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Na fronteira da barbárie

 

Ocorrência de crimes violentos choca a sociedade e leva o Senado a debater alternativas para diminuir delitos cruéis e contra a vida

Nelson Oliveira
Publicado em 18/7/2019
Edição 684
Violência

“Queria saber como é matar alguém.” Essa foi a justificativa apresentada pelo autor de um dos inúmeros crimes bárbaros cometidos no Brasil de 2018 para cá: o assassinato de Yasmin da Silva Nery, 16 anos, em Araraquara (SP), no dia 9 de junho. Com o auxílio da namorada, um adolescente de 17 anos enforcou e esquartejou a vítima. Depois espalhou os pedaços do corpo em vários locais da cidade.

Sete dias antes, e a 668 quilômetros dali, em Samambaia (DF), Rhuan Maycon da Silva Castro, de 9 anos, havia sido esfaqueado, queimado e esquartejado pela própria mãe e a companheira dela. Um ano antes do assassinato, o menino tivera o pênis mutilado. Em depoimento à polícia, a mãe alegou que matou o filho por ter sido tratada com violência pelo pai e o avô paterno de Rhuan.

Como as estatísticas sobre criminalidade no Brasil ainda apresentam lacunas importantes — e, por uma questão de rigor metodológico, não se utilizam da classificação “crime bárbaro” —, mortes com ingredientes de crueldade não são facilmente visualizadas nos levantamentos de dados. Não há, portanto, como saber se o país está diante de uma onda de crimes mais violentos que o padrão, já bastante violento, da criminalidade no Brasil ou se tudo não passa de distorção midiática.

O fato é que essas ocorrências, atribuídas muitas vezes a transtornos de personalidade, causam grande dor e prejuízo às vítimas e às pessoas próximas — o que não é medido por estatísticas —, além de exercerem um forte poder sobre o imaginário do público. Cada barbaridade parece superar a outra. E a cada ocorrência, a população se diz chocada e clama por providências.

Ação da ONG Observatório de Favelas realizada no centro do Rio de Janeiro chama a atenção para as vítimas de crimes fatais (foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Paradoxalmente, o concurso macabro de assassinatos tem convivido no noticiário com indícios de que o número geral de mortes violentas intencionais está caindo. No dia 12 de junho, o Ministério da Justiça divulgou estatísticas do recém-criado Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp) que registram uma queda de 23% no número de homicídios dolosos no primeiro bimestre deste ano: 6.543 casos no cômputo de janeiro e fevereiro contra 8.498 no primeiro bimestre de 2018.

O país vinha acompanhando com ansiedade a curva ascendente dos homicídios de um modo geral. As chamadas mortes violentas intencionais haviam atingido 61.597 casos em 2016 e passaram a 63.895 no ano seguinte, aumento de 3,7% que se aplica aos homicídios dolosos, latrocínios, lesões corporais seguidas de óbito e mortes em decorrência de intervenções policiais em serviço e fora dele.

No que se refere particularmente aos dolosos, os registros haviam passado de 54.338 em 2016 para 55.900 no ano seguinte — aumento de 2,9%, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. De acordo com o Sinesp, no entanto, em 2017 o total dos homicídios teria caído para 53.404 casos — diferença de 2.496 ocorrências em relação aos dados do fórum.

Divergências estatísticas à parte, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, credita a queda à “atuação integrada entre governo federal e governos locais”.

Para o consultor do Senado na área penal Tiago Ivo Odon, a curva descendente dos homicídios é positiva, mas suas razões ainda estão para ser totalmente esclarecidas. Uma possível causa pode ser a adoção de programas de segurança pública por parte de alguns estados, com foco na resolução de assassinatos.

De acordo com o Monitor da Violência, informe produzido pelo site G1, as administrações estaduais ultimamente mais bem-sucedidas no combate aos crimes contra a vida relataram um conjunto de ações disciplinares mais rígidas em presídios, como revistas frequentes e isolamento ou transferência de chefes de grupos criminosos para presídios de segurança máxima. Mencionaram ainda a adoção de secretaria exclusiva de administração penitenciária; a “integração entre as forças de segurança e Justiça” e a instalação de delegacias voltadas à investigação de homicídios, uma recomendação antiga de estudiosos, conforme observa Odon.

— Os chamados crimes bárbaros, como o do menino Rhuan, na verdade são aleatórios e raros. É claro que a imprensa capitaliza em cima. Mas eles fogem da média, e sempre que acontecem impressionam a opinião pública. O problema é que quando você olha para os crimes violentos de uma forma geral, nosso sistema [segurança pública] não lhes dá prioridade — observa o consultor.

Ele vê como negativo o excesso de foco no encarceramento de traficantes de pequeno porte, que superlotam as unidades prisionais e acabam por fazer ou aprofundar sua ligação com facções. Enquanto isso, faltam vagas para isolar criminosos mais perigosos — sejam eles participantes de grupos de extermínio, autores de latrocínio ou cidadãos que matam cônjuges, parentes ou vizinhos.

"Se o sistema penal está prendendo muito sem que o mercado de drogas esteja encolhendo, há um problema", questiona Odon no Texto para Discussão Pequenos traficantes, prisões cheias e uma lei ineficiente: como mudar o alvo de nossa “guerra às drogas”, publicado pela Consultoria Legislativa do Senado.

Infelizmente, a violência que cruza a fronteira da barbárie não se resume a assassinatos cruéis numa sociedade que ainda convive com cerca de 80 mil pessoas desaparecidas anualmente. Passa igualmente pela lesão corporal seguida de morte, pelos estupros, que só aumentam, e se mescla a uma série de atos indignos da condição humana, entre os quais os ataques com ácido, os atropelamentos de moradores de rua e as humilhações de mulheres e cidadãos de outros gêneros no campo da sexualidade.

De calouras de faculdade sendo obrigadas a recitar frases pornográficas nos famigerados trotes à pediatra que teve seu nome associado à prostituição pelo ex-marido inconformado, a base cultural que fomenta os atos ultraviolentos encontra eco em debates nas redes sociais. Em postagem recente no perfil do Senado no Facebook, dezenas de internautas mostraram desdém em relação ao feminícidio e à lei que qualificou o homicídio de mulheres quando praticado para impedir sua autonomia.

Em março, a ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, disse na ONU que o Brasil “sofre hoje verdadeira epidemia de crimes violentos contra mulheres e meninas”, apesar da legislação “avançada”, que inclui as Leis Maria da Penha (de 2006) e do feminicídio (de 2015). O país está “muito aquém do desejado” no combate à violência contra a mulher, disse Damares, conforme o jornal O Globo.

Apesar da evidente fragilidade de mulheres e crianças, muitas destas arrastadas para morte pelas tempestades nos relacionamentos entre os pais, os homens também figuram entre vítimas recentes. Foi o caso de um policial militar do interior de São Paulo, morto a marretadas a mando da namorada por seu envolvimento amoroso com a filha dela.

O assassinato de Rhuan é mencionado pela senadora Soraya Thronicke (PSL-MS) como parte de um quadro “insuportável” e que exige respostas duras em termos de isolamento de criminosos. Seguindo essa abordagem, tramitam no Senado duas proposições.

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 47/2019, de autoria do senador Lasier Martins (Podemos-RS), prevê regime integralmente fechado para condenados por crimes hediondos cometidos com violência contra a pessoa. Assim, os condenados pelos crimes de homicídio qualificado, homicídio praticado em atividade típica de grupo de extermínio, latrocínio, extorsão qualificada pela morte, extorsão mediante sequestro, estupro e estupro de vulnerável não poderiam pedir a progressão de pena para um regime aberto ou semiaberto.

A mudança na Constituição seria necessária, dada a decisão de 2006 do Supremo Tribunal Federal (STF) que invalidou o regime inicial fechado previsto na Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072, de 1990), garantindo aos juízes a prerrogativa de avaliar a progressão de regime individualmente. A tipificação do homicídio qualificado — caso dos episódios de crueldade e barbárie — como crime hediondo data de 1994. Decorreu de emenda popular motivada pelo assassinato da atriz Daniella Perez, em 1992, com 18 tesouradas, pelo ator Guilherme de Pádua e a namorada dele, Paula Thomaz.

“A única maneira de endurecer a resposta penal para esses crimes que chocam a nossa sociedade pela brutalidade e violência é por meio de alteração do próprio texto constitucional”, escreve Lasier na justificativa da PEC. “Na prática, o autor de um crime violento pode começar no semiaberto. E se for condenado a mais de 8 anos, sendo réu primário, pode migrar para o semiaberto cumpridos 2/5 da pena”, reclama o parlamentar.

Guilherme de Pádua foi julgado antes da regra dos 2/5 e condenado a 19 anos e 6 meses de prisão, mas cumpriu apenas 6 anos. O mesmo ocorreu com o ex-goleiro do Flamengo Bruno Fernandes, que acaba de migrar para o "semiaberto domiciliar". Em 2013, ele foi condenado a 17 anos e 6 meses em regime fechado por homicídio triplamente qualificado da sua ex-amante Eliza Samúdio, cujo corpo, desaparecido em 2010, jamais foi encontrado. Ele chegou a ser solto por liminar do STF em 2017, ensaiou uma volta ao futebol, mas retornou à prisão, depois de cassada a liminar. Não chegou, portanto, a ficar seis anos preso. A mãe de Eliza, Sônia Moura, declarou à imprensa estar indignada com a progressão concedida a Bruno.

Apresentado pela senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), o Projeto de Lei 1.864/2019, que tem o mesmo texto do pacote anticrime de Sergio Moro, prevê a progressão para o regime semiaberto somente após o cumprimento de 3/5 (três quintos) da pena para condenados por crimes hediondos, quando o resultado envolver a morte da vítima. Atualmente, por força da Lei 13.769/2018, a progressão a partir do cumprimento de 3/5 da pena somente é possível em caso de reincidência.

— O plano que o governo tem para a segurança pública é armar a população e endurecer penas. Não tenho nada contra endurecer penas. Agora, ofereçam instituições e equipamentos que recuperem essas pessoas — contrapõe a senadora Zenaide Maia (Pros-RN).

Ela apresentou a PEC 44/2019, que prevê a obrigatoriedade de a União repassar, a princípio, 1% da Receita Corrente Líquida (RCL) ao financiamento do Sistema Único de Segurança Pública (Susp) a cada ano.

A falta de recursos para as polícias é criticada também por Soraya Thronicke. O senador Paulo Rocha (PT-PA) reivindica investimentos em inteligência, “como forma de desmontar milícias e organizações de narcotráfico”. Ele é igualmente otimista em relação a programas bem conduzidos de recuperação de presos, assim como Zenaide Maia.

Além das restrições à progressão de regime, Soraya Thronicke defende a aprovação do PLS 580/2015. Apresentado pelo então senador Waldemir Moka, o texto obriga o preso a ressarcir o Estado das despesas com a sua manutenção. A senadora lembra que a Lei de Execução Penal (LEP) obriga o preso a trabalhar.

— Já vimos que não deu certo sendo um pouco mais flexíveis, aí vamos flexibilizar? Vai adiantar? Vai adiantar educação, flores e livros? — questiona Soraya.

Senadores analisam propostas para combater crimes contra a vida

Analisando as possibilidades de mudança na legislação, a consultora do Senado na área penal Juliana Magalhães explica que o espaço para aumento de pena praticamente não existe mais, restando as restrições à progressão de regime, se a ideia é aplicar mais rigor aos condenados. Os crimes hediondos já não são suscetíveis de fiança e indulto. E têm suas penas majoradas em razão de agravantes, como o assassinato de descendente, e circunstâncias qualificadoras, como o motivo fútil. Mesmo a tramitação mais rápida de processos já está prevista nesses casos.

— Há muito pouco para se fazer e, como jurista e cidadã, eu encaro como positivo esse aspecto — resume.

Tiago Ivo Odon sugere cautela com o rigor das penas, ao mesmo tempo em que pede a valorização dos instrumentos de ressocialização, como as saídas temporárias e o uso de tornozeleiras eletrônicas, desde que aplicados com correção. Assim como Juliana, ele entende ser fundamental o investimento de recursos no aparato de investigação e de punição de crimes de uma maneira geral, mas principalmente dos violentos e contra a vida.

— A certeza da punição é um grande desestímulo ao delito, mas no Brasil apenas algo entre 5% e 8% dos crimes são esclarecidos, isto é, convertem-se em denúncia à Justiça por parte das promotorias — assinala Odon.

O resultado é que indivíduos perigosos ficam à solta e, em muitas situações, as mortes se multiplicam em razão de vinganças, já que a Justiça tarda em punir e, proporcionalmente, pune muito pouco os autores de homicídios.

Se o isolamento de indivíduos perigosos, pelo menos enquanto não se avalie com rigor se podem voltar à sociedade, é a saída quando os crimes já foram cometidos, que instrumentos podem contribuir para que não aconteçam?

— Só se diminui violência com investimento em ciência e tecnologia, novas técnicas. Não é só policial marchando e atirando. Estão aí as câmeras que elucidam muitos crimes — pondera Zenaide Maia. Na opinião dela, o ensino integral pode impedir que jovens e adolescentes sejam cooptados por quadrilhas.

Conforme o consultor do Senado, o policiamento comunitário, previsto nas regras de liberação de recursos para o rateio dos recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública (Funasp) entre os estados, é uma alternativa interessante. Esse modus operandi aumenta as chances de prevenção de delitos, inclusive por meio do diálogo com potenciais infratores.

Talvez uma vigilância amigável, mas firme, pudesse ter evitado a trágica morte de Vanderléia Inácio dos Santos, 25 anos, moradora de Sete Barras (SP). Em 15 de junho, ela foi assassinada com três tiros no rosto por ter levado um bolo a uma festa junina, em vez de salgados. O suspeito de ter cometido o crime, um homem de 47 anos, discutiu com a vítima porque ela teria prometido um tipo de prenda e levado outro. O homicídio se deu na presença dos filhos da Vanderléia, crianças de 8, 6 e 4 anos e um bebê de 10 meses.

Baixa eficiência

A resolução de crimes é um dos maiores mistérios da segurança pública no Brasil. A faixa de eficiência de 5% a 8% de casos resolvidos, além de muito baixa, tem na sua imprecisão o primeiro indicativo de que há muitas falhas no campo da investigação e na coleta e tratamento de dados estatísticos. Na verdade, o intervalo de 5% a 8% é uma estimativa feita por peritos criminais.

Um delito pode ser considerado resolvido quando há materialidade, ou seja, quando a autoridade policial constata de forma inquestionável que houve crime, e, ao mesmo tempo, tem certeza ou grande convicção da autoria, por meio de provas e ou indícios. O passo que sela a resolução do delito é o envio do inquérito policial à Justiça pelo Ministério Público, na forma de denúncia, por entender a promotoria que a investigação contém os elementos fundamentais para a abertura de um processo.

Como faltam inventários exaustivos sobre a abertura de inquéritos policiais, seu desenrolar e o destino final deles, o aparato policial e judicial não tem sequer instrumentos para medir corretamente o trabalho que está fazendo. Tampouco a sociedade e os pesquisadores têm como avaliar se o sistema de polícia e Justiça criminal está apurando e punindo adequadamente.

Na tentativa de superar esse deficit informacional, o Instituto Sou da Paz procurou levantar junto aos ministérios públicos estaduais a quantas anda a solução de homicídios no Brasil. Apenas cinco estados atenderam ao pedido de dados relativos a 2015. A taxa média obtida foi de 20,7% de inquéritos de homicídios que acabaram sendo enviados para exame da Justiça, sendo que a taxa do Pará foi de 4,3%; a de São Paulo, 36,8%, e a de Mato Grosso do Sul, 55,2%. É um patamar muito distante dos 64% dos Estados Unidos e dos 96% da Alemanha.

“Hoje o Estado brasileiro não cumpre o papel que lhe delega a nação de assegurar o direito à vida e a responsabilização por mortes violentas. Milhares de brasileiros possuem amigos ou parentes que foram assassinados, e centenas cobram uma resposta da Justiça. É hora de implementar políticas públicas efetivas para conter a impunidade e oferecer uma contraprestação estatal às vítimas; caso contrário assistiremos à crescente deterioração da segurança pública”, afirma o Instituto Sou da Paz no documento “Onde Mora a Impunidade? — por que o Brasil precisa de um Indicador Nacional de Esclarecimento de Homicídio”.

No entender dos dirigentes do instituto, a ferramenta deveria ser gerida “por um órgão federal capaz de mobilizar agentes dos sistemas de Justiça e Segurança estaduais”, podendo ser o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) ou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Esse caminho envolveria medidas como a padronização e a interligação de bases de dados entre as polícias civis, as secretarias de Segurança Pública estaduais, os ministérios públicos estaduais e o órgão centralizador. Hoje cada ente trabalha com um sistema de informatização. E quase sempre de maneira precária.

Na prática, as ocorrências, com seus dados básicos (nome da vítima, local, número do inquérito policial e o estágio de apuração ou encaminhamento à Justiça) deveriam ficar disponíveis de forma transparente numa plataforma acessível a todos os órgãos envolvidos e à sociedade, de modo que se pudesse aquilatar a eficiência do sistema e cobrar providências dos responsáveis, quando fosse o caso.

A fórmula matemática para medir essa eficiência é uma divisão simples do número de denúncias encaminhadas à Justiça pelo número de ocorrências registradas a cada ano pela polícia, com o resultado na forma de percentual. É claro que nem sempre um crime é esclarecido no espaço de um ano, mas outros países que já utilizam esse sistema (Estados Unidos, Canadá e Japão, por exemplo) têm mecanismos para ponderar o número de pendências.

“Muitas autoridades policiais balizam a qualidade de investigações pelo percentual de inquéritos policiais relatados com autoria e materialidade delitiva, dado que não é disponibilizado para a população e traz mensuração fraca do grau de impunidade no país, já que em muitos casos chega-se à autoria, mas o responsável não é denunciado por já ter falecido, por provas insuficientes ou devido à prescrição da pretensão punitiva”, afirma o relatório.

Especialistas apontam a necessidade da integração das bases de dados policiais e de segurança (foto: Governo do Espírito Santo)

As falhas na coleta de provas devem-se à falta de recursos técnicos e humanos, que, no fundo, revelam as carências orçamentárias do setor de segurança pública ou a má distribuição das verbas disponíveis. Tradicionalmente, o país destina mais dinheiro à repressão do que à investigação. Daí a preponderância de provas testemunhais, menos confiáveis, sobre aquelas obtidas por meio de perícia, o que perturba até mesmo a apuração dos crimes mais fáceis de resolver: aqueles cometidos dentro de casa ou na vizinhança, pela maior facilidade de apontar os culpados.

Para o presidente da Associação Brasileira de Criminalística — Seção DF, Thiago Barbosa, não há dúvida de que os índices de resolução de crimes são muito baixos no Brasil e que os dados divulgados não oferecem ainda a abrangência e a acuidade requerida em termos estatísticos. Ele aponta deficiências como falta de pessoal especializado, baixa remuneração e falta de estrutura como fatores que atrapalham e até impedem as investigações.

Uma das dificuldades mais comuns no Brasil é a falta de preservação do local do crime nas condições em que estava quando o ato foi cometido. Provas podem ser destruídas voluntária ou involuntariamente por pessoas que circulem na área.

— Muitas vezes os locais não são preservados porque os peritos precisam de uma equipe de apoio, mas esta não atende ao chamado para evitar que a delegacia fique sem ninguém — exemplifica Barbosa.

Preservação do local do crime é fundamental para se chegar aos culpados (foto: Divulgação/Prefeitura de Maringá)

O que pode mudar na legislação

A criação de um Indicador Nacional de Esclarecimento de Homicídios poderá ser em algum momento examinada pelo Senado. É que tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 10.026/2018, do deputado Ivan Valente (Psol-SP), que determina a publicação de informações anuais com dados sobre esclarecimento de homicídios dolosos e outros crimes violentos letais.

“O indicador, segundo Valente, vai demonstrar qual proporção das investigações de homicídio gera uma ação penal, qual o desfecho dessa ação e qual a estrutura existente para promover a investigação de crimes letais”, informa a Agência Câmara. “Será possível dar transparência e permitir o controle social sobre a destinação de recursos materiais e humanos para a segurança pública.” Na opinião do deputado, o indicador permitirá medir se os gestores estão priorizando a investigação daqueles crimes “que mais trazem sofrimento à sociedade”.

O objetivo é reunir e monitorar dados sobre os resultados dos inquéritos policiais de homicídios nos estados. Assim será possível identificar os estados com o melhor desempenho para sistematizar e disseminar boas práticas e redirecionar recursos para os estados e cidades com pior desempenho.

À espera de relatório do deputado Capitão Augusto (PR-SP) na Comissão de Segurança Pública, o PL 10.026 prevê que os órgãos da Justiça criminal deverão informar:

  • Percentual de inquéritos de crimes violentos letais com autoria em relação ao total, por tipo penal;
  • Número de delegacias, laboratórios de perícia e policiais especializados em investigação de homicídios;
  • Duração média da investigação policial;
  • Número de audiências de instrução de homicídios;
  • Número de tribunais do júri instalados para homicídios;
  • Estoque de processos de crimes violentos letais abertos por instância.
  • Percentual de ocorrências desse tipo de crime que geram denúncias criminais em relação ao total; e
  • Número de promotores estaduais nas varas do júri e proporção para cada 100 mil habitantes.

Criminalidade violenta e corrupção, alvos preferenciais

Estados vão repartir R$ 247 milhões arrecadados por loterias

Diante de demandas complexas e urgentes em matéria de segurança pública, os primeiros seis meses do governo Bolsonaro apresentaram um quadro de muita indefinição — em parte provocadas pela disputa de agendas, já que o Congresso está às voltas com a reforma da Previdência e o início das discussões sobre a reforma tributária.

A nova gestão atacou em duas frentes. Enquanto o presidente procurou liberar o acesso a armas pelos cidadãos por meio de decretos contestados pelo Legislativo, o ministro da Justiça, Sergio Moro, enviou à Câmara um pacote anticrime, que também está tramitando no Senado com a assinatura da senadora Eliziane Gama.

Entre as medidas administrativas, Moro começou a colocar em prática a Lei 13.756, de 2018, que manda aplicar 50% dos recursos das loterias na segurança pública. Por meio da Portaria 631/2019, foram estabelecidos os critérios objetivos para rateio dos recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP).

Incidência de crimes violentos, proteção das fronteiras, implementação de banco de perfis genéticos e criação de delegacias de combate à corrupção são alguns dos critérios para a distribuição dos recursos, segundo informe publicado na página do ministério. Os percentuais de cada estado, que também dependem do cumprimento de metas como planos de segurança, serão reajustados anualmente.

Sergio Moro em audiência pública no Senado (Pedro França/Agência Senado)

O texto explicativo da portaria chama a atenção para a necessidade de que os indicadores e critérios para o recebimento de verbas sejam adequados às tarefas do primeiro ano de implantação do Sistema Único de Segurança Pública (Susp) e também da Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS). Conforme o documento, o governo pretende buscar “o enfrentamento e redução da corrupção, dos crimes violentos e do crime organizado”.

Foi elaborado, por exemplo, um Índice de Criminalidade Violenta (ICV), somando-se a quantidade de homicídios dolosos (vítimas), de latrocínios, de lesão corporal seguida de morte, de estupros e de roubos, multiplicados cada um deles pela pena máxima estabelecida no Código Penal (CP), a partir dos dados disponíveis referentes ao ano de 2016 e de 2017.

Os estados com maior dificuldade e maior incidência criminal avaliada no período receberão 40% da verba do fundo. “A ideia é direcionar parte considerável dos recursos levando em consideração os piores indicadores”, diz o documento, de modo que eles melhorem no curto prazo. No médio prazo, o objetivo é premiar os estados que tiverem conseguido implantar “boas práticas e efetiva redução desses indicadores”.

Entre as áreas de aplicação do dinheiro, estão inteligência, investigação, perícia e policiamento; programas e projetos de prevenção ao delito e à violência, incluídos os programas de polícia comunitária e de perícia móvel; capacitação de profissionais da segurança pública e de perícia técnico-científica; integração de sistemas, base de dados, pesquisa, monitoramento e avaliação de programas de segurança pública; atividades preventivas destinadas à redução dos índices de criminalidade; serviço de recebimento de denúncias, com garantia de sigilo para o usuário; e premiação em dinheiro por informações que auxiliem na elucidação de crimes.

A criação de delegacias destinadas ao combate à corrupção foi criticada pela senadora Zenaide Maia (Pros-RN), por desviar recursos de necessidades que ela considera mais urgentes:

— Nós não temos nem delegacias comuns. A corrupção tem que ser uma coisa constante de auditoria de cada repartição. É uma coisa endêmica em todo lugar do mundo, aqui ficou maior, mas não é o caso de criar delegacias para corrupção, quando qualquer cidadão pelo telefone 0800 pode falar com a Receita Federal, o Ministério Público Federal e o estadual. E ainda tem o Tribunal de Contas da União (TCU) e o Ministério da Transparência. Já temos órgãos suficientes, o que precisamos é equipar do mesmo modo como precisamos equipar as polícias.

Veja quanto cada estado vai receber num primeiro momento:

Políticas urbanas poderiam frear violência

Além da falta de continuidade, as políticas de segurança pública pecam por privilegiar aspectos como o aumento de contingente de policiais destacados para vigilância e repressão e o número de viaturas, em detrimento de outros igualmente importantes. Se itens como a análise científica das zonas de maior risco e os investimentos em perícia recebem menos atenção, o que dizer da conexão entre segurança e elementos da vida urbana como a qualidade das habitações, a bitola de ruas e a iluminação pública?

Na opinião do consultor do Senado Victor Carvalho Pinto, os urbanistas deveriam ser chamados a participar da elaboração dos planos de segurança e, do mesmo modo, receber informações relacionadas à criminalidade para orientar o reordenamento das cidades.

— Há uma causa estrutural para o crime no desenvolvimento urbano — afirma o estudioso.

Tanto o processo de expansão quanto a decadência de áreas que já foram prósperas podem criar condições propícias à prática de crimes.

— No Brasil as cidades se expandem mais de forma horizontal e em áreas distantes da chamada mancha principal, criando isolamento e deficiência de equipamentos educacionais e de lazer —observa Carvalho.

Os erros são cometidos tanto pelos loteadores quanto pelo poder público. Os primeiros não costumam reservar espaço para calçadas, um ingrediente essencial para a circulação confortável e constante de pedestres. Já as prefeituras deixam de construir escolas, quadras de esporte e praças, facilitando a invasão de áreas por residências e comércios irregulares, a sobreposição de edifícios e a abertura de vielas estreitas, nas quais é difícil o trânsito de viaturas policiais, caminhões de lixo, ambulâncias e veículos de bombeiros.

— O padrão antigo de adensamento era mais favorável ao papel do pedestre como um vigilante natural nas faixas contíguas a uma mescla de residências e comércio — avalia o consultor.

Ele diz que uma conexão clara entre o caos urbano e o caldo de psicopatia que leva a crimes violentos e ultraviolentos depende de estudos que vão além do âmbito de suas pesquisas. Intuitivamente, o que fica claro é que o amontoado de residências improvisadas acirra desavenças, que, num crescendo, leva a desfechos negativos:

— Brigas por causa de privacidade, animais de estimação e até cheiro de comida podem se transformar em conflitos sérios.


Reportagem: Nelson Oliveira
Pauta, coordenação e edição: Nelson Oliveira
Coordenação e edição multimídia: Bernardo Ururahy
Repórter fotográfica: Ana Volpe
Infografia: Diego Jimenez e Cássio Costa
Operador multimídia: Aguinaldo Abreu
Estagiária: Ana Luisa Araujo
Foto de capa: Arquivo O Vale