o Alzheimer, o câncer de colo de útero e de mama e a depressão. Com a implantação da mobilidade ativa ocorre ainda a desoneração do transporte coletivo — um modal que também está a demandar soluções.
O drama das calçadas foi tema de uma enquete do programa Conexão Senado, da Rádio Senado, do dia 28 de novembro. Ouvintes se manifestaram sobre as condições dos passeios em seus estados.
— Só tem calçada em bairro nobre, e nas periferias calçada é luxo — disse Paulo Xavier, de Recife.
Geraldo Junior, de Natal, onde a Lei Municipal 275/2009 atribui ao particular que detenha imóvel junto à calçada a responsabilidade pela sua execução e manutenção, reclamou da irregularidade desses equipamentos:
— As calçadas de Natal, muitas vezes, parecem gráficos em barras, principalmente por causa de rampas de acesso para carros nas garagens, fazendo com que o pedestre sempre fique em segundo plano.
No Distrito Federal, Mario Bala usou de ironia ao manifestar sua opinião a respeito das condições para os pedestres na cidade de Ceilândia:
— Aqui as calçadas são cheias de carros e os pedestres têm que andar no asfalto. Eu acho até bom, eu já pago IPVA mesmo.
No relatório final da Campanha Calçadas do Brasil 2019, o avaliador da pior cidade no ranking Leonardo Grala falou sobre a situação calamitosa da capital que recebeu uma média de 4,52:
— Em Belém do Pará, as calçadas em geral são mal cuidadas, com pouca ou nenhuma regulamentação, e quanto mais afastado o bairro, mais precária é a qualidade do passeio público. Faltam faixas de segurança, aviso sonoro, semáforos de pedestres, além da total falta de placas com informações voltadas a quem está a pé.
Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado