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Brasil dá resposta insuficiente à violência de torcidas

Nelson Oliveira e analuisaaraujo
Publicado em 10/12/2019
Edição 694
Violência

O Campeonato Brasileiro de Futebol de 2019 não teve um desfecho melancólico apenas para o Cruzeiro, que terminou rebaixado à série B pela primeira vez em sua história. A revolta dos torcedores cruzeirenses, reunidos em torcida única no Mineirão na tarde do domingo (8), mostrou que o país mais uma vez falhou em estabelecer um padrão de convivência civilizada no ambiente de seu principal esporte.

Irada diante do segundo gol do Palmeiras, uma parte do público esqueceu-se momentaneamente de suas glórias antigas e recentes. Passou a quebrar cadeiras, jogá-las no campo, estourar rojões e depredar banheiros. A Polícia Militar explodiu bombas de efeito moral e, de acordo com alguns informes jornalísticos, até atirou balas de borracha, enquanto pais tentavam desesperadamente proteger seus filhos. O juiz da partida, então, decidiu encerrar o jogo por volta dos 40 minutos do segundo tempo, mas não evitou que o saldo de pessoas socorridas chegasse a 30 pessoas.

As cenas de descontrole exibidas a partir de Belo Horizonte foram a reprise ampliada do espetáculo lamentável protagonizado no mesmo estádio por cruzeirenses e atleticanos no dia 10 de novembro, quando objetos atirados entre os rivais e um caso gritante de injúria racial lançada por atleticanos contra um segurança deram sequência a ameaças de morte a Thiago Neves, meia atacante do Cruzeiro.

Fosse a violência apenas reflexo da crise vivida na Toca da Raposa e os problemas de cidadania no futebol brasileiro mereceriam uma solução cirúrgica, a cargo das autoridades e dirigentes esportivos de Minas Gerais. Mas, como provam os torcedores flamenguistas e botafoguenses que trocaram socos e pontapés por ocasião do jogo do dia 7 de novembro no Engenhão,  os torcedores do Fluminense que invadiram o centro de treinamento do clube em setembro e os do Palmeiras que perseguiram companheiros da mesma paixão futebolística, por motivos fúteis, pelo menos duas vezes, 2019 será lembrado como mais um ano em que todas as torcidas perderam.

Os efetivamente envolvidos nas brigas do Mineirão, do Engenhão e nas demais país afora, estão sujeitos a enquadramento no Art. 41-B do Estatuto do Torcedores (Lei 10.671/2003): "Promover tumulto, praticar ou incitar a violência, ou invadir local restrito aos competidores em eventos esportivos”, cuja pena é reclusão de um a dois anos e multa. Entretanto, por falta de estatísticas, é difícil saber se a lei está sendo cumprida.

Embora forneça um retrato da recorrente violência no futebol brasileiro, os episódios em Minas e no Rio estão longe de igualar a grotesca tragédia de 2 de maio de 2014 em Recife. Naquela ocasião, Paulo Ricardo Gomes da Silva, de 26 anos, morreu atingido por um vaso sanitário lançado próximo à entrada de visitantes do estádio do Arruda por torcedores do Sport Recife. Torcedor do Santa Cruz, ele se juntara à torcida do Paraná, que acabava de disputar uma  partida pela Série B do campeonato brasileiro com o Sport.

Julgados em 2015 pelo crime, Everton Filipe Santiago Santana, de 23 anos, Luiz Cabral de Araújo Neto, de 30 anos e Waldir Pessoa Firmo Júnior, de 34 anos, foram condenados pelo júri popular a penas entre 25 e 28 anos de prisão. Após o julgamento, a promotora Dalva Cabral disse considerar que a condenação era exemplar e contribuiria decisivamente para inibir a violência entre torcedores. “Esse julgamento marca um novo tempo”, declarou, segundo a Agência Gazeta Press.

Desde então, as mortes de torcedores, que haviam  cedido em seguida ao pico assustador de 2013 tiveram uma leve queda e se mantiveram estáveis, na média de 12 por ano, até 2018. Em 2019, baixaram a três, de acordo com os números provisórios apurados pelo sociólogo Maurício Murad, coordenador do Programa de Pós-graduação da Universidade Salgado de Oliveira (Universo), de Niterói (RJ). Outros casos ainda estão em investigação.

Se as mortes recuaram em 2019, a violência em geral não arrefeceu, em conexão, segundo Murad, com o quadro de mazelas sociais e o aumento do consumo e do tráfico de drogas como ecstasy e cocaína, esta um “combustível pra porrada”, como declarou um brigão ao sociólogo.

Ultimamente, o pesquisador passou a incluir em suas apurações a influência de neonazistas, aprofundando um cenário de contaminação de torcidas por grupos que ele considera minoritários, mas capazes fazer os espetáculos futebolísticos degenerarem em pancadaria, insultos e ameaças a jogadores e torcedores adversária.

Este ano, o tempo esquentou também no vôlei, esporte igualmente regido pela Lei 10.671: a torcedora-símbolo do Cruzeiro, Maria Salomé da Silva, de 86 anos, passou por momentos de tensão ao ser envolvida em um outro tumulto entre cruzeirenses e atleticanos no dia 3 de dezembro, quando uma jovem de 15 anos foi ferida a pauladas. Ela, que era hipertensa, morreu de um problema cardíaco na madrugada desta terça-feira (10). A família, no entanto, descarta qualquer relação entre o falecimento e os episódios de domingo.

Policiais revistam torcedores na entrada do estádio do Maracanã no Rio de Janeiro (foto: Divulgação/PMERJ)

Tanto as invasões do campo de jogo, quanto as ameaças a Thiago Neves e o ataque envolvendo Dona Salomé, se caracterizados como ações de torcidas organizadas, já cabem nas punições incorporadas ao Estatuto do Torcedor pela Lei 13.912/2019: afastamento da torcida, seus associados ou membros, de eventos esportivos pelo prazo de até 5 (cinco) anos. A regra anterior estabelecia impedimento por até três anos. O texto, de autoria do deputado Andre Moura (PSC-SE), foi aprovado pelo Senado em 30 de outubro e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro no dia 25 de novembro.

A punição a delitos que acontecem fora dos locais e horários de competição é outra novidade da lei. Cerca de 90% dos conflitos não têm lugar dentro dos estádios, segundo Maurício Murad. Escaramuças entre flamenguistas e botafoguenses foram registradas, por exemplo, no bairro da Taquara, em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio, a 12 quilômetros do Engenhão.

Para a relatora das mudanças no estatuto, senadora Leila Barros (PSB-DF), o projeto mereceu ser aprovado, não só por ampliar o prazo de impedimento imposto às torcidas organizadas e a dirigentes envolvidos em atos proibidos pelo estatuto, mas também por aumentar a pena para delitos praticados fora do ambiente que é sede do evento desportivo.

"Em 2019, já vimos vários episódios de centros de treinamento de equipes de futebol que foram invadidos por torcidas que protestavam contra o mau rendimento de suas equipes, várias ocorrências de hostilidade por parte de torcedores contra jogadores em seus momentos de folga. Esporte, torcida, gera paixão gera nervos inflamados, então acho que é muito interessante essa alteração de Estatuto", disse Leila durante a votação da matéria no Plenário do  Senado. Na mesma linha opinou a senadora Rose de Freitas (Podemos-ES).

Organizadas veem equívoco

Em postagem no Facebook em 28 de novembro, a Associação Nacional das Torcidas Organizadas (Anatorg), reagiu à 13.912 como "mais uma lei que vem para punir o coletivo a instituição, a festa", ao passo que o "o baderneiro continua livre, solto, aprontando e, pior, potencializando a multiplicação dos seus". De acordo com a publicação, outras mudanças legislativas, termos de ajuste de conduta e impedimentos impostos a torcidas se mostraram ineficazes para conter a violência. "Na verdade, quem pune o coletivo não pune ninguém. Pune o abstrato, o inexistente", afirma a postagem. Já os responsáveis de fato pelos atos violentos não mudam seu comportamento "pela certeza da impunidade".

Ao tratar do "fracasso dos poderes públicos de segurança na questão individualização de crimes", a Anatorg questiona por que "os tais grupos táticos ou de trabalho na segurança do futebol não conseguem capturar o indivíduo, o CPF, a pessoa física". Conforme a a organização, "por experiência, vivência ou até o papo paralelo", é fácil saber onde ocorrem as confusões e quem as promove.

Ao invés de mudanças legais para "a promoção pessoal de políticos, entidades, autoridades públicas, pré-candidatos", a Anatorg se diz a favor de que "a caneta fosse melhor usada para a multiplicação de política públicas e projetos que deixem nos jovens, algum legado, transformando em um adulto mais consciente e multiplicador de bons costumes".

Em comentário à postagem, o torcedor Fernando Miqueliza lembrou que no passado, as torcidas foram demandadas pelo Ministério Público a se cadastrarem, sob pena de não poderem entrar nos estádios. "Isso terminou em pizza. Por que não voltam a fazer esse cadastro?", protestou.

Estimulantes da violência

A garrafa de Vodka utilizada como ameaça pelos cruzeirenses no dia 10 é o pomo de outra discórdia no quadro de confusão no futebol brasileiro: a venda e o consumo de bebidas alcoólicas em eventos esportivos.

O porte de bebida é proibido genericamente pelo Estatuto do Torcedor. O consumo é objeto de dúvida, se observado estritamente o que diz a Lei 10.671, embora possivelmente, no caso daquele jogo, fira a Lei Estadual 21.737/2015, que proíbe a venda e o consumo em arquibancadas e cadeiras.

O artigo 13 do estatuto veda mais exatamente o porte de objetos, bebidas, substâncias proibidas ou capazes de causar danos. Ao falar apenas em “porte”, como condição para acesso e permanência no local da competição, está sujeito a interpretações. No vácuo jurídico, a partir de 2014, ano da Copa do Mundo, Minas e outros nove estados criaram leis estaduais para permitir a comercialização e a ingestão. Durante a Copa, a Lei Geral da Copa permitiu a venda de cerveja, por exigência da Fifa. O patrocinador do torneio era uma marca de cerveja. Seis dessas leis estaduais estão sendo contestados pela Procuradoria Geral a República em ações de Declaração de Inconstitucionalidade (ADIs) no Supremo Tribunal Federal (STF).

O argumento da PGR é que as assembleias legislativas e os governadores feriram a competência do Congresso para legislar sobre o tema, e ainda por cima desrespeitaram o que diz o estatuto. Além da lei mineira estão sendo questionadas as de Mato Grosso, Ceará, Paraná, Espírito Santo, Bahia. Os demais estados a liberarem a bebida foram Rio de Janeiro, Pernambuco, Santa Catarina e Rio Grande do Norte.

Para dirimir a questão, o senador Eduardo Girão (Podemos-CE) apresentou o Projeto de Lei (PL) 3.788/2019, que proíbe terminantemente o consumo e a venda de bebidas alcóolicas em ocasiões esportivas. De acordo com Girão, não se pode aguardar o julgamento de ações, que, nas palavras dele, estão “adormecidas” no STF.

Em entrevista à Rádio Senado, o parlamentar pediu urgência, pois o que está em risco é a segurança dos brasileiros: “São crianças que estão nesses estádios, adolescentes, são idosos que estão no meio dessa confusão. Em um local que é para você levar a família, para promover o amor pelo seu clube, você acaba muitas vezes saindo ferido”.

A proposta do senador aumenta a pena — de no máximo dois, para no máximo três anos — aplicável a torcedores violentos, organizados ou não, que causarem confusão ou invadirem locais restritos. E amplia a punição em um terço caso o culpado esteja sob influência de álcool. O PL torna crime a venda de bebida alcóolica nos locais das competições.

“Eu fui presidente do clube, o Fortaleza, e pude conviver com todos os atores do futebol. Vi que futebol é paixão pura. Você já entra no estádio vendo o outro lado como adversário. E para transformar de adversário para inimigo, basta algum consumo de álcool. Não precisa ser muito, não. Quando você envolve [álcool] você sai totalmente do seu equilíbrio, e pode causar até mortes, como já tem relatos”, testemunhou o senador à emissora.

A afirmação do sociólogo Maurício Murad, especialista em sociologia do esporte, corrobora o argumento do senador:

— Confundir adversário com inimigo (e inimigo a ser abatido), competição com agressão, e concorrência com violência faz parte do código de agressividades dos grupos que se infiltram nas torcidas, que são minoritários, mas altamente violentos.

Eduardo Girão: para transformar adversário em inimigo, basta algum consumo de álcool (foto: Pedro França/Agência Senado)

Para Murad, o consumo de álcool não determina que um torcedor será agressivo. Entretanto, potencializa as chances de um indivíduo que já é violento se tornar ainda mais. Em entrevista à Agência Senado, o pesquisador afirma que a bebida reduz a autocrítica, a censura, facilita a transgressão e a ultrapassagem de limites. Conjugado a outros fatores, o álcool pode ser, segundo ele, “atear gasolina na fogueira”.

Do total de 160 confrontos e vandalismos observados até a 38ª rodada do campeonato deste ano, mais de quatro por rodada, 76% foram relacionados direta ou indiretamente ao consumo de álcool, conforme o estudioso.

Para diminuir a violência, Murad recomenda ao poder público aumentar as taxas de resolução de crimes, o que significa cumprir as leis punindo os culpados até as últimas consequências. Segundo levantamento do sociólogo, a média histórica de punição no universo do futebol é de apenas 3%.

Ele concorda, porém, que a melhoria de procedimentos de organização e segurança a cargo de clubes e administrações de estádios (horário de abertura dos portões, orientação das filas e revistas) pode ajudar a prevenir problemas. No malfadado Atlético x Cruzeiro, uma das falhas foi o número insuficiente de seguranças, já que o dia do jogo coincidiu com a realização de uma prova do Enem, atividade que normalmente recruta muitos trabalhadores avulsos.

“Eu sempre brinco assim: por acaso o futebol brasileiro mora no Brasil. Não é o reflexo, não é aquela determinação mecanicista, mas ele expressa o país, com todas as mediações e intermediações”, disse Murad em entrevista publicada na revista científica Mosaico em 2018.

Efeitos do álcool

Consultor recomenda estrito cumprimento da lei

A legislação não é a responsável pela violência nos estádios, apesar de que possa sempre ser aprimorada, na opinião do consultor legislativo do Senado Rafael Augusto Simões. Para ele, a dificuldade é a interpretação do Estatuto do Torcedor, principalmente no entendimento do segundo parágrafo do artigo 13-A. O texto proíbe o porte de bebidas alcoólicas e não diretamente o uso. O que estimula, muitas vezes, a alteração do estatuto por meio de leis estaduais que autorizam ou não o consumo. 

O consultor é cético quanto à possibilidade de a mudança feita pelos Estados tenha se dado como um efeito colateral da liberação da venda de cerveja nos estádios durante a Copa das Confederações (2013) e a Copa do Mundo (2014). E a razão é que a Lei Geral da Copa foi sancionada em 2012, enquanto a primeira lei estadual é de 2014. Adicionalmente, ele argumenta que o público da copa é diferente daquele que vai aos jogos dos campeonatos comuns. Quem prestigia a seleção brasileira em geral são grupos familiares.

O consultor recomenda cautela quando se avaliam os efeitos esperados tanto a Lei 13.912 quanto do Projeto de Lei 3.788/2019.  Isto porque, já existem três tipos de punições para aqueles que causam confusões nos jogos e depredam estádios: administrativa, cível e penal. O que falta, de acordo com ele, é a aplicação da lei.

— Não tem como impedir o torcedor [de cometer violência] porque não tem identificação biométrica para entrar nos estádios. Às vezes o torcedor recebe uma pena e como isso vai ser fiscalizado? Uma coisa é a torcida, tudo bem, mas o torcedor individual não tem como. Não tem banco de dados. A identidade do torcedor não é um requisito para a entrada no estádio. Na Arena da Baixada, em Curitiba, tem identificação biométrica, mas é a única do país — observou.

Copa do Mundo normalmente tem perfil de público diferente dos campeonatos convencionais, segundo consultor do Senado (foto: Marcello Casal/Agência Brasil)

Trajetória de incertezas

No final de 2017, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) abriu uma "agenda positiva" com os ministérios públicos estaduais e outras instituições, como as polícias militares, a Justiça Desportiva e o Corpo de Bombeiros para deliberarem sobre questões de segurança dentro e fora dos estádios. Na época, o procurador de Justiça, Valberto Cosme de Lira, recordou de um acordo de cooperação firmado 12 anos antes entre a CBF e o Ministério Público, mas que terminou não indo à frente.

“Nós tivemos assinatura de um termo de cooperação objetivando justamente o combate à violência nos estádios. E houve um certo distanciamento. Agora estamos retomando essa parceria”, declarou Lira, procurador na Paraíba e chefe do Núcleo de Defesa do Torcedor (Nudetor). Segundo ele, os órgãos retomavam a discussão imbuídos do mesmo propósito: fazer com que o futebol do Brasil ultrapassasse “a fase da violência” e ocupasse “lugar de destaque no cenário Mundial”.

A ideia da torcida única, que afinal compôs o roteiro de Cruzeiro X Palmeiras, chegou a ser aplicada em outros estados. Um deles foi o Paraná. Durante um período de 15 meses na Arena da Baixada, o estádio do clube Athletico Paranaense, apenas os torcedores do time da casa tiveram acesso aos ingressos. O saldo dessa iniciativa da Promotoria de Justiça de Defesa do Consumidor de Curitiba do Ministério Público do Paraná foi positivo, segundo avaliação da própria instituição: a força policial deslocada para os estádios diminuiu 14% e as ocorrências de conflitos caíram de 28 para 20.

Apesar disso, a solução é vista com reserva por estudiosos, inclusive por Murad, que vê no afastamento de todo um contingente a punição de pessoas que não praticam violência:

“A torcida única tira o sabor do futebol, é a antítese e a negação do futebol que desde a origem trabalha com torcidas opostas. É evidente que o Estado tem que controlar, mas os vândalos, os violentos, os arruaceiros são minorias nas torcidas organizadas”.

Em análise feita em outubro à Agência Estado, Bernardo Buarque de Hollanda, professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, disse acreditar que a vedação dos jogos às organizadas não diminui a agressividade de seus integrantes. Apenas deslocou o foco das ações para outros espaços. Ele recomenda que se encare o comportamento dos torcedores da atualidade como reflexo de fatores como a perda de identidade entre clubes, ídolos e torcidas. E de uma postura fiscalizadora de torcedores que se veem como donos de times em razão do esforço que fazem para acompanhá-los e apoiá-los.

A torcida única no Mineirão foi solicitada pelo Ministério Público de Minas Gerais com base numa visão estratégica, já que há beligerância entre cruzeirenses e palmeirenses e a torcida do Palmeiras teria ligações com uma torcida organizada do Atlético. O promotor Paulo de Tarso afirmou que foi uma medida preventiva com o objetivo de evitar violência.

“Não se pode olvidar que a partida futebolística que ocorrerá às 16h de amanhã será a protagonista deste domingo no Campeonato Brasileiro da Série A, diante da possibilidade de rebaixamento do Cruzeiro para a Série B. Portanto o incremento numérico da torcida do clube adversário ao Cruzeiro, inclusive com integrantes da torcida Galoucura, fatalmente incitará atos de ódio, violência, selvageria, embates físicos colocando em iminente risco a ordem pública”, escreveu em sua decisão a juíza plantonista juliana Beretta, ao proibir o Cruzeiro de vender ingressos aos visitantes, sob pena de multa.

 A argumentação da procuradoria também é reveladora da fragilidade do poder público e das esferas de administração do futebol perante a fúria de parte dos torcedores, organizados ou não:

“O Ministério Público entende que, em conjunto com as Polícias Militar e Civil e Corpo de Bombeiros, está tomando as medidas preventivas adequadas em observância à manutenção da ordem no jogo. Trabalhos de segurança em eventos de massa como o futebol demandam todas as ações prévias possíveis, pois a atuação repressiva sempre se dará de forma traumática, na maioria maciça das vezes com necessidade de utilização de força. Dessa forma, exaltamos a compreensão da questão pela Judiciário".

Medo de morrer

Apesar do histórico do uso traumático da força, a participação da polícia por vezes surpreende na direção contrária. A incerteza sobre o quanto a polícia pode realmente proteger um torcedor foi sentida pelo ex-jogador Diego Lima, e seu amigo Ronaldo Souza, expulsos da Arena do Palmeiras por suspeita de estarem torcendo para o Flamengo no jogo de 1º de dezembro — apenas porque não estavam cantando o hino do clube e as músicas da torcida. Depois de serem perseguidos pelos palmeirenses, e com medo de morrer, procuraram o apoio a PM, mas este foi bastante limitado.

"Os policiais me socorreram, mas eles acharam que eu era bandido também. A princípio, acho que alguém poderia ter nos ajudado, nós ficamos muito expostos no meio da torcida. Depois eles (policiais) prestaram uma ajuda, mas falaram assim: ‘Olha, se quiserem subir (para assistir ao jogo novamente), vocês ficam lá, mas se os caras baterem em vocês, não somos responsáveis e nem seguranças de vocês’. Esta foi a forma que nos trataram. Saí do estádio sem escolta nenhuma, fui sozinho para o shopping, onde estava minha esposa. Meu amigo foi depois e sozinho, também", contou Diego em entrevista ao site Globo Esporte.Com.

Diante da pletora de ações violentas e depoimentos estarrecedores, o futebol brasileiro segue sem um diagnóstico em bases científicas por parte de seus dirigentes e também do sistema de segurança pública, lacuna que é suprida por estudiosos como Murad, responsável, até onde se sabe, pelo único conjunto de estudos sobre dados da violência no futebol, tema de dois de seus livros.


Acabar com a impunidade é essencial

Entrevista: Mauricio Murad, Coordenador do Programa de Pós-graduação da Universidade Salgado de Oliveira (Universo)

Maurício Murad é autor de livros sobre a violência no futebol (foto: TV Brasil)

Os principais fatores para violência envolvem o descumprimento do Estatuto do Torcedor quanto ao consumo de bebidas alcoólicas nos estádios?

Entre outros, a falta de efetiva fiscalização, dentro e no entorno dos estádios, despreparo de agentes públicos e impunidade.


Interesses cruzados entre a administração do futebol e marcas de cerveja influenciam venda de bebidas em parte dos estados?

Este é um fator muito importante: o lobismo das marcas de cerveja, que é fortíssimo e que adora divulgar que não existem pesquisas em bases científicas que comprovem a relação álcool-violência. Verdadeira fake news. Sim, com certeza, abriu e ainda está abrindo essas brechas em diversos estados brasileiros. Hoje, esse debate é nacional.

 
Quais os efeitos do álcool na violência?

O álcool não pode ser criminalizado, como causa única, nem principal, mas muitas e muitas pesquisas médicas e sociais indicam claramente, que o álcool potencializa a agressividade e, portanto, a violência. O etanol reduz a autocrítica, a censura, e facilita a transgressão e a ultrapassagem de limites. E não só no futebol — vide a lei seca, relativamente ao trânsito. Dentro ou fora dos estádios brasileiros, bebe-se muito e, por vezes, de forma descontrolada. [A restrição à venda de bebidas num raio de] 5 quilômetros é o mais frequente nos protocolos europeus.


O que poderia ajudar a conter a violência (antecipar o horário de abertura dos estádios, organização das filas e revistas)?

Além desses procedimentos relatados em meu livro, fator fundamental é reduzir a impunidade (3% é a média histórica de punição no universo do futebol), cumprir as leis existentes com punição até as últimas consequências, o que não tem ocorrido e não somente nos delitos do futebol.


Como resolver o problema da impunidade?

As leis podem e devem ser endurecidas, para evitar e reprimir delitos, [como é o caso] recentemente da Lei 13.912 e [do projeto de lei] 3.788/2019. Todavia, o mais importante é a aplicação efetiva dos dispositivos legais, no sentido de coibir atos criminosos de transgressão.

Briga entre torcedores de Vasco da Gama e Atlético-PR no Brasileiro de 2013 (foto: Reprodução/TV Globo)

E quanto ao racismo?

Racismo e injúria racial são crimes tipificados desde 1989, com penas de 1 a 3 anos, além de multas que podem ser bastante onerosas. As imagens são claríssimas e valem como prova em processos criminais. Essas do Mineirão, e várias outras. Então, o que falta fazer é punir severamente, exemplarmente, dentro da lei, e até as últimas consequências. Segundo a filosofia do direito, o exemplo tem um caráter pedagógico — para o bem e para o mal.

 
Há influência do quadro de acirramento político?

A polarização que se vive hoje no Brasil é um dos grandes combustíveis para diferentes e preocupantes práticas de violência em nossa sociedade, inclusive no futebol. Confundir adversário com inimigo (e inimigo a ser abatido), competição com agressão e concorrência com violência fazem parte do código de agressividades dos grupos violentos que se infiltram nas torcidas, que são minoritários, mas altamente violentos. A radicalização, a polarização política e ideológica, marcantes na atual conjuntura brasileira, vai ao encontro desse mesmo código de brutalidades e agressividades.

 
E o uso de drogas?

O consumo de drogas ilícitas (principalmente maconha, cocaína e crack) é intenso como nos anos anteriores e teve significativo aumento em 2019, algo em torno de 20%. O uso de drogas sintéticas é um dado novo e preocupante no ano de 2019 — sintoma do país como um todo, onde houve um aumento expressivo dessas drogas sintéticas.


Mas houve queda de mortes relacionadas às torcidas de futebol em 2019.

Houve uma queda expressiva. O combate (e prisões) recorde ao tráfico de cocaína, pode ser uma das explicações. Das drogas ilícitas consumidas pelos grupos violentos infiltrados nas torcidas, a cocaína é a principal. "Combustível pra porrada", gravou um desses truculentos para a nossa pesquisa.


A queda de mortes no futebol pode indicar mudança de perfil da violência, acompanhando o que ocorre nas demais esferas da sociedade?

Sim, penso que sim. [Mas] há níveis de crueldade e sadismo poucas vezes observado.


E quanto à influência do neonazismo nas torcidas de futebol?

Se trata de um dado novo, pouco conhecido, mas extremamente importante, para se entender os graus radicais de intolerância e violência no brasil, de um modo geral, como também no universo do futebol. Dados atualizados de nossa pesquisa: 350 células neonazistas organizadas no Brasil, 4 mil sites e quase 300 mil acessos na internet. Muito preocupante.


Mais rigor para assédio e violência contra mulher nos estádios

No dia 30 de outubro, a Comissão de Educação, Cultura e Esporte (CE) aprovou projeto que coíbe práticas violentas ou machistas contra as mulheres nos ambientes esportivos (PL 549/2019). Enviado à Câmara dos Deputados, o texto altera o Estatuto do Torcedor (Lei 10.671/2003), e determina que caberá ao aparato de segurança do evento expulsar torcedores que assediarem, ou adotarem qualquer outra atitude de violência, contra torcedoras que estejam em estádios, ginásios ou outra arena esportiva. 

De autoria da senadora Leila Barros (PSB-DF), o projeto manda expulsar ou impedir a entrada de torcedores que estiverem com cartazes ou bandeiras com mensagens misóginas, ou que entoem músicas ou cânticos que desrespeitem as mulheres. Caberá à segurança dos eventos assegurar às torcedoras proteção contra ações que lhes causem riscos de morte, lesões, sofrimentos físico, sexual ou psicológico, e contra danos moral ou patrimoniais.

Leila Barros lembra que relatos de assédio e atos violentos contra as mulheres. "Essas práticas são feitas com ares de habitualidade. Nós precisamos combater estes comportamentos deploráveis. As mulheres querem ficar à vontade e torcerem sem serem importunadas por práticas machistas e chauvinistas", afirmou quando da  aprovação da proposta.

Leila Barros: atitudes machistas ainda são frequentes em ambientes esportivos (foto: Jefferson Rudy/Agência Senado)

Reportagem: Nelson Oliveira e Ana Luisa Araujo (sob supervisão)
Pauta, coordenação e edição: Nelson Oliveira
Coordenação e edição de multimídia: Bernardo Ururahy
Edição de fotografia: Ana Volpe
Infografia: Diego Jimenez e Cássio Costa
Foto de Capa: Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul

Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado