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O enredo do curta-metragem tem um quê de kafkiano. Após maltratar um surdo, a protagonista se vê lançada, de uma hora para outra, num mundo onde todos só se comunicam pela língua de sinais. Ninguém fala. Ela acaba sendo presa pela polícia por engano e tenta explicar — em bom português — que não tem nada a ver com o crime do qual é acusada. Suas palavras, porém, não significam nada para os policiais. Os sinais que eles fazem com as mãos tampouco fazem sentido para ela. Percebendo-se um peixe fora d’água nesse mundo de surdos, a personagem surta.
— Com essa inversão de papéis, transformando os surdos em maioria e os ouvintes em minoria, busco fazer a sociedade sentir o quão sofrida é a vida do surdo. Por não haver acessibilidade linguística, ele não compreende nem é compreendido — explica Johnnatan Albert, roteirista e diretor do filme Libras É Merda? (assista a cenas do filme no final desta reportagem), que foi lançado neste mês em Brasília, numa mostra de curtas-metragens produzidos por surdos, e deverá ser exibido em outros festivais pelo país.
Libras é a sigla de língua brasileira de sinais, composta de um extenso e complexo repertório de gestos. Em 2002, a Lei 10.436 deu à Libras o status de meio legal de comunicação e expressão. Desde então, escolas, faculdades, repartições do governo e empresas concessionárias de serviços públicos estão obrigadas a providenciar intérpretes para atender aos surdos. A lei faz aniversário em 24 de abril, que, por isso, transformou-se no Dia Nacional da Língua Brasileira de Sinais.
A Libras ganhou uma visibilidade inédita neste ano. Na posse do presidente Jair Bolsonaro, em 1º de janeiro, a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, fez um discurso na língua de sinais no parlatório do Palácio do Planalto.
Apesar da lei de 2002, os surdos ainda estão longe da plena inclusão na sociedade. Como o curta Libras É Merda? denuncia (às avessas), o grande obstáculo é a escassez de ouvintes que se comuniquem na língua de sinais. A Libras está restrita à comunidade surda. Isso pode transformar atividades corriqueiras num inferno. No ônibus, os surdos não conseguem saber do cobrador qual é a parada em que devem descer. Se o alto-falante do aeroporto anuncia troca de portão, eles correm o risco de perder o avião caso não estejam com os olhos grudados nos telões de voos.
No cinema, não podem ver filmes nacionais, pois só os estrangeiros são legendados. Na loja, o vendedor menos paciente e esclarecido pode confundir os gestos da língua de sinais com brincadeira ou deficiência mental e simplesmente virar as costas para os clientes surdos.
Nos serviços de saúde, os surdos perdem a vez quando não estão atentos à enfermeira que grita o nome do próximo paciente. Essa dificuldade, aliás, levou à criação de um projeto-piloto no Sistema Único de Saúde (SUS): o Hospital Federal de Ipanema, no Rio de Janeiro, abriu uma central de atendimento e consulta mediada por intérprete de Libras.
As situações podem inclusive ser trágicas. ONGs dedicadas aos surdos dizem que não são raros os casos em que pacientes com problemas sérios de saúde saem de consultas com uma prescrição errada de remédio, porque o médico não entendeu quais eram os sintomas, e situações em que inocentes são mortos porque não ouviram a ordem de parar e o policial atirou por não perceber que eram surdos.
— Deficiente não é o surdo, mas a sociedade que não sabe se comunicar com ele. Se o surdo encontrasse no dia a dia pessoas que soubessem a língua de sinais, ele não enfrentaria tantas barreiras e, por isso, nem perceberia a surdez como deficiência — afirma a coordenadora do Laboratório de Educação de Surdos e Libras, da Universidade de Brasília (UnB), Edeilce Buzar.
Segundo o Censo mais recente, viviam em 2010 no Brasil 2,1 milhões de pessoas que escutavam muito pouco ou nada — o equivalente à população de Manaus. A pesquisa do IBGE não apontou quantas faziam uso da língua de sinais.
As primeiras barreiras linguísticas por vezes são impostas pela própria família. Quando a criança nasce surda ou perde a audição ainda pequena, muitos pais rejeitam a língua de sinais e impõem a oralização. Sem ouvir a própria voz, o treinamento da fala e da leitura labial costuma ser lento e penoso. O aprendizado da língua de sinais, ao contrário, é natural para quem, compensando a lacuna da audição, tem na visão o sentido mais apurado.
— Eu consigo falar, mas não me sinto à vontade. Prefiro a língua de sinais — diz Johnnatan Albert, o diretor do curta-metragem, que tem 32 anos e perdeu a audição quando era bebê, como sequela da meningite. — Como não ouço minha voz e não consigo controlar muito bem a tonalidade e o volume, todas as pessoas que estão ao redor se viram para mim quando falo qualquer coisa. Algumas olham com ar de reprovação. Fico constrangido.
Raras escolas estão adaptadas para receber alunos surdos. A mera presença de um intérprete da língua de sinais ao lado do professor não é suficiente. Por um lado, muitas crianças surdas chegam ao colégio sem saber língua nenhuma e vão ter que aprender a Libras do zero. Por outro, as que já sabem a língua de sinais não encontram professores preparados para ensinar-lhes o português escrito. Nessa situação, como a Libras é a primeira língua do estudante, o português precisa ser apresentado como segundo idioma, com uma metodologia completamente diferente, tal como uma língua estrangeira. O professor precisa ser bilíngue e ter uma formação específica.
Em consequência do despreparo das escolas, muitos surdos chegam ao fim dos estudos como analfabetos funcionais. É por isso, aliás, que tentar se comunicar por escrito com um surdo nem sempre dá certo.
— Os surdos acabam sendo forçados a viver encapsulados em seus próprios mundos. São como almas que passam por nós sem que nos preocupemos em enxergá-los ou interagir com eles — compara o intérprete de Libras e ex-presidente da Associação de Pais e Amigos dos Deficientes Auditivos do Distrito Federal (Apada-DF) Marcos de Brito.
Desde 1991, a Lei 8.213 obriga as empresas a reservar uma parte de suas vagas para funcionários com algum tipo de deficiência. Para firmas que tenham entre 100 e 200 trabalhadores, por exemplo, a cota é de 2%. A inclusão efetiva nem sempre ocorre. Tarcísio Barroso, de 31 anos, ficou surdo ainda bebê, também por causa da meningite. Ele é oralizado, mas tem a Libras como primeira língua. Mesmo pós-graduado na área da tecnologia da informação, acabou sendo relegado a tarefas secundárias em muitas das empresas onde trabalhou, em Brasília.
— A comunicação com meus chefes sempre foi falha. Alguns não se preocupavam em articular bem as palavras na hora de falar, para eu fazer a leitura labial. Outros preferiam se comunicar por escrito, mas usavam palavras difíceis ou frases pouco objetivas, o que dificultava a minha compreensão. De tanto eu pedir que explicassem novamente cada orientação, acabavam concluindo que eu tinha deficiência intelectual e passavam a me deixar de lado. Já chorei muito por causa disso.
A mãe dele, Vanilda Barroso, lembra que a inadequação que ele agora sente no trabalho é muito parecida com a que sentia no colégio, quando os professores não exploravam as suas potencialidades e só apontavam as dificuldades.
— As empresas contratam um surdo e nem se preocupam em saber como os surdos são. Só querem cumprir a cota exigida pela lei. Não estão interessadas na inclusão — ela afirma. — E a inclusão não é difícil. Bastaria que as empresas deixassem de encarar o surdo como um incapaz e passassem a vê-lo como um estrangeiro que não compreende plenamente o português e precisa de explicações numa linguagem mais clara.
A questão preocupa os senadores. Eles estudam diversos projetos de lei que buscam reduzir a barreira linguística que isola os surdos. O PLS 155/2017, de Telmário Mota (Pros-RR), obriga os bancos a contar com intérpretes de Libras. O PLS 52/2016, de Ciro Nogueira (PP-PI), e o PLS 465/2017, de Kátia Abreu (PDT-TO), determinam a mesma adaptação aos hospitais públicos. O PRS 33/2018, de Paulo Rocha (PT-PA), prevê que as transmissões da TV Senado sejam traduzidas para a língua de sinais.
Em março, por sugestão de Romário (Pode-RJ), o Senado lançou um vídeo bilíngue (em português e Libras) com a íntegra da Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146). Na visão do senador, para diminuir a exclusão dos surdos, é preciso estimular a difusão da língua de sinais entre os ouvintes, especialmente a partir das escolas.
— Eu mesmo tenho dificuldade para me comunicar com um surdo, pois não tive nenhuma disciplina escolar que me proporcionasse esse domínio — diz Romário. — Da mesma forma que ensinam inglês e espanhol, as escolas poderiam também incluir a Libras, mesmo que como disciplina optativa, algo que muitas universidades já têm feito.
Neste momento, a Câmara dos Deputados analisa um projeto de lei que prevê a inclusão da língua de sinais como disciplina optativa nos colégios públicos localizados nas cidades com mais de 10 mil habitantes. A proposta original é do ex-senador Cristovam Buarque e sofreu alterações na Câmara. Se o texto for aprovado pelos deputados, terá que ser novamente submetido aos senadores.
A partir de cenas do filme Libras É Merda?, que inverte papéis entre surdos e não surdos, pessoas com deficiência auditiva alertam os "ouvintes" para os problemas relacionados ao seu isolamento. Especialistas defendem a empatia e a popularização da língua de sinais como ingredientes para combater a exclusão.