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Pacote Anticrime: é possível fortalecer a polícia sem fragilizar os direitos humanos?

analuisaaraujo e Nelson Oliveira
Publicado em 29/10/2019
Edição 691
Direitos humanos

De um lado, policiais mal treinados, mal equipados e mal pagos, submetidos à rotina de uma das mais perigosas profissões do planeta. Do outro, a criminalidade bem armada e abastecida pelo dinheiro do tráfico, florescendo nas grandes cidades carentes de tudo.  No meio do fogo cruzado, comunidades pobres, obrigadas a viver num cenário de guerra.

Poderá o Pacote Anticrime, lançado pelo governo, enfrentar esses becos sem saída e abrir novos caminhos para a paz? É possível fortalecer as polícias e combater o crime, sem tirar das comunidades o direito a uma vida tranquila?

Entrevistamos um senador especialista em segurança pública e outro em direitos humanos. Ouvimos o relator de uma das propostas do governo, que também é um profissional da área. Recuperamos histórias de famílias desassistidas que perderam parentes inocentes, muitos deles muito jovens. Coletamos dados e conversamos com estudiosos.

Aqui vão os relatos das trincheiras.

 

  • Ágatha e Marcos Vinícius: símbolos de uma guerra sem fim
  • Que papel o Congresso joga nessa questão?
  • Outros retratos da violência urbana
  • Crianças de comunidades pobres do Rio convivem com o medo
  • Capitão da PM e senador analisa a atuação policial
  • Presidente da Comissão de Direitos Humanos exige cuidado
  • Ministério Público do RJ cobra diminuição da letalidade policial
  • O que diz o Fórum Brasileiro de Segurança Pública
  • Veja o manual de proteção à pessoa elaborado por um coronel da PM

Ágatha e Marcos Vinícius: símbolos de uma guerra sem fim

A morte de Ágatha Vitoria Sales, 8 anos, baleada no dia 20 de setembro durante um passeio com a mãe, na Zona Norte do Rio, tem a marca das tragédias recorrentes. Antes dela, outras crianças e adolescentes haviam se tornado vítimas do quadro histórico de insegurança pública na cidade, especialmente lesivo a uma série de grupos vulneráveis, como os idosos e os moradores de favelas. Estes reclamam não só dos criminosos, mas de ações da polícia consideradas intempestivas e arriscadas. A suspeita é que o disparo que matou Ágatha partiu de policiais militares em perseguição a traficantes.

De acordo com testemunhas, incluindo o motorista da Kombi que transportava Ágatha, não houve confronto entre a polícia e criminosos. Os PMs, contudo, afirmaram, em depoimento à Polícia Civil, que dispararam pelo menos duas vezes naquela noite para se defender de criminosos, inclusive do carona de uma moto que teria passado atirando no local onde a Kombi havia parado. O projétil encontrado no corpo de Ágatha não teve sua origem determinada, pois trata-se apenas de um fragmento.

Em outras cidades do Brasil, as cenas de guerra entre as forças de segurança e os bandidos afetam especialmente os moradores de comunidades pobres e urbanisticamente desorganizadas. É no Rio, entretanto, que essas mortes têm ganhado mais notoriedade. Marcos Vinícius Silva, 14 anos, morreu em junho do ano passado quando ia para a escola, atingido por disparo com origem em um blindado da PM popularmente conhecido como caveirão. Ainda consciente, disse à mãe: “O blindado atirou em mim. Eles não viram que eu estava de uniforme?”.

Bruna Silva, mãe de Marcos Vinícius, esteve no Congresso em outubro deste ano para pedir ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, que não aprovasse o Pacote Anticrime. A mulher, que fez da perda do filho uma luta, avisou: "Se essa Casa aprovar esse projeto, muito sangue será derramado".

No Senado, tramita uma réplica do pacote, que contém a ampliação, no Código Penal, da chamada excludente de ilicitude, mecanismo jurídico que permite ao juiz desculpar um crime com base em certas circunstâncias — no caso dos policiais, violenta emoção, medo ou surpresa diante do ataque de criminosos. Ao agir em legítima defesa, para defender uma vítima ou prevenir um crime, os agentes estariam atuando no cumprimento do dever. Logo, os excessos poderiam ser relevados pelos juízes.

Essa linha de pensamento tem recebido muitas críticas, inclusive dentro do Congresso, com base no argumento de que abriria espaço para abusos. No mínimo, reforçaria políticas de segurança de choque, consideradas menos produtivas que as de investigação e inteligência, e não cooperaria para pressionar o poder público a treinar melhor os policiais.

Que papel o Congresso joga nessa questão?

A excludente de ilicitude, um dos pontos do Pacote Anticrime do ministro da Justiça, Sérgio Moro, abranda punições, com base no Código Penal, para atos de policiais em situações como a que vitimou a menina Ágatha. Eles poderiam ter pena reduzida, e até não serem incriminados por força excessiva, caso matassem movidos por “escusável medo, surpresa ou violenta emoção". Na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, o ponto em questão foi retirado pelo grupo de trabalho que examinou previamente a matéria, mas o relator do projeto, deputado Capitão Augusto (PL-SP), defende a sua volta.

No Senado, onde tramita uma réplica do pacote, o relator da matéria, Marcos do Val (Podemos-ES), alterou a proposta de Moro. O senador propõe a supressão do termo “violenta emoção” e a troca do adjetivo “escusável” por “insuperável", conforme emenda, restando as hipóteses de medo e surpresa. O parlamentar manteve as circunstâncias de legítima defesa acrescentadas ao Código Penal para delimitar a ação específica de agentes de segurança pública, já que esse princípio vale para qualquer pessoa.

Estariam amparados pela legítima defesa:

  • O agente de segurança pública, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, que previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outra pessoa;
  • O agente de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes.

Em seu relatório, Marcos do Val refutou a presunção de que um policial não pode cometer excessos com base em medo ou outra emoção, uma vez que é treinado para atuar em situações de alta tensão. Para o senador, não há como medir emoções objetivamente. Além disso, argumenta , é "fato notório a atual incapacidade estatal de treinamento dos corpos policiais", entre outras "inúmeras mazelas que acometem a segurança pública do país".

No Senado, especialistas criticam pacote anticrime

Leia o relatório do senador Marcos do Val

Marcos do Val, relator do projeto anticrime no Senado: emoções não podem ser medidas objetivamente (foto: Marcos Oliveira/Agência Senado)

Outros retratos da violência urbana

 

Em janeiro do ano passado, Karolayne Nunes, 19 anos, que estava grávida de cinco meses, foi morta no mesmo local de Ágatha durante suposto confronto entre policiais militares e dois homens em uma moto, que teriam passado atirando para o alto. A mãe de Karolayne, Jaqueline Nunes, relata que, em razão das semelhanças entre os dois homicídios, se sensibilizou com o caso Ágatha. Ambos aconteceram no mesmo local e à noite.

Em Suzano, município de São Paulo, o vendedor de picolés Kauê Oliveira ficou preso injustamente por quatro dias por ter sido, junto com dois amigos, confundido com bandidos que assaltavam um posto de gasolina. O trio parou para abastecer, mas foi alvejado por guardas municipais, que acabaram matando Rodnei Alves e Bruno Nascimento. Até a namorada de um dos guardas morreu no fogo cruzado, enquanto os verdadeiros bandidos fugiram. Ao tentar deixar o carro, e com a mão ferida por bala, Kauê foi agredido a chutes e pontapés pelos guardas.

No dia 7 de abril, em Guadalupe, Zona Norte do Rio, soldados trafegando em um jipe do Exército dispararam 80 tiros contra um carro, no qual estava a família do músico e segurança Evaldo dos Santos Rosa, 51 anos, que morreu. No carro havia também uma criança de sete anos. Os soldados afirmaram suspeitar de que eram assaltantes.

Em 8 de maio, um helicóptero da Secretaria de Segurança do Estado do Rio, no qual estava o governador Wilson Witzel, sobrevoou a periferia de Angra dos Reis e fez vários disparos, inclusive contra uma tenda usada normalmente por evangélicos em peregrinações. Na ocasião, o governador anunciou uma estratégia de endurecimento: “Acabou a bandidagem. Vamos botar ordem na casa”. O sobrevoo foi criticado por especialistas e ativistas de direitos humanos por colocar em risco a população da área patrulhada.

Crianças de comunidades pobres do Rio convivem com o medo

Mensagens a autoridades pedindo a interrupção das operações policiais próximas a escolas


Capitão da PM e senador analisa a atuação policial

O senador Styvenson Valentim (Podemos-RN) tornou-se político nas eleições de 2018. Antes, trabalhara 16 anos como policial militar em seu estado. Os projetos de lei apresentados por ele são em grande parte sobre segurança pública. Em entrevista, o parlamentar diz o que pensa a respeito de pontos polêmicos que envolvem a ação da PM e os direitos humanos. Veja os principais trechos.

Senador Styvenson Valentim: a sociedade precisa entender as dificuldades da polícia (foto:Marcos Oliveira/Agência Senado)

Sociedade violenta

A violência policial, se é violência, é uma resposta à violência da sociedade. A sociedade está tão violenta que chega ao ponto da violência dentro das redes sociais...

Resposta policial

O policial não vai ficar apático [diante de uma agressão]. É o Estado que está sendo representado e, muitas vezes, representado com toda deficiência e precariedade. Porque a gente tem efetivo em defasagem, envelhecido, despreparado, mal equipado, mal remunerado, muito mal reconhecido.

A polícia não quer confronto. O confronto, para mim, era a última hipótese. Para os meus policiais, também. Policial inteligente trabalha para não ter confronto, trabalha com a inteligência e pouco se trabalha com a inteligência nas polícias.

Hoje a gente vive num estado de guerra. Eu, quando estava na rua, estava nessa situação. O bandido dentro de uma comunidade não recebe a gente com flores, não. Recebe a gente com .50 [calibre de alguns tipos de fuzis e metralhadoras]. E eles conhecem a área, conhecem o meio deles. Quando o policial fere alguém, normalmente feriu de que forma? Foi bala perdida, foi no combate, trocando tiro com o elemento. Qual é a situação? Não temos esses dados precisos.

Origem da violência

Para a segurança pública ser eficiente, seria preciso saúde eficiente, educação eficiente, moradia eficiente, direitos humanos eficientes, saneamento. Quando tudo isso falha, sobrecarrega a única ponta que funciona dentro das comunidades, que é a polícia. Crianças lá [nas comunidades pobres] convivem com violência, não só de polícia e bandido, não. É dentro de casa. Crianças são violentadas, crianças convivem com pai bêbado, pai morto ou mãe se prostituindo. Como é que você para o relógio do crime? Esse exército de elementos que partem para o crime surge de algum lugar, surge desses lugares.

Reprodução do crime

Existia [em Natal] uma boca de fumo numa rua com centenas de casas. A gente localizava a pessoa e prendia. Eu achava que eu estava resolvendo o problema da droga. Sabe o que acontecia durante um período? Realmente parava. Logo em seguida, naquela rua, abriam cinco, seis pontos de drogas. Se [a polícia] mata mais, porque não param [de cometer crimes]?

Câmeras ajudariam

A curto prazo, a solução [para o controle da atividade policial] seriam câmeras. O policial que trabalha certo não vai precisar ter medo. Pelo contrário. É um meio de provas para ele. O caso de Ágatha: se o policial tivesse uma câmera e tivesse filmado toda a operação, se teve a moto mesmo que passou correndo, se houve troca de tiro, não estaria registrado? Precisaria recolher a arma do policial?

Quando fazia operação da Lei Seca no Rio Grande do Norte, enchi de câmeras. E sabe o que o policial honesto dizia? Tem que filmar mesmo, capitão, porque tem muita gente aqui que oferece dinheiro, que se bate dentro do carro dizendo que a gente agrediu, que diz que a gente cometeu abuso, sem ter cometido. As filmagens [podem] servir de defesa.

"Investigação da morte de Ágatha seria facilitada pelo uso de câmeras", diz senador (Facebook)

Direitos Humanos

Sempre que falo de direitos humanos, eu falo que é direito para quem tem direito. Se o preso tem direito, dê direito a ele. Qualquer pessoa que tenha direito, dê direito. O desrespeito começa com o próprio Estado. Se a gente abrir a Constituição, está cheia de direitos humanos: à saúde, à educação, ao lazer, à proteção, à segurança pública. Tem direito demais. Nenhum é obedecido. Mas as pessoas só olham para os direitos humanos quando o policial acerta alguém ou mata alguém. Aí é direitos humanos. E a vida todinha que ele [o criminoso] não teve direito nenhum?

Ação social

Segurança pública é melhorar a vida das pessoas. Quando eu digo “melhorar a vida das pessoas”, o Bolsa Família é ínfimo.

Depois de um ano, dois, na escola, dando curso de música, teatro, tudo isso, aí você pergunta: “Você quer ser o quê agora?”. “Quero ser capitão, advogado, engenheiro”. Vê como você recuperou? Uma ação simples. Bogotá fez isso. Pernambuco fez isso: diminuiu em 44% a troca de bala entre bandido e polícia com ação social.

Próprias mãos

A população diz que “bandido bom é bandido morto”, que tem que matar, linchar. Por que a população lincha? Por que a população está tomando as rédeas e fazendo tudo isso? Porque o Estado falhou em tudo. Desde o momento em que nasce um ser humano sem acompanhamento, em condições de higiene desumanas.

Ruas X presídios

Às vezes, ir para um presídio é até melhor, porque ele [o criminoso] tem alimentação, tem local para dormir. Aí ele vai ser até obrigado a estudar. Tem dentista, tem médico, tem tudo o que nunca teve na rua. Veja bem como são as coisas: dentro do presídio, ele tem o direito dele garantido. “Não, mas o presídio é desumano, não sei o quê, o presídio tem que ter por lei”. Mas não é por lei também que todo cidadão tem direito à saúde, à educação, à segurança pública?

Situação degradante

Sou favorável a que se aumentem as penas, que as penas sejam muito mais rígidas, mais duras. Mas também precisa ver o processo todinho e onde vai colocar [os presos]. Porque não adianta a gente só tirar de circulação e jogar dentro de um alçapão — e de lá sair pior. Porque, se não, não teria reincidência, não estaria voltando ao presídio, não teria o cometimento do mesmo crime, não teria o aperfeiçoamento do crime dentro dos presídios. É imenso [o número] de pessoas analfabetas dentro do presídio. Então, se ele não teve alfabetização, se ele não viveu em sociedade, como um todo então ele não se socializou. "Ele viveu onde, capitão?" Ele viveu lá onde os esgotos são abertos, onde não tem banheiro para ele defecar, fazer xixi. Onde ele dorme com cinco, seis pessoas dentro de um espaço com um metro quadrado, com cavalo ou com burro — porque ele puxa a carroça no dia seguinte para poder ganhar a vida e, se botar o cavalo fora [do espaço], alguém rouba. Então, eles vivem uma situação degradante. Isso não é discurso de esquerda, não. Isso é discurso de quem viu com os próprios olhos e viu pelo lado da polícia. De quem levou muito tempo para entender que não era com violência que eu ia conter o que eles nunca tiveram.

Somos humanos

[Apresentei um projeto] do exame toxicológico para policiais, porque eu sei o número de policiais dependentes químicos. Você acha que é fácil lidar como esponja, absorvendo todo o problema da sociedade, e não se envolver? Eu dou só uma ocorrência minha aqui: uma criança de meses estuprada e você pega o estuprador. Violentaram uma senhorinha de 70, 80 anos — aí você prende a pessoa. Não existe máquina, não tem o Robocop que é frio. Isso é de ficção. Policial, juiz, todos eles têm uma carga de emoção, todos eles têm uma carga pessoal. O capitão Styvenson, por mais que se esforçasse às vezes, ou ele sentia pena, ou ele sentia dó, ele sentia raiva, ele sentia fúria, ele sentia alguma coisa. Somos humanos. Será que ninguém tenta entender as causas porque a violência policial aumenta?

Conheça a PEC 87/2019, que institui o exame toxicológico para policiais

Operações em comunidades

Você não tem como controlar uma entrada, uma impulsão dentro de uma comunidade com 50 policiais, com 20 policiais. Imagina aí como você faz. Por mais que você tenha tática, por mais que você tenha treinamento, na hora que abre fogo, é fogo à vontade. Ninguém vê em quem está atirando praticamente.

Identificar munição

Se o projeto de lei da gente de “chipar” a munição estivesse valendo, não precisaria nem fazer perícia de raias, porque a munição estaria identificada. [O poder público] saberia de quem vinha a munição. Começa a investigação assim. Não precisa chamar 20 policiais, saiu de uma arma só. Aí, por conta de uma ocorrência, uma bala perdida, chama todos os policiais da operação. Todos ficam expostos à mídia, porque todo policial agora vira assassino, vira bandido.

Se não leva [o corpo de um criminoso baleado para o hospital], é omissão. Se leva, mexeu na cena do crime. É a vida. Se eu efetuo um disparo de fogo, e tenho lá a pessoa ainda respirando, está agonizando, eu estou esperando a ambulância, ninguém mexe, espera. Eu tenho ali ainda um tempo curto para decidir muita coisa. Policial é assim, eu tenho pouco tempo, milésimos de segundo para poder tomar decisões.

Conheça o PL 603/2019, que trata da identificação e controle de munições

Vida de polícia

Policial vem de onde? Vem de outra galáxia? Botaram ele em um tubo do tempo e jogaram aqui? Ele vem da sociedade, que é violenta, que agora está aterrorizada, uma sociedade que é preconceituosa. A própria sociedade discrimina. Quem diz que policial tem que ter preparo, bons equipamentos e tem que ter salário, esquece de um fator, que é o principal, e não vejo em canto nenhum: quem é que cuida da saúde mental desse policial? Ninguém cuida. A quantidade de policiais se suicidando está maior do que morrendo. O policial, como vem da sociedade aterrorizada, tem que dar uma resposta, porque é pressionado para dar resultado. A maior parte das perdas de vida por combates [envolvendo] policiais, é por resistência à prisão. É o que diz lá, é o que está lá nos relatos.

Tropa na comunidade

A gente quando entra na comunidade, entra muitas vezes sem formação. E sabe o que é pior? Quando começava o tiroteio, o povo [ao invés] de se esconder, de entrar para casa, de se abaixar, aí que saía, botava a cabeça assim para ver o que era. Por Cristo. Eu dizia: "Gente, não atira, não, que o povo está correndo no meio da rua". Ainda tinha que fazer isso. Eu levando bala, debaixo de bala, ainda tinha que pensar na população: “Espera aí, que tem menino apanhando a bicicleta que esqueceu na rua, pegando as havaianas”.

Barreiras policiais

Cidadão de bem não é para correr da polícia, não. Não é para furar a barreira policial, não. Quem corre da polícia, foge da polícia, é quem está com algum problema. Muitas vezes, eu fazendo blitz, o pessoal furava barreira, por estar bêbado ou com a habilitação vencida. Olha o risco que você corre, cidadão. Furar a barreira policial, botar em risco a vida dos policiais, os policiais aterrorizados. Aí abria fogo no carro, era o quê? Era só um adolescente. Você é um policial que está ali a noite toda, tenso, esperando o quê? O pior. A gente não se coloca um momento no lugar do policial. A gente se coloca no lugar de quem? Do que ouve a entrevista, do que vê a entrevista friamente e decide e julga.

Eficácia das leis

Ou a gente busca uma legislação eficiente, uma legislação inovadora, ou a gente vai ficar nesse sonho que é o mundo das leis, do direito. No mundo real, nada disso acontece, nada chega para a população.

Terno x farda

Usar uma farda de PM não é para todo mundo, não. Por isso tem que ter acompanhamento médico, auxílio-psiquiatria, auxílio-rivotril, auxílio-doença. Quem lida com esse tipo de trabalho deveria ter um plano de saúde muito bem pago, um hospital só para eles, porque não é normal. Depois que entra, não fica normal. Você deve estar se perguntando se eu fiquei normal. Não, nunca fiquei normal depois do que eu vi. Eu tenho insônia, eu tenho bruxismo, tenho muita doença. Eu era uma pessoa normal e tive contato com um nível de violência que nunca vi na vida. Eu nunca fui de gabinete. Esse negócio aqui, para mim, chega dar um cansaço. Esse ambiente aqui para mim, esse ambiente de ar-condicionado. Na verdade, o que você está vendo é o senador. Eu me vesti para ser senador. Na verdade, o de verdade era de farda, o real era de farda, essa roupa aqui é só ficção.

Excludente de ilicitude

As excludentes que existem no Código Penal já são suficientes, já suprem. O Pacote Anticrime, no que eu vejo, todo trabalho legislativo que fizer para conter a criminalidade é bem-vindo... Segurar, prender, parece que a polícia faz bem, mas depois é preciso julgar, penalizar e ressocializar.

Styvenson Valentim, ainda com a farda da PM: o crime nasce da desigualdade social (foto: Arquivo Gabinete Senador Styvenson)


Presidente da Comissão de Direitos Humanos exige cuidado

O senador Paulo Paim (PT-RS) é o presidente da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH). No ano passado, coordenou duas audiências públicas sobre o tema “Segurança Pública, com foco nos direitos humanos”. Ele critica o Pacote Anticrime e ações como o uso de helicópteros policiais em comunidades.

Senador Paulo Paim: o filho do rico que trafica e tem recursos para pagar um advogado não é preso (foto: Geraldo Magela/Agência Senado)

Pacote Anticrime

Somos a favor de toda iniciativa que tenha como intenção combater o crime e a violência. Não é uma matéria fácil de ser aprovada, precisamos ter todo cuidado porque não pode deixar que mais uma vez o alvo sejam os filhos dos favelados. Pessoas desse grupo procuraram a comissão [de Direitos Humanos]. Não vai ser o filho do rico que trafica e tem recursos para pagar um advogado que vai ser preso, esse vai ficar para sempre impune. Desde o momento em que começou a mudar essa política e [houve] mais violência da polícia, quem morreu, quem foi assassinado, quem foi espancado foram os mais pobres. Como sempre acontece nesse país, toda vez que há uma mudança na política, quem paga a conta são os mais pobres, da classe média para baixo.

Segurança eficiente

Acho que é preciso pensar em um novo modo de fazer segurança pública. [...] Não adianta só montar mais presídios. Tem cada local que os presos ficam... As informações que chegam na Comissão de Direitos Humanos: tem rato, tem tudo que se imaginar dentro daquelas celas. Celas onde cabem dez pessoas têm 50. Isso tudo mostra como [o modo de combater] a violência no Brasil, ou tem uma mudança profunda, uma nova estrutura humanista que olhe para as pessoas de forma humanitária, com políticas preventivas para não entrarem na linha do crime e da droga, ou não vai resolver.

Enquanto não combatermos os preconceitos e olharmos além do horizonte, partindo para a educação e reeducação até da nossa gente, nós não vamos combater a violência no país como outros países combatem. Japão, Itália, Alemanha, França, países mais desenvolvidos, apostaram mais na educação para combater a própria violência.

Rio de Janeiro

O caso do Rio de Janeiro foi sempre deixado ao léu. Não houve um investimento, uma atenção capaz de enfrentar a questão de uma estrutura mais voltada para as comunidades mais pobres. E hoje acham que colocar um atirador em um helicóptero vai resolver a questão da violência. Não vai. É matar inocentes. Vão matar muitos inocentes, como é o caso da menina Ágatha.

Ministro da Justiça, Sérgio Moro: defesa do Pacote Anticrime como fator crucial para a redução da criminalidade (foto: Alan Santos/PR)


Ministério Público do RJ cobra diminuição da letalidade policial

A Agência Senado indagou o Ministério Público do Rio de Janeiro sobre qual é o papel do órgão no controle da atividade policial. Em nota, o MPRJ respondeu que o Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (GAESP/MPRJ) atua em inquéritos policiais que apuram homicídios decorrentes de intervenção policial, principalmente nos casos nos quais as vítimas não tinham qualquer envolvimento com o crime.

O GAESP instaurou um inquérito civil para apurar o aumento da letalidade policial no Estado. Cobrou ainda do governo do Estado do Rio de Janeiro e das Polícias Civil e Militar um plano para redução da letalidade das forças policiais. O prazo de resposta ainda não acabou.

A assessoria de comunicação do MPRJ citou o caso da Favela Nova Brasília, localizada no Complexo do Alemão. Em 1994 e 1995 policiais civis do Rio foram responsáveis por 26 execuções extrajudiciais, com elementos de tortura e violência sexual. O caso foi julgado, em 2017, pela Corte Interamericana dos Direitos Humanos, instituição judicial da Organização dos Estados Americanos, que condenou o Brasil. Segundo a organização, o país tem de tomar providências para a redução da letalidade policial.


O que diz o Fórum Brasileiro de Segurança Pública

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública é uma organização sem fins lucrativos que visa aprofundar o conhecimento e contribuir para a elaboração de políticas públicas sobre a área. Edita o Anuário Brasileiro de Segurança Pública e a Revista Brasileira de Segurança Pública, entre outras ações. O coordenador de projetos da instituição, David Marques, fala sobre as consequências das políticas adotadas no Rio de Janeiro e da situação da segurança pública no Brasil.

Pacote Anticrime

A justificativa para a ampliação dos casos de excludente de ilicitude vão dar [na] não investigação dos casos. Se a gente já tem um cenário em que poucos casos são de fato investigados, isso fragiliza muito o campo e abre muita margem para desvios.

A posição hoje do Ministério da Justiça está se dando muito mais no sentido do afrouxamento dos controles do que no investimento nas organizações policiais, e mais especificamente nos profissionais, para que de fato a gente tenha policiais melhor treinados, para que eles tenham procedimentos padronizados, para que a polícia se profissionalize.

Mortes provocadas

Segundo uma métrica internacional, se você tem mais de dez mortes decorrentes de intervenção policial a cada 100 mortes violentas intencionais, você tem uma situação de uso excessivo de força policial. Em 2016, a gente tinha nove estados nessa situação. Isso indica que a gente tem um problema mais grave de atuação policial nesses estados. Naquele momento, a gente tinha dez estados nos quais a taxa de mortes decorrente de violência policial estava reduzindo.

Letalidade policial

Desde 2017 e 2018, o problema da letalidade policial está se concentrando cada vez mais em alguns estados. Então, a gente tem estados como Rio de Janeiro, São Paulo, Pará, nos quais a proporção de mortes pela polícia é muito alta quando você compara com outros índices em geral.

Números do primeiro semestre de 2019 mostram que o número de unidades da Federação com redução de mortes violentas cometidas por policiais já estava em 15. São indicativos de que talvez a gente esteja trilhando um caminho melhor nesse aspecto.

Investigação e inteligência

No começo desse ano, teve apreensão de dezenas de fuzis, que estavam vindo dos Estados Unidos para o Rio de Janeiro e foram apreendidos no aeroporto internacional. Tudo isso foi apreendido sem disparar um tiro sequer, tudo feito com base em investigação e inteligência, desarticulando o poder de fogo dessas organizações criminosas, por um lado, e conseguindo a prisão da pessoa que era responsável por esse tráfico lá nos Estados Unidos.

Polícia sob controle

Diversos estudos já mostraram que bastava o policial dizer que naquela ocorrência estava um bandido e que ele resistiu à prisão para que essa ocorrência não fosse investigada. A gente não sabe, dentro das 6,2 mil mortes que aconteceram em decorrência de atividade policial em 2018, em quais casos houve o uso excessivo ou abusivo da força policial, que pode decorrer de falta de treinamento, de preparo psicológico do policial em determinada situação. A gente não sabe dizer quanto desse total é relativo, por exemplo, a ação ilegal, a execuções extrajudiciais e atividade criminosa. O que a gente tem defendido é que, para uma democracia funcionar bem, a sua polícia deve estar sob controle. Caso contrário, você cria essas situações de fortalecimento de milícias.

Operações de choque

Há outras formas de fazer a diferença no combate ao crime que não dependem necessariamente desse tipo de enfrentamento. A gente precisa chamar a atenção para a necessidade de mais investigação, de mais inteligência. É importante para que possamos tornar sustentável a redução da criminalidade que a gente verificou em 2018.

UPPs como solução

Quando a gente analisa o caso do Rio de Janeiro, apesar das críticas [às Unidades de Polícia Pacificadora], a inovação foi a ideia de ter um policiamento que de fato se territorializa. A ideia de que os policiais de determinada região não fossem policiais que só passassem por ali dentro de uma viatura, mas policiais que de fato conhecessem a comunidade, as pessoas, os problemas dali, com a instalação das unidades. A partir da presença física dos policiais ali, da ocupação constante do território, passar a ser desnecessário esse tipo de operações constantes.

Exposição midiática

O cenário hoje se dá sobretudo em função do midiatismo que isso gera, da visibilidade que isso gera. Cada vez mais, você tem operações que, no caso carioca, são conduzidas por uma polícia ou outra polícia. Raramente, você vai ver uma operação de articulada entre duas polícias.

Procedimentos policiais

O caminho a ser perseguido é o de profissionalização do policiamento — e não afrouxamento das regras que vão conduzir esse processo, quando isso se tornar uma investigação, uma apuração. Aqui em São Paulo, temos o método Giraldi, chamado assim por conta do coronel que o criou, inspirado em práticas de policiamentos internacionais, [que orienta a instituição a] treinar exaustivamente seu policial em determinadas situações, para que a resposta dele já esteja em grande medida padronizada para atuar em contextos de alto nível de risco, estresse e vulnerabilidade, tentando controlar ou diminuir a influência dessas emoções.

Redução de homicídios

Se você olhar as estatísticas de homicídio mês a mês nos últimos três anos, vai identificar que os primeiros sinais da queda aconteceram já nos últimos meses de 2017. A gente já tinha diversos estados que estavam em um caminho de redução. Então é esse processo cumulativo que vem entregando resultados mais evidentes em 2018 e continuados agora em 2019. E como qualquer fenômeno social, a violência depende de múltiplas variáveis. Uma delas, de fato, é a atuação do poder público [federal]. Mas olhando para o nosso ordenamento jurídico, também tem muito a atuação dos estados. Você teve a implementação de diversos programas.

Olhar técnico

Transformar a segurança pública em uma política pública de fato é ter um olhar mais técnico para essa situação: entender as políticas que estão sendo implementadas, monitorar e avaliar acertos e erros para tornar a redução da criminalidade e da violência no Brasil um fenômeno sustentável.


Reportagem: Ana Luisa Araujo (sob supervisão) e Nelson Oliveira
Pauta, coordenação e edição: Nelson Oliveira
Coordenação e edição de multimídia: Bernardo Ururahy
Edição de fotografia: Pillar Pedreira
Infografia: Diego Jimenez
Foto de Capa: Mariana Gil/WRI Brasil

 

Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado