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É comum que as pessoas recorram diretamente a uma farmácia para se medicarem, especialmente quando o que sentem não lhes parece tão grave. Afinal, o farmacêutico é o agente de saúde mais à mão, embora não possa entregar ao paciente remédios cuja prescrição seja reservada a médicos.
Independentemente de como se chega à compra de um medicamento, porém, raramente o brasileiro consegue comprar a quantidade exata de comprimidos que foi prescrita. É que, em sua maioria, as cartelas e outras embalagens não vêm preparadas para a separação em unidades. Um paciente que precise, por exemplo, tomar o antibiótico metronidazol, pode ter de desperdiçar doze comprimidos numa caixa com 20, já que o combate a bactérias atuantes no aparelho reprodutivo é feito muitas vezes em dose única de oito comprimidos de 250 miligramas.
Mesmo as cartelas que são picotadas, têm esse recurso apenas como uma facilidade para o consumidor em seu dia a dia. Evitam que ele tenha de carregar consigo um bocado de remédios, mas não permitem a venda fracionada em si. Essa demandaria uma gama maior de cuidados.
O Projeto de Lei do Senado (PLS) 98/2017, apresentado pela senadora Rose de Freitas (Podemos-ES), pretende mudar essa realidade, ao obrigar os laboratórios a fabricarem e as farmácias a venderem medicamentos em embalagens fracionáveis.
Segundo a senadora, os três objetivos principais do projeto são: proteger a economia popular, diminuir o desperdício e dificultar a automedicação.
Caberia aos farmacêuticos desmembrar os recipientes “em quantidades individualizadas para atender às necessidades terapêuticas dos consumidores e usuários”. O projeto não especifica como seriam indicadas essas necessidades terapêuticas, o que abre espaço para que também tenham de ser fracionáveis os remédios vendidos sem receita médica, cuja posologia seria recomendada pelos farmacêuticos. A indústria e os importadores teriam o prazo de doze meses, a partir da publicação da lei, para adaptar suas linhas de produção e controle.
Ainda que o farmacêutico ficasse com a obrigação direta de garantir a qualidade do material fracionado — tanto o dispensado ao comprador quanto o remanescente — o projeto estende a “responsabilidade solidária” pela “qualidade, segurança e eficácia dos medicamentos" aos fabricantes, importadores e comerciantes.
O fracionamento está em compasso de espera no Brasil desde o Decreto 5.775 e a Resolução 80, ambos editados em 2006 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Essas normas permitiram — mas não obrigaram — as empresas a comercializarem remédios em unidades desmembráveis.
Os manuais da agência que esclarecem essas normas apresentam uma série de mudanças nas rotinas das farmácias com o fim de subdividir cartelas e outras embalagens. Uma delas é que as unidades vendidas devem ser acondicionadas em embalagens próprias das farmácias e entregues juntamente com bulas aos compradores. As unidades restantes devem ser guardadas nas caixas originais, em ambiente adequado à sua conservação para venda futura. E cada operação de fracionamento deve ser registrada para controle das autoridades sanitárias.
Já as indústrias devem garantir que cada fração contenha informações capazes de permitir o rastreamento do remédio, como o lote de fabricação, a concentração de substâncias e o prazo de validade.
Pesquisa de opinião realizada pela Anvisa no ano do decreto mostrou que a maioria dos entrevistados de renda baixa era a favor do fracionamento. Entre os que pertenciam a famílias com renda de um a dois salários mínimos, 88% aprovavam a medida — contra 74% dos pertencentes a famílias com renda acima de 20 salários mínimos. Quase 57% dos entrevistados acreditavam que a venda fracionada iria diminuir a automedicação e 60% confiavam que os preços dos remédios iriam cair.
— Em outros países o fracionamento já existe tem muito tempo. O que a gente visa? O consumidor, principalmente o das camadas mais pobres. Eu acho que é uma iniciativa sobretudo importante para os médicos terem liberdade de receitar e as pessoas, condição de adquirir. O mais triste é quando a pessoa depara com a situação de ela ter que tomar um remédio por três dias, mas tem que comprar uma caixa com dez [unidades]. Se ela não reincidir naquele mal, ela vai jogar sete remédios fora — explica a senadora Rose de Freitas.
Para o cardiologista Ivan Penna, do Serviço de Emergência Médica do Senado, a venda fracionada pode tornar mais racional e seguro o uso de medicamentos, embora, no caso específico dos antibióticos, as quantidades ofertadas pela indústria já se aproximem dos padrões de tratamento de adultos. A posologia para crianças vai sempre depender do peso, o que já pode criar situações peculiares.
— É uma medida de bom senso. Esse possível novo modelo é mais completo. Resolve arestas. É preciso inclusive ter um maior rigor com os anti-inflamatórios vendidos sem receita médica. Ingeridos por automedicação podem causar danos aos rins, à pressão arterial e ao fígado — alerta Penna.
Mesmo os antibióticos podem sobrar em certas circunstâncias e estimular a automedicação, o que não raro provoca efeitos colaterais. O aumento da resistência bacteriana é um deles.
— Diante de um quadro de amigdalite, o cidadão pode se sentir encorajado a tomar o remédio que está na gaveta, sem recorrer a nova consulta. Ocorre que a maior parte das amigdalites é provocada por vírus. Não haveria, portanto, a necessidade de tomar um antibiótico.
A Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) discorda da proposta. Para o presidente-executivo da instituição, Sergio Mena, a sobra de remédios em casa é consequência de maus hábitos dos usuários, como a interrupção do tratamento por conta própria. Esse comportamento foi identificado em pesquisa realizada este ano pelo Instituto Datafolha e pelo Conselho Federal de Farmácia (CFF), segundo a qual 44% dos entrevistados admitiram que não levam o tratamento até o final. O levantamento aponta ainda que 57% deles relataram já terem alterado a dosagem prescrita pelo médico.
“Não é verdade que o fracionamento reduziria as sobras de medicamentos. Se assim o fosse, nos Estados Unidos, país que adota parcialmente o fracionamento, não sobrariam pílulas na casa dos norte-americanos. Abra uma gaveta numa residência no Hemisfério Norte e verá mais sobras de remédios do que aqui”, alega Mena em artigo enviado pela Assessoria de Imprensa da Abrafarma.
No texto, Mena recomenda inclusive que se ampliem as quantidades ofertadas aos consumidores para estimular a “adesão” aos tratamentos.
O artigo não trata do fracionamento em países da Europa, como a França e o Reino Unido, que o adotam de forma bem-sucedida.
Na verdade, o quadro apresentado na pesquisa CFF/DataFolha é bastante complexo e sugere fragilidade nos laços entre os usuários de remédios, médicos e farmacêuticos.
“Vamos trabalhar para que a população entenda que ela tem ao seu alcance, nas farmácias, um profissional da saúde especialista em medicamentos, que é o farmacêutico. Muita gente não sabe, mas o farmacêutico pode inclusive prescrever os medicamentos isentos de prescrição (MIPs). É sempre mais seguro contar com o auxílio desses profissionais do que utilizar medicamentos por conta própria”, diz o presidente do CFF, Walter da Silva Jorge João, em texto de apresentação do levantamento do Instituto Datafolha.
Em dissertação de mestrado apresentada em 2009 à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o especialista em vigilância sanitária Nelyson Dias menciona outra nuance para explicar a interrupção de tratamentos, que contradiz as alegações da Abrafarma: a percepção do custo de uma segunda caixa de remédios a ser consumida parcialmente pode comprometer a adesão integral dos usuários à terapia.
Independentemente do comportamento dos usuários, a resistência ao fracionamento deve ser analisada no contexto dos números do comércio de remédios, responsável por um faturamento de R$ 57 bilhões somente em 2017. O Brasil é hoje o sexto maior mercado farmacêutico do mundo e pode se tornar o quinto em 2022. Há cerca de 88 mil farmácias no Brasil, com estimativa de 42 estabelecimentos para cada 100 mil habitantes.
“A gente tem visto crescimento constante neste mercado, mesmo em período de crise. Há avanço importante de laboratórios nacionais e públicos. E avanço consistente de mercado de genéricos e biológicos”, avaliou na época Leandro Safatle, então secretário-executivo da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMed), órgão ligado à Anvisa, segundo o site Panorama Farmacêutico.
Apesar da importância econômica dos ramos comercial e industrial de medicamentos, a senadora Rose de Freitas pondera que não é possível entender a questão apenas pelo ângulo das empresas.
— O incômodo [com o projeto] está sendo de quem produz. Quem produz entende que o fracionamento é contra toda a programação das indústrias. Eu não posso olhar a sociedade por um lado só, eu tenho que olhar o lado da economia popular que diz respeito às pessoas de pouco poder aquisitivo — afirma.
“Apesar de parecer assunto de implementação simples e rápida, o fracionamento de medicamentos é um tema sanitário complexo, que exige normas e procedimentos rígidos que atendam plenamente a todos os pré-requisitos médicos, farmacológicos, operacionais, logísticos e de pessoal especializado, entre outros, que a correta adoção da medida exige”, argumenta o presidente executivo do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma), Nelson Mussolini.
Os industriais afirmam ainda que o fracionamento “oferece sério risco para a população, pois compromete os controles sanitários existentes”. E que “segundo estudos da indústria farmacêutica, a simples abertura da embalagem secundária (caixa) e/ou primária (cartela) pode afetar a estabilidade química do medicamento”, ao ser exposto a umidade e luminosidade, prejudicando “a eficácia do princípio ativo”.
Para evitar esses problemas, as empresas teriam, segundo Mussolini, que realizar novos estudos de estabilidade dos medicamentos em embalagens especialmente desenvolvidas para o fracionamento, com aumento dos custos de fabricação e “aumento de preços para a população”.
Na avaliação do Conselho Federal de Farmácia (CFF), o fracionamento de remédios contribuirá decisivamente para a promoção do seu uso racional e é exequível.
— Desde que o procedimento da dispensação de medicamentos na forma fracionada seja efetuado pelo farmacêutico o benefício será, sim, enormemente maior do que o prejuízo. Diminui os gastos e ainda o descarte de resíduos de medicamentos na natureza — avalia o presidente da instituição.
A preocupação quanto ao descarte é relevante. Em 2017, foram comercializadas 162 bilhões de doses de remédios no Brasil. As que não foram consumidas podem ter contaminado o solo e atingido populações que trabalham em lixões e aterros sanitários.
— Vários remédios, quando abandonados em lixões, são dissolvidos pela água da chuva e, junto com o chorume, podem atingir o lençol freático. Esses medicamentos acabam contaminando os recursos hídricos e afetando adversamente não apenas a flora e a fauna, mas os próprios seres humanos — explica o consultor de meio ambiente do Senado João Carlos Rodrigues.
As pílulas anticoncepcionais, feitas a partir de hormônio feminino, são um exemplo disso. Caso contaminem a água de um sistema público, podem gerar a diminuição da fertilidade da população masculina da região.
Estudo realizado com 85 pessoas do município goiano de Cocalzinho em 2012 revelou que a maioria dos entrevistados descartava seus remédios no lixo convencional. Uma parcela menor se livrava dos medicamentos no vaso sanitário ou na pia.
A Anvisa defende o fracionamento. Argumenta que a medida pode evitar intoxicações que acontecem, geralmente, quando há sobras de remédio em casa. Dados do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas, indicam que quase 7.000 casos de intoxicação por remédios foram registrados em 2017, o que representa 25% do total. A maior porcentagem registrada é a de intoxicação por escorpiões (35%). Os produtos de limpeza respondem por 5% dos casos.
Antes da votação do PL 98/2017, o Senado deverá debater o assunto com representantes de diversos setores. Segundo a senadora Juíza Selma (PSL-MT), responsável por relatar o projeto na Comissão de Transparência, Fiscalização e Controle (CTFC), mesmo levando em consideração os eventuais benefícios do projeto, há que se avaliar os impactos financeiros para o consumidor.
“Precisamos analisar se as mudanças na nova legislação poderão resultar em aumento do custo de produção e consequente aumento no preço do medicamento, exatamente o que o fracionamento pretende evitar”, argumentou a parlamentar em seu requerimento de audiência pública anteriormente marcada para o dia 11 de junho e depois adiada.
A assessoria de imprensa da senadora esclarece que Juíza Selma tinha pronto um substitutivo à matéria, mas o retirou a pedido de Rose de Freitas para que o assunto fosse mais amplamente discutido na CTFC, o que acabou motivando o adiamento da audiência. A relatora agora aguarda as indicações de participantes pela autora do projeto para remarcar a reunião.
Juíza Selma sugeriu convidar representantes dos ministérios da Saúde e da Economia; da Anvisa, do Sindicato da Industria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma), do Conselho Federal de Farmácia (CFF), da Abrafarma e da Associação Brasileira da Indústria de Medicamentos Isentos de Prescrição (Abimip). Ela aguarda agora as indicações de Rose de Freitas.
A Anvisa tem disponível em seu site vários guias que orientam como aplicar o fracionamento. Esses manuais datam de 2006, quando a agência autorizou, mas não obrigou, a venda fracionada.
Para cada área que a medida atinge, há um manual diferente: para farmacêuticos, farmácias, indústrias, profissionais de vigilância sanitária e “prescritores” de remédios (médicos, por exemplo).
A figura central do fracionamento é o farmacêutico, que deve realizar a tarefa num ambiente especialmente providenciado pelas farmácias. O desmembramento das unidades é precedido de avaliação da receita e termina com a dispensação (entrega do remédio ao comprador).
A subdivisão das cartelas e outras embalagens de forma controlada só é possível porque cada unidade do medicamento tem de ser identificada com número do registro, lote e data de validade. Além disso, todas devem conter a expressão “Exija a bula”, pois a cada comprimido dispensado é obrigatória a entrega de uma delas.
São fracionáveis os medicamentos na forma de comprimido, cápsulas, drágeas, bisnagas, ampolas, sachês e seringas.
Reportagem: Ana Luisa Araujo (sob supervisão de Nelson Oliveira)
Pauta, coordenação e edição: Nelson Oliveira
Coordenação e edição multimídia: Bernardo Ururahy
Infografia: Cassio Sales
Pesquisa fotográfica: Ana Volpe
Operador multimídia: Aguinaldo Abreu
Foto de capa: Marcos Oliveira/Agência Senado
Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)