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Eles estão pintados para a guerra, mas não querem superar tribos rivais ou eliminar o homem branco. Os corpos, tingidos com o preto do jenipapo e o vermelho do urucum, carregam pela Esplanada dos Ministérios o simbolismo da luta por demandas tão antigas quanto o próprio Brasil, mas que, no momento, enxergam sob grande risco.
A principal dessas demandas é o domínio sobre seus territórios, vistos numa perspectiva fundiária, cultural e econômica. Há outras, entretanto, que se relacionam com os direitos à saúde e à educação, por exemplo, e que também são encaradas como vitais para os cerca de 900 mil integrantes da população indígena brasileira. Na época do descobrimento, há 519 anos, seus antepassados somavam cerca de três milhões de pessoas, segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai). E usufruíam das riquezas naturais, dentro de uma lógica peculiar substituída pelo modelo exploratório dos colonizadores, o que ainda permeia de maneira determinante as relações entre a sociedade dos índios e dos não índios, mesmo quando seus limites não parecem tão claros.
A mais recente mobilização dos povos indígenas começou em abril, o mês do Descobrimento. Durante a 15ª edição do Acampamento Terra Livre, em Brasília, eles buscaram o cenário mais propício para a batalha — o Congresso Nacional — e a arma mais eficaz: a pressão política. Não só participaram de audiências públicas no Senado, como foram recebidos no gabinete do presidente da Casa, Davi Alcolumbre, que prometeu se empenhar por eles.
“O Senado é a casa do povo e diálogo deve ser a palavra de ordem. Os povos originários merecem o nosso respeito e podem contar com o meu apoio para promover a conversa e o entendimento na valorização das causas indígenas”, disse Davi.
Após três dias de atividades, os representantes de 225 etnias voltaram para suas aldeias em estado de alerta. O primeiro fruto dessa jornada, obtido no dia 9 de maio, foi colhido na alteração da Medida Provisória (MP) 870/2019 por uma comissão mista do Congresso. A MP da reforma administrativa é considerada uma “ameaça” e “um retrocesso” pelos povos tradicionais, por transferir a Funai do Ministério da Justiça para a pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e a demarcação das terras para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
Na esfera do Mapa, a intenção é rever demarcações já realizadas com base em supostas irregularidades e interferências de ONGs, conforme chegou a declarar no início do ano o secretário de Assuntos Fundiários, Luiz Nabhan Garcia.
Depois da comissão especial, a MP 870 seguiu para o plenário da Câmara dos Deputados, onde sofreu na noite de quarta (22) sua segunda derrota, em meio a mais pressão por parte de índios e parlamentares. O texto que vem para o Senado mantém a Funai vinculada ao Ministério da Justiça, e com o poder de identificar, delimitar, demarcar e registrar as terras indígenas, seguindo o relatório do senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE) apresentado na comissão mista.
A alteração ainda precisa ser votada pelo Plenário do Senado e sancionada pelo presidente da República. Isso quer dizer que pode ser revertida. Os índios contam com o apertado prazo de validade da MP (a vencer no dia 3 de junho) para que o texto seja ratificado pelos senadores. Se a medida provisória caducar, haverá uma série de repercussões na estrutura do Poder Executivo consideradas danosas. Daí as incertezas quanto à possibilidade de o Senado alterar a MP e devolvê-la à Câmara a tempo de uma nova votação. A última etapa será a sanção presidencial. Se Bolsonaro aplicar vetos à MP, as supressões terão de ser examinadas posteriormente pelo próprio Congresso. Por precaução, as tribos vão reforçar os estoques de urucum e jenipapo.
— O Brasil tem um deficit. A Constituição estipula prazo de cinco anos para a demarcação, mas já se passaram mais de 30 anos. No primeiro ato de governo, houve o esfacelamento da Funai, o enfraquecimento de uma instituição que é tão importante para os povos indígenas porque garante o processo de demarcação das terras — protestou o cacique Marcos Xukuru, representante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, durante sessão do Plenário em homenagem ao Abril Indígena, no dia 25.
Os parlamentares presentes mostraram preocupação em impedir o avanço do “desenvolvimentismo” sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. Entendem que produto, renda e lucro não podem ser vistos como um objetivo absoluto e inarredável.
As competências sobre demarcação e licenciamento ambiental de empreendimentos com impacto sobre terras indígenas passaram lamentavelmente para o Ministério da Agricultura, que tem como público-alvo o agronegócio, setor com o qual existem históricos conflitos com os povos originários. Em outras palavras, é colocar a raposa para tomar conta do galinheiro — protestou o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP).
Fabiano Contarato (Rede-ES) começou sua homenagem pedindo perdão aos povos indígenas, “em nome da população brasileira”, pelo o que considera agressões aos direitos desse segmento.
— Assim como eu disse ontem lá no acampamento, esse pedido de perdão tinha que vir de todos os políticos, porque vocês são povos originários. O governo violou direitos indígenas com a MP 870 e essa decisão tem estimulado a ocorrência de ataques, invasões articuladas contra terras indígenas, perseguição, expressão de racismo e intolerância aos povos indígenas. O governo ameaça também reduzir o tamanho das terras indígenas já criadas. Nós não podemos admitir isso. Nós não podemos e não vamos admitir isso — advertiu o parlamentar.
Os conflitos de agora são a versão atualizada de um dilema que paira sobre as aldeias desde a criação do antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), em 1910: as tribos têm o direito de se manter relativamente isoladas em seus costumes e em sua organização social? Ou a sociedade e o Estado podem exigir — cada vez mais — a inserção das populações tradicionais em um modelo econômico convencional?
A Constituição é clara ao reconhecer as línguas, as crenças, as tradições e o direito imprescritível dos índios sobre as áreas que ocupam. As terras são consideradas “inalienáveis e indisponíveis”, e as comunidades originárias têm “o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos”. A realidade nos rincões do país não segue bem a norma. Recentes escaramuças noticiadas pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) entre produtores rurais e o povo Maraguá, em Nova Olinda do Norte (AM), são mais um exemplo numa longa história de conflitos.
A mineração em terras indígenas está no centro da encruzilhada que opõe os conceitos de tradição e progresso. Segundo a Constituição, a exploração de recursos hídricos e minerais depende do aval do Congresso. Embora nenhuma autorização tenha sido concedida desde 1988, o Instituto Socioambiental estima que há mais de quatro mil processos minerários irregulares em 177 áreas tradicionalmente ocupadas. A maior parte na Amazônia Legal.
Apesar dos riscos inerentes à atividade — como a contaminação de cursos d’água, solo, fauna e flora — o governo estuda a possibilidade de autorizar a exploração em terras indígenas. O ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, anunciou essa intenção em março, durante um evento que reuniu investidores e mineradores no Canadá.
A medida dá forma a um compromisso assumido por Jair Bolsonaro antes mesmo da posse.
— É a área mais rica do mundo. Você tem como explorar de forma racional. E, no lado do índio, dando royaltie e integrando o índio à sociedade — disse o presidente eleito em dezembro.
Outra iniciativa interpretada pelos povos indígenas como uma tentativa de “padronização”, é a extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi). A medida foi anunciada pelo presidente da República em janeiro, em sua conta no Twitter. Ligado ao Ministério da Educação, o órgão tem como função fortalecer a instrução de jovens, adultos, camponeses, índios e quilombolas. O analfabetismo entre índios é de 32,3% — três vezes maior que a média nacional.
O Senado analisa 19 propostas de emenda à Constituição (PECs) e projetos de lei com impacto sobre as comunidades indígenas. Na Câmara, são mais de 70 proposições. Embora algumas matérias assegurem benefícios — como a regulamentação da profissão de agente indígena de saúde (PLS 184/2018, no Senado) e a destinação de 40% dos recursos do Fundo Nacional de Cultura para a arte negra e indígena (PL 765/2019, na Câmara) — parte das proposições é tida como controversa. O deputado Dagoberto Nogueira (PDT-MS) é autor do PL 9.192/2017, que prevê “a exploração de hotéis-cassino por grupos tribais ou comunidades indígenas”.
A pergunta que fica é: os índios — cidadãos cuja autonomia é reconhecida pela própria Constituição — desejam ou precisam se adequar ao sistema econômico convencional?
O cacique Yssô Truká, representante do Fórum de Conselhos Distritais de Saúde Indígena, discorda: “não somos miseráveis. Quem tirou as terras dos índios foi quem invadiu o Brasil com essa conversa fiada de que os índios têm que ser iguais a todo mundo. Eu não quero. Eu me recuso a ser igual”, disse ele durante audiência pública na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), no dia 11 de abril.
Para o senador Marcos Rogério (DEM-RO), além da dignidade da pessoa humana, a Constituição apresenta como fundamento os valores sociais do trabalho, da livre iniciativa. Em pronunciamento no Plenário no dia 24, ele foi enfático:
— Eu não vejo como alguém gozar de dignidade sem ter acesso à renda, à oportunidade, à atividade econômica.
Na mesma sessão, o senador Chico Rodrigues (DEM-RR) expressou opinião semelhante:
— Temos áreas riquíssimas em minerais estratégicos, como ouro, nióbio, urânio, cassiterita e tantalita. Estamos pisando em uma terra rica, com uma população miserável.
Para se contrapor a pontos de vista como esses, o lendário cacique Raoni (kayapó) iniciou em 3 de maio uma viagem de três semanas pela Europa, onde está mantendo contatos com autoridades como o presidente da França, Emmanuel Macron, e o Papa Francisco. Organizado pela ONG Floresta Protegida, da qual Raoni é presidente honorário, o giro tem como objetivo a defesa da Amazônia de um modo geral, e arrecadação de um milhão de euros destinados a guarnecer a reserva do Xingu.
Os recursos serão investidos para melhorar a sinalização dos limites da Terra Indígena do Xingu; para comprar drones e equipamentos que ajudem no monitoramento da região; na prevenção de incêndios; em programas de saúde e em conhecimentos técnicos para extração e comercialização de produtos da floresta de forma sustentável e renovável, conforme o site Conexão Planeta.
Brasília será palco de uma nova mobilização dos povos indígenas no final de maio. De 27 a 31, a 6ª Conferência Nacional de Saúde Indígena terá de definir que tipo de assistência será prestada aos índios: se nos moldes atuais, a cargo diretamente do Ministério da Saúde, mas com aumento da eficiência; ou por meio de municípios e estados.
Em audiência pública sobre o tema na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado, em 11 abril, o representante do Ministério da Saúde foi cobrado em razão do anúncio feito em janeiro pelo titular da pasta, Luiz Henrique Mandetta, de que os índios passariam à esfera da Secretaria de Atenção Básica do ministério — em substituição à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).
As pressões pela continuidade da Sesai, no entanto, já vinham desde janeiro, inclusive por meio de ocupações de edifícios públicos e bloqueio de rodovias. Culminaram em reunião no dia 28 de março com o próprio ministro. Mandetta cedeu então ao posicionamento dos manifestantes, mas manteve em funcionamento um grupo de trabalho para examinar o assunto em preparação para a conferência.
No Senado, ao ser confrontado pela coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Sônia Guajajara, o titular da Sesai, Marco Antonio Toccolini, afastou a possibilidade de municipalização. A representante da Apibi denunciou o que chamou de “desmonte da política indigenista” por parte do governo Bolsonaro.
— Municipalizar a saúde, neste momento, para nós, é declarar um genocídio. É um genocídio declarado, porque os municípios nem estão preparados e nem querem atender os povos indígenas. Que o ministro garanta sua posição — instou a líder.
— A municipalização, da forma como é criticada, está descartada totalmente. Ninguém imagina que ela possa voltar, nem nós, e eu tenho certeza que o ministro da Saúde também não”, respondeu Toccolini.
Um dos pontos capitais nas disputas entre índios, fazendeiros e o Estado diz respeito aos limites das terras reclamadas como suas pelos chamados povos originários. Segundo o artigo 231 da Constituição Federal, os índios têm direitos “sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, ou seja, as terras “por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. Conforme o mesmo artigo, compete à União “demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
O desenho do mapa das terras indígenas, porém, sempre foi objeto de controvérsia, mesmo depois da promulgação do texto constitucional, em outubro de 1988. A polêmica foi se acirrando ao longo dos anos até que, em agosto de 2017, no governo Temer, a Advocacia-Geral da União (AGU) emitiu o Parecer 001/2017 para balizar os processos demarcatórios, firmando a data de 5 de outubro de 1988, quando a Constituição foi promulgada, como o “marco temporal” para se determinar uma ocupação tradicional. O que foi ocupado depois daquele momento seria ilegítimo.
Os índios, entretanto, alegam que em muitos casos eles estavam afastados de suas terras por perseguição de grileiros ou em razão de demandas judiciais e decisões governamentais. Os redatores do chamado marco temporal tomaram como base a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) adotada em 2009 para a criação da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima.
De acordo com o Instituto Socioambiental, o marco temporal é uma tese político-jurídica inconstitucional de interesse de ruralistas e inviabilizaria a demarcação de terras que ainda não tiveram seus processos finalizados.
Do ponto de vista prático, afirma o site do instituto, “o marco temporal legitima e legaliza as violações e violências cometidas contra os povos até o dia 4 de outubro de 1988: uma realidade de confinamento em reservas diminutas, remoções forçadas em massa, tortura, assassinatos e até a criação de prisões”. Aprovar o marco temporal significaria, portanto, "anistiar os crimes cometidos contra esses povos e dizer aos que hoje seguem invadindo suas terras que a grilagem, a expulsão e o extermínio de indígenas são uma prática vantajosa, pois premiada pelo Estado brasileiro”, diz o site.
Responsável pelo tema "índios" no Ministério Público Federal (MPF), o subprocurador-geral da República Antonio Bigonha afirmou, no dia 23 de janeiro, em debate no próprio órgão, que nem a Constituição nem as leis preveem a possibilidade de que seja revertida a demarcação de terras indígenas no Brasil. “Não há possibilidade constitucional de paralisar as demarcações ou de regredir nas que já foram demarcadas”, disse Bigonha, conforme a Agência Brasil. “A não ser que se constatasse alguma nulidade, mas esse é um fato excepcionalíssimo, o que existe no Brasil hoje são terras demarcadas regularmente”, afirmou.
No dia 25 de abril, na Câmara dos Deputados, Bigonha tratou da perda de poderes da Funai para demarcar as terras indígenas. Ele citou as conclusões de um inquérito de 1967 sobre a atuação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) — órgão anterior à Funai e vinculado ao Ministério da Agricultura.
— Eram terríveis as atividades do SPI contra os indígenas. O índio era vítima de criminosos, que impuseram a eles escravidão e torturas contra adultos e crianças — disse, segundo relato da Agência Câmara.
Entrevista Gilberto Vieira dos Santos, do CimiO retorno da Funai ao âmbito do Ministério da Justiça, em decisão da comissão que examina a MP 870, e que terá de ser confirmada nas duas Casas do Congresso, altera em que medida o quadro vivido atualmente pelas comunidades indígenas? Como lidar com o fato de que as demarcações de terras passaram ao âmbito do Ministério da Agricultura? Gilberto Vieira dos Santos — Fato é que, como afirmamos recentemente, os processos de demarcação estacionaram de vez (já vinham em uma lentidão considerável, principalmente desde 2016). Não são novidade os posicionamentos da ministra do MAPA e do secretário de Assusntos Fundiários quanto a temática indígena, principalmente quanto às demarcações. Aliás, bem sintonizada com as posturas do atual presidente. Em suma, manter as principais atribuições historicamente no âmbito da Funai no MAPA, seria manter os processos paralisados, pois a perspectiva das pessoas (e seguimentos) representados neste ministério são, deliberadamente, contrários aos direitos territoriais. Não esqueçamos que [o atual senador Luís Carlos] Heinze, que compunha a frente (FPA) na Câmara, foi um dos articulistas do Parecer 001/2017 que buscou aplicar a todos os processos de demarcação em curso o marco temporal. Assim, embora as disputas não findem, pois mesmo dentro do MJ estaremos no mesmo governo anti-indígena, há um valor simbólico, além do fato de que na Funai estão nos quadros quem tem o know-how para tratar do tema. Que avaliação o Cimi faz da atual política indígena? Como afirmamos, é uma política anti-indígena. Não só pelos discursos, pelas proposições de que a “solução” são os arrendamentos de terras indígenas (que na história recente significaram a perda do território para diversos povos), pelo retorno do discurso integracionista (próprio do período ditatorial), mas pelas práticas: passar a demarcação e licenciamento ambienta da TI [Terra Indígena] no primeiro ato de governo (MP 870/2019) é muito mais que simbolismo. Não agir de forma efetiva frente às denúncias de invasão, como vem ocorrendo nas TIs Karipuna (RO), Uru Eu Wau Wau (RO), Guajajara (MA), entre outros; o retorno da intenção de municipalizar a saúde indígena, acabando com a SESAI, que é uma das conquistas históricas do Movimento Indígena, acabar com o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), etc. São ações deliberadas que estão na esteira do genocídio dos povos, pois sem território, sem saúde, sem direito à participação e controle social, os povos estão sujeitos ao extermínio. Como o conselho vê a controvérsia entre os que acham que o índio deve ter garantidas as suas terras e seu modo de vida próprio, e aqueles que acham que o índio deve se integrar à economia convencional? O direito à diferença é um direito humano, cabe a qualquer pessoa ou grupo social que não queira se “misturar” com outros, no sentido de resguardar sua cultura e suas forma próprias de organização social. Os povos indígenas, que nunca pleitearam um "Estado à parte”, mas reafirmam seus direitos de serem eles mesmos, têm este direito também resguardado na Constituição Federal. Garantir seus territórios, suas línguas, suas formas próprias de organização, seus ritos, sua religiosidade, não fere em nada nossa sociedade. Ao contrário, nos oferece a oportunidade de aprender com eles em muitas coisas, como o necessário cuidado com o ambiente, sem uma relação clientelista ou exploradora dos bens naturais. A integração, historicamente pretendida pelo governo e seus aliados, é a anulação da diversidade própria dos povos. É o não reconhecimento de que os povos não precisam e não deixam de ser eles mesmos, embora utilizem recursos próprios da sociedade não indígena. Um carro, um celular, um computador, acessar as universidades, etc. Há um racismo expresso em discursos e visões de que um indígena deixa de ser indígena a partir do momento que utiliza um simples celular. Não obstante, uma atenção é importante: não está na prática da maioria esmagadora dos povos a prática de monocultivo, por exemplo. Está no discurso dos ruralistas e do atual governo esta perspectiva, como apontei antes. Os povos produzem suas economias a partir de uma diversidade. Em algumas regiões, como na Bahia, Pernambuco, mas também em estados amazônicos, algumas comunidades abastecem cidades vizinhas a seus territórios com alimentos de qualidade. Há ainda pesquisadores, professores e professoras indígenas que, nas universidades, têm levado seus conhecimentos e cosmovisões que contribuem, em muito, para a construção do conhecimento universal (embora não seja lá o único lugar do conhecimento). Esta é a “integração” em curso, não com uma dissolução do diferente que são os povos, de sua diversidade, mas com a criação da oportunidade de aprender com estes povos, sem querer impor o que em nossa sociedade já não está dando certo, com é o agronegócio que envenena e mata a vida, cria conflitos e alimenta (financeiramente), apenas alguns. O que falta para que modos de subsistência e até modalidades próprias de aproveitamento das terras indígenas sejam sustentáveis? Há muito se falou da vocação extrativista ecológica dos índios. Isso tem sido possível em algum modo? Há experiências bem-sucedidas nesse campo? É preciso antes ter em mente qual é o conceito de sustentabilidade. Os territórios, quando assegurados para o usufruto dos povos, exclusivo como prevê a Constituição, já contribuem em muito para o meio ambiente. Por exemplo: água, diversidade biológica, preservação de biomas. Então o que é necessário se garantir, primeiramente, é que os povos tenham assegurados seus territórios. Em alguns estados amazônicos há experiências de manejo de peixes, extração de castanha da Amazônia, produção de artesanatos, etc. São contribuições que vão para além dos povos. Mas, creio, isso é uma visão particular, que se um povo se dedica a garantir sua economia internamente, garantir que os bens da natureza presentes em seu território ou que sua produção diversa abasteça apenas suas comunidades, está muito bem. Eles não têm obrigação de nos fornecer nada, já fazem muito preservando, há milênios, os diversos biomas. Se utilizadas com cuidado e de forma racional, há terras suficientes fora dos territórios indígenas para gerar alimentos e manter nossa sociedade. Há quem diga que há muita terra improdutiva em poder de índios — e até que há reservas demais. Qual é a extensão de terras (em hectares ou quilômetros quadrados) relativas a essas reservas e a terras de propriedades regularizadas ou não? As terras indígenas representam hoje pouco mais de 13% do território brasileiro. Mas há uma demanda represada. Os dados do Cimi com base nos dados da Funai, apresentam um dado alarmante: pelo menos 847 terras indígenas estão com alguma pendência administrativa para efetivar o direito territorial. Destas, pelo menos 537 estão sem qualquer providência, ou seja, demandadas pelos povos não tiveram sequer o início dos procedimentos administrativos (criação de GTs [grupos de trabalho], por exemplo). Frente às 400 registradas, ou seja, com todo o processo administrativo finalizado, vê-se que é uma demanda grande. Mesmo assim, não se pode comparar com os latifúndios constituídos no país. Primeiro, pelos bens que repercutem para toda a sociedade (não jogam toneladas de agrotóxicos no ambiente, águas, etc), também por que são coletivos, ou seja, não é um latifúndio indígena. Os povos não têm a propriedade de seus territórios, que são bens da União. Por fim, o conceito de produtividade e improdutividade deve ser revisto para as terras nas mãos de quem secularmente está na posse — por vezes ilegítima — de porções do Brasil: qual a quantidade de água que se gasta para produzir um quilo de carne, um saco de soja, de milho? Quem, de fato, se beneficia com esta apropriação privada de um bem que é a água? O certo é sempre o jargão: prejuízos socializados, lucros privados! A questão da exploração mineral é outro tema recorrente nesse debate. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) tem um levantamento das terras indígenas com potencial de mineração? O conselho vê alguma forma de essa mineração ser feita sem danos aos índios e ao meio ambiente? Por certo, a questão da mineração segue como um tema preocupante. Não temos um levantamento próprio, mas nos baseamos nos dados alarmantes que apresentou uma reportagem da Publica, em 2016. Há muitos interesses, e o PL 1.610 e sua tramitação no Congresso, demonstram que há muito incômodo à vista. Nós sempre reafirmamos nossa posição contrária à qualquer mineração em territórios indígenas. Em todas as situações que conhecemos significa, ao fim, sempre prejuízos para os povos. Devastação da natureza, pressão por agentes externos (garimpeiros e empresas mineradoras), assédios diversos. Os povos, alguns inclusive que conhecem bem os minerais há milênios, cercam estes de outros valores. Muitos reafirmam a posição veementemente contrária à mineração de qualquer tipo. Creio que mesmo fora das terras indígenas o tema da mineração deverá ser rediscutido: Pare quê? Para quem? Por quê? Onde? E se devem manter ou iniciar explorações. Em vários casos, de Serra Pelada à Vale, o que tem ficado são restos de destruição, contaminação da natureza, das pessoas e, novamente, lucros apropriados. Barcarena, Brumadinho, Mariana, entre outros casos, não nos devem levar a debater apenas normas de segurança, devem nos levar a debater um modelo de desenvolvimento que se mantém na rapina dos bens, em detrimento de toda a sociedade. Um dos aspectos da questão indígena é a imagem que os habitantes das cidades fazem dos povos indígenas e vice-versa. Uma pesquisa do Ibope feita no ano 2000, a pedido do Instituto Sócio-ambiental, detectou uma maioria de brasileiros com imagem favorável aos índios. Seria possível dizer em que pé que está isso nove anos depois? Nas redes sociais, ao lado de opiniões positivas, vemos comentários do tipo “índio não gosta de trabalhar”. Uma recente pesquisa do Datafolha indicou que a maioria dos brasileiros é contrária à redução das terras indígenas. Creio que isso é um indicativo de que há ainda um apoio da sociedade em geral aos povos indígenas. Embora todos os ataques e a enxurradas de fake news, como as que antecederam o ATL [Acampamento Terra Livre] deste ano, com falas do presidente dizendo, falsamente, que o acampamento seria pago com “dinheiro do contribuinte”, tudo isso parece não ter abalado muito esta imagem dos indígenas. O ATL transcorreu com muita tranquilidade e os povos, mais de quatro mil indígenas, deram exemplo de participação política. Nessa ocasião, foi visível a presença de pessoas que, por apoio, por curiosidade ou por admiração, passaram pelo acampamento. Muitos pedindo para se pintarem de jenipapo (uns 15 dias para desaparecer o desenho), tirando fotos, selfies com os indígenas. Ou seja, há uma relação interessante e importante da sociedade. Claro que há muitos ataques, sobretudo em regiões onde há conflitos envolvendo os territórios. Mas não podemos generalizar, visto que a luta dos indígenas para garantir o Santuário dos Pajés, em Brasília, por exemplo, teve grande participação de estudantes e outros seguimentos na defesa dos direitos dos indígenas. Há também queixas de que ONGs manipulam os índios para favorecer interesses internacionais ligados às riquezas em terras indígenas. Como o Cimi vê a atuação das ONGs e de outros grupos, tenham eles natureza civil ou religiosa? Esse discurso, presente nas falas de muitos dos que são contra as demarcações, está carregado do racismo que estas pessoas têm. Eles julgam que os povos ainda são tutelados e não poderiam responder por si. É uma visão que revela a verdade: que alguns setores da sociedade acreditam que os povos estão em um estágio atrasado do desenvolvimento. Não é uma ideia nova, os povos foram tutelados pelo Estado, formalmente, desde 1910, com a criação do SPI [Serviço de Proteção aos Índiso] até a Constituição de 1988. Por outro lado, requentadas também são as afirmações de “interesses internacionais”. Os militares afirmavam isso no passado, hoje entregam as riquezas ou prometem entregar aos norte-americanos. Ou seja, quem de fato defende os “interesses nacionais”? Nenhum povo indígena demandou independência até hoje, ao contrário, pleiteiam a efetiva participação nas decisões que lhes digam respeito. Esse discurso esconde os reais interesses daqueles que buscam explorar os bens preservados, pelos povos, em seus territórios. Sobre outras atuações, há muitas sérias, baseadas no respeito às culturas, às dinâmicas próprias dos povos, semelhante ao que defendemos e vimos construindo na relação com os povos ao longo destas quase cinco décadas. Evidente que há algumas atuações, religiosas ou não, que não estão em sintonia com o que nossa sociedade construiu ao longo de trágicas experiências, em que povos inteiros perderam parte de sua cultura, línguas desapareceram. Há movimentos fundamentalistas religiosos que acreditam que os indígenas devem ser convertidos, uma ideia que é a base do eurocentrismo que exterminou povos, se não seguiam a religião da coroa. Os povos indígenas estão atentos a estes grupos e nossa atuação é para fortalecer seu protagonismo para que sempre decidam os rumos do seu futuro. |
1570 | Promulgação da lei contra o cativeiro indígena | Só permitia a escravização de índios com a justificativa de “guerra justa” |
1680 | Decretação do Regimento das Missões | Reconheceu os índios como primários e naturais senhores das terras que habitavam |
1755 | Aprovado o Diretório dos Índios | Proibiu definitivamente a escravidão indígena, mas visava a integração do índio à vida da Colônia |
1758 | Fim da escravidão indígena | Perda da influência dos religiosos na administração dos aldeamentos indígenas |
1798 | Abolição do Diretório | O espírito integrador do Diretório conservaria sua força na legislação do Império Brasileiro |
1824 | Promulgação da primeira Constituição do Império | Não mencionava a presença de índios no território brasileiro |
1845 | Aprovação do Regulamento das Missões | Renovou os objetivos do Diretório e visava à completa assimilação dos índios |
1850 | Promulgação da Lei de Terras | As terras dos índios que não viviam mais aldeados foram incorporadas às terras da União |
1887 | Promulgação da Lei 3.348, de 1887 | Passou para os municípios os foros dos terrenos das extintas aldeias de índios |
1891 | Promulgação da primeira Constituição da República | Concedeu aos governos estaduais as decisões sobre as terras devolutas |
1910 | Criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN) | As principais ações da agência eram atração, pacificação, civilização e integração dos índios |
1916 | Aprovação do Código Civil | Determinou que os indígenas, entre 16 e 21 anos, fossem tutelados até sua integração à civilização |
1918 | Alteração do SPILTN para SPI | O SPILTN passa a se chamar Serviço de Proteção aos Índios (SPI) |
1934 | Promulgação da Constituição de 1934 | Estabeleceu que fosse respeitada a posse de terras indígenas |
1967 | Promulgação da Constituição de 1967 | As terras ocupadas pelos índios foram transferidas para a União e vedada a intervenção de governos estaduais |
1967 | Comissão de Investigação do Ministério do Interior no Executivo Federal | Denunciou violações de direitos humanos dos povos indígenas, motivando a extinção do SPI e a criação da Funai |
1967 | Criação da Fundação Nacional do Índio (Funai) | Criada com a função de integrar as sociedades indígenas, respeitando suas individualidades |
1969 | Criação da União das Nações Indígenas | Foi a tentativa de defesa da cultura indígena, importante, posteriormente, no contexto da Constituição de 1988 |
1973 | Criação do Estatuto do Índio | Seu objetivo foi integrar os índios à sociedade brasileira, assimilando-os de forma harmoniosa |
1988 | Promulgação da Constituição de 1988 | Promoveu, entre outros, o direito às formas próprias de organização social dos indígenas e o direito às terras que eles habitam |
1991 | Instituição de quatro decretos presidenciais | Promoveu a desconcentração de responsabilidades (saúde, meio ambiente) da Funai para outros órgãos |
1996 | Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL) | Impulsionou o reconhecimento das terras indígenas, com avanços significativos nas demarcações na Amazônia |
2000 | Instituição da Carteira Indígena | Instituiu o desenvolvimento da segurança alimentar e nutricional e a gestão ambiental em comunidades indígenas |
2002 | Instituição de um novo Código Civil | Retirou os índios da categoria “relativamente incapazes” |
2006 | Criação da Comissão Nacional de Política Indigenista | Órgão do Ministério da Justiça, composto por representantes indígenas |
2006 | Instauração do Prêmio Culturas Indígenas | Proporcionou o reconhecimento de iniciativas de fortalecimento cultural de indígenas |
2009 | Criação dos Territórios Etno-Educacionais (TEE) | Teve como objetivo apoiar a implementação da Política de Educação Escolar Indígena |
2009 | Implantação dos Pontos de Cultura Indígenas | Possibilitaram o desenvolvimento de experiências de valorização cultural |
2010 | Criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) | Surgiu a partir da necessidade de reformulação da gestão da saúde indígena no país |
2012 | Instituição da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI) | Povos indígenas e governo se articulam na construção do planejamento territorial e ambiental, focado na perspectiva indígena |
2016 | Instituição do Conselho Nacional de Política Indigenista | Órgão de caráter consultivo do Ministério da Justiça, responsável pela implementação de políticas públicas para os indígenas |
2017 | Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União assinado pelo presidente Michel Temer | Marco temporal: os indígenas têm direito à terra desde que a área em questão estejam ocupadas até a promulgação da Constituição de 1988 |
2019 | Edição da Medida Provisória 870/2019 | Transferiu a Funai do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos |
2019 | Edição da Medida Provisória 870/2019 | Atribuiu a competência da demarcação de terras indígenas ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento * |
* A Comissão mista do Congresso Nacional sobre a MP 870 e o Plenário da Câmara dos Deputados decidiram que a Funai retorna para o Ministério da Justiça, e a demarcação de terras indígenas volta a ser competência da Funai. O relatório que contêm essas medidas ainda precisa ser aprovado pelo Plenário do Senado. |
Reportagem: Dante Accioly
Colaboração: Nelson Oliveira
Pauta, coordenação e edição: Nelson Oliveira
Coordenação e edição multimídia: Bernardo Ururahy
Edição de fotografia: Pillar Pedreira
Infografia: Cassio Costa
Operador multimídia: Aguinaldo Abreu
Estagiária: Ana Luisa Araujo
Reportagem TV Senado: Andréa Alves
Foto de capa: Marcos Oliveira/Agência Senado