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Por preconceito e desinformação, empresas evitam contratar refugiados

Ricardo Westin
Publicado em 14/10/2019
Edição 690
Refugiados

Para os refugiados, ser contratado por uma empresa brasileira é particularmente difícil. Uma pesquisa feita neste ano pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) mostra que 20% dos estrangeiros refugiados no Brasil vêm procurando trabalho, mas sem sucesso. Trata-se praticamente do dobro da taxa nacional de desemprego, que, segundo o IBGE, é de 12% da população economicamente ativa.

Em certas situações, a dificuldade para os refugiados entrarem no mercado de trabalho é até compreensível. Como muitas vagas são preenchidas por indicação, eles acabam ficando em desvantagem por terem uma rede de contatos pequena no Brasil. A falta de domínio do português aparece como um entrave adicional no caso dos recém-chegados.

Há motivos, contudo, que não são compreensíveis. Com frequência, é por pura falta de informação que as empresas descartam logo de cara o currículo dos refugiados, sem nem mesmo chamá-los para a entrevista. Muitos empresários pensam que o processo de contratação é mais complexo, burocrático e demorado do que o processo de um brasileiro. Outros supõem que seja ilegal admitir refugiados e que, fazendo isso, serão multados por auditores do Ministério do Trabalho ou até presos pela Polícia Federal.

Nada disso é verdade. A contratação de refugiados é perfeitamente legal e segue as mesmas regras para a admissão de brasileiros, sem implicar nenhum ônus ou encargo extra para o empregador.

Imigrante venezuelano pede emprego em Boa Vista (foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Esclarecer as empresas é urgente. Até pouco tempo atrás, os refugiados eram um tema estranho aos brasileiros, restrito ao noticiário internacional, mas vêm se transformando numa questão cada vez mais doméstica. Em 2010, o Ministério da Justiça recebeu menos de mil solicitações de refúgio. No ano passado, os pedidos saltaram para 80 mil.

Foi o recorde histórico. Por causa desse volume extraordinário, o Brasil subiu várias posições no ranking mundial e se tornou o sexto país ao qual estrangeiros mais recorreram em busca de proteção. A maior procura foi de venezuelanos, fugidos da crise política, econômica e social de seu país.

As crenças equivocadas das empresas em relação à contratação de refugiados foram reveladas por um estudo recente conduzido pelo professor Leandro de Carvalho, do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade de Brasília (UnB). Ele ouviu 400 recrutadores de firmas de todos os portes localizadas na região metropolitana de São Paulo.

Ex-funcionário de uma ONG que presta assistência a refugiados, Carvalho decidiu mergulhar nessa questão depois de constatar que, por mais que tenham aulas de português, passem por cursos de capacitação e revalidem seus diplomas, eles raramente conseguem ser aprovados nos processos seletivos das empresas.

— Ainda que o refugiado seja altamente capacitado para o trabalho, o determinante para o recrutador não é o currículo que está na sua mão ou o próprio candidato que está na sua frente, mas, sim, a informação, quase sempre equivocada, que ele tem a respeito do processo de contratação. Isso faz com que o refugiado não concorra com o brasileiro em condições de igualdade — ele afirma.

O refugiado é um tipo específico de imigrante. Ele fugiu de seu país para sobreviver. Para que o Brasil conceda o refúgio, ele precisa provar que, caso permanecesse lá, seria vítima de perseguição (por motivo racial, religioso ou político), teria seus direitos humanos violados ou poderia morrer num conflito armado. Assim que pede refúgio, o estrangeiro ganha a proteção do governo brasileiro e não pode ser deportado para o seu país.

Tanto o refugiado quanto o solicitante de refúgio se encontram em situação regular no Brasil e, dessa forma, podem trabalhar normalmente. Entre os documentos que o estrangeiro recebe logo que pede refúgio, está a carteira de trabalho.

Por ser uma realidade nova no Brasil, muita gente ainda não compreende com exatidão o que significa ser refugiado. Uma certa carga negativa pesa sobre essa palavra, que pode remeter aos latino-americanos que tentam cruzar a fronteira dos Estados Unidos ilegalmente, aos bolivianos que são explorados em confecções clandestinas de São Paulo e até mesmo a criminosos fugitivos internacionais. Talvez sejam associações desse tipo que levem empresários a temer fiscalizações trabalhistas e operações policiais.

— O estereótipo engana — esclarece o oficial de Meios de Vida do Acnur, Paulo Sérgio de Almeida. — Na realidade, os refugiados são gente como a gente. Entre eles, existem pessoas de todos os níveis sociais, de escolaridade e de qualificação profissional. O que houve foi que, por força de uma guerra ou crise, foram forçados a deixar a sua terra e a recomeçar a vida em outro país.

A mesma pesquisa do Acnur que apontou o elevado índice de desemprego entre os refugiados também mostrou que, ao contrário do que se pode imaginar, a escolaridade deles é mais alta do que o indicador nacional. De acordo com o estudo, 34% dos refugiados que moram no país têm ensino superior. Entre os adultos brasileiros, o índice é de 17%.

Quando o mercado de trabalho não enxerga os refugiados adequadamente, ou eles ficam desempregados, ou se sujeitam a empregos formais que estão aquém da sua qualificação ou a serviços informais nos quais ficarão expostos a todo tipo de exploração.

Um dos trabalhos que a ONG Compassiva, de São Paulo, faz é auxiliar os refugiados a revalidarem seus diplomas universitários. Se o processo é complexo para brasileiros formados no exterior, para os estrangeiros é ainda mais penoso, já que não estão familiarizados com a burocracia do país. Em agosto, a equipe jurídica da Compassiva organizou um mutirão voltado para os venezuelanos e, em apenas dois dias, montou 62 processos e os remeteu às universidades. A ONG já ajudou a revalidar diplomas de refugiados de países como Síria, Nigéria, Moçambique e República Democrática do Congo.

Neste momento, o senador Flávio Arns (Rede-PR) prepara um projeto de lei que, se for aprovado, isentará os refugiados das taxas cobradas pelas universidades brasileiras que revalidam diplomas. Ele explica:

— Muitos refugiados que chegam ao Brasil têm inclusive mestrado e doutorado. Ao facilitar o processo de revalidação de diplomas, permitiremos o trabalho de indivíduos que muito têm a contribuir para o desenvolvimento do país.

No início de outubro, Arns conduziu uma audiência pública na Comissão de Direitos Humanos (CDH) em que se debateram as dificuldades enfrentadas pelos imigrantes no Brasil. A questão passou a ser discutida no Senado com mais frequência no ano passado, por causa da explosão de pedidos de refúgio. Desde então, os senadores organizaram sete debates sobre o assunto, dos quais dois a pedido do senador Paulo Paim (PT-RS).

— O Brasil precisa criar uma política de emprego para os refugiados — afirma Paim. — E não se trata apenas de uma questão humanitária. Quando entram no mercado, eles passam a pagar suas contribuições, tornam-se consumidores, estimulam a produção local. Isso fortalece a nossa economia.

Senadores Flávio Arns e Paulo Paim defendem inserção de refugiados no mercado de trabalho (foto: Geraldo Magela/Agência Senado)

O Ministério da Justiça diz que atua na inclusão dos refugiados participando de eventos de federações empresariais e agências da ONU (como o Acnur e a Organização Internacional para as Migrações) que buscam sensibilizar o setor produtivo. Nesses eventos, apresenta casos de empresas que fizeram esse tipo de contratação e alcançaram resultados positivos.

O estudo do professor Leandro de Carvalho, da UnB, mostra que, entre os poucos recrutadores que disseram já ter selecionado refugiados, praticamente todos avaliaram os estrangeiros como ótimos profissionais.

Em Brasília, a rede de fast food Tomatzo empregou há dois meses um refugiado haitiano como auxiliar de cozinha. O diretor de Comunicação da empresa, Marcus Vinícios de Oliveira Santos, afirma:

— É a nossa primeira experiência com um refugiado, e já podemos ver que ele tem mais motivação e força de vontade do que costumamos ver nos colaboradores brasileiros. Por ter enfrentado tanta dificuldade para chegar aqui e querer muito construir uma vida nova no Brasil, ele abraçou essa oportunidade com força. O colaborador novo acabou motivando toda a equipe.

Os ganhos com contratações desse tipo vão além. Os próprios clientes acabam se beneficiando, segundo André Neiva Tavares, um dos sócios da padaria Castália, também em Brasília. O empresário contratou um casal de venezuelanos — ele como padeiro e ela como atendente.

— O estrangeiro naturalmente desperta a curiosidade. Todos querem saber de onde é, por que veio, como é o seu país. Como ainda somos um país fechado, com pouco contato inclusive com os países vizinhos, ele acaba trazendo um ganho cultural imenso para os clientes e os demais funcionários. Quando ouvimos suas histórias, começamos a desfazer uma série de preconceitos e a entender melhor o mundo — avalia Tavares.


Reportagem: Ricardo Westin
Pauta, coordenação e edição: Nelson Oliveira
Coordenação e edição multimídia: Bernardo Ururahy
Edição de fotografia: Pillar Pedreira
Infografia: Diego Jimenez
Foto de capa: Pillar Pedreira/Agência Senado

Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado