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Aprendizagem profissional é subutilizada no Brasil, afirmam especialistas

Guilherme Oliveira
Publicado em 19/3/2019
Edição 668
Jovens aprendizes

Mesmo contando com um bem-formatado programa de aprendizagem profissional, o Brasil ainda tem dificuldades em resolver o drama de milhões de jovens  em busca de ocupação ou submetidos ao trabalho informal, além dos milhares de adolescentes internados em instituições socioeducativas.

Considerado a melhor porta de entrada ao mercado de trabalho para grande parte das pessoas de até 24 anos, o regime de aprendizagem profissional tem abrangência limitada: o número de aprendizes está na casa dos 450 mil.

Em audiência pública no fim de 2018, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado obteve de especialistas no tema a avaliação de que o país tem um enorme potencial de candidatos a uma atividade que una trabalho e treinamento, mas não encontram oportunidades.

É consenso entre esses estudiosos que tanto as empresas quanto a sociedade sairiam ganhando caso a aprendizagem profissional fosse uma realidade consolidada.

 

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Fundamentos

A aprendizagem é um caminho para que adolescentes e jovens de idades entre 14 e 24 anos tenham as primeiras experiências formalmente reconhecidas como profissionais de uma forma que não interfira na sua educação. Enquanto aprendizes, eles devem receber capacitação teórica e prática, ser periodicamente avaliados e lidar com uma quantidade controlada de responsabilidades.

De acordo com a ministra Kátia Magalhães Arruda, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), a aprendizagem é uma forma de os jovens experimentarem o mercado de trabalho sem precisarem passar por todas as suas provações. Ao exigir que o aprendiz continue recebendo educação, o mecanismo se configura em uma “chave de oportunidades”.

— A aprendizagem é uma política pública que impacta vários problemas: educação [deficiente], violência, desemprego, pobreza, desigualdade social.

A ministra do TST Kátia Magalhães Arruda participa de audiência no Senado. À sua direita, o presidente da CDH, Paulo Paim (foto: Pedro França/Agência Senado)

Também é possível observar vantagens para o setor produtivo. Os jovens que se formam por meio da aprendizagem já ingressam na vida profissional como trabalhadores mais preparados:

— Para as empresas, é importante, porque forma trabalhadores capacitados e engajados, faz com que cresçam consumidores, diminui custos de recrutamento e melhora a qualidade da mão de obra.

Legislação

O contrato de aprendizagem profissional foi reconhecido em lei no período do Estado Novo, auge do trabalhismo, ainda antes da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), através de um decreto-lei de 1942, que tratava da indústria. Quatro anos depois, foi a vez de o comércio incorporar o instrumento.

A atual lei que rege a aprendizagem profissional está em vigor há quase duas décadas (Lei 10.097, de 2000). O contrato de aprendizagem pode ser firmado por no máximo dois anos, período que deve ser incorporado ao tempo de contribuição do jovem para efeitos de aposentadoria. O aprendiz deverá receber ao menos um salário mínimo.

Formação de jovens aprendizes na década de 40 (foto: Centro de Memória do Sistema FIEP)

A legislação estabelece uma cota mínima de aprendizes por empresa: entre 5% e 15% do total de trabalhadores, mas a maior parte das empresas opta pela porcentagem menor — isso quando a cota é cumprida. De acordo com levantamentos de 2018 do Ministério do Trabalho (agora incorporado ao Ministério da Economia) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), se o piso da cota fosse cumprido, o Brasil poderia ter cerca de 960 mil aprendizes em atividade. Esse número poderia chegar a 3 milhões em caso de cumprimento do percentual de 15%.

 

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Entretanto, o pico de contratação de aprendizes, alcançado em 2014 e 2015 (de pouco mais de 400 mil jovens por ano) vem caindo, conforme o Boletim da Aprendizagem do antigo Ministério do Trabalho. No final de 2018, a diferença entre contratações e rescisões era de 449.151. Em contraste, mais de 4 milhões de jovens de até 24 anos (idade-limite para ingresso no programa) estavam desocupados — ou seja, desempregados, mas em busca de trabalho. Outros 2 milhões de crianças e adolescentes labutavam no trabalho infantil.

 

 

O Brasil não alcança 1% no aproveitamento de sua população jovem para a força de trabalho. Segundo a Organização Mundial do Trabalho (OIT), a Suíça, a Austrália e a Alemanha têm cerca de 4% do seu contingente profissional formado por aprendizes.

Para Ramon Santos, representante do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), a valorização da aprendizagem é uma marca de economias avançadas. E não tem nada a ver com caridade, mas com interesse.

— Os países mais desenvolvidos tecnologicamente são os que mais estão investindo na qualificação do seu futuro trabalhador. As empresas precisam tomar consciência de que investir na juventude e no aprendiz não é gasto jogado fora.

Santos defende a aprendizagem como o melhor caminho para a inclusão social. Sem ela, destaca, o que sobra são programas sociais que deixam os jovens dependentes do Estado.

Melhorias

O setor produtivo tem tentado se atualizar aos tempos para incorporar mais aprendizes às suas fileiras. É o que garante o gerente de Educação Profissional do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), Felipe Morgado.

Ele classifica o regime de aprendizagem como o “estado de arte” da formação. O principal indicador que as empresas precisam melhorar, segundo sua avaliação, é o do turnover — a substituição de trabalhadores que se aposentam por aprendizes já inseridos no processo. O caminho para fazer isso é prever as novas tendências para afinar a formação.

A diversificação das vagas de aprendizagem também é vista como uma deficiência a ser suprida. Segundo o antigo Ministério do Trabalho, 42% dos aprendizes em atividade trabalham como auxiliares de escritório; outros 17% são assistentes administrativos. Essa concentração é interpretada como um sinal de que a aprendizagem ainda é um caminho ao qual os jovens aderem por necessidade, e não para realizar alguma aptidão.

 

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No Serviço Brasileiro de Apoio às Micros e Pequenas Empresas (Sebrae), a tentativa é atrair mais pequenos negócios para a aprendizagem e também transformar a atividade em uma porta de entrada para a autonomia profissional.

Rejane Botelho, analista técnica da entidade, explica que o Sebrae oferece capacitação desde o ensino fundamental até o superior para que jovens aprendam características como autoconfiança, persistência, cálculo de riscos e planejamento.

Vidas transformadas

O impacto positivo da aprendizagem é certificado por quem teve o curso de sua vida alterado pela oportunidade. É o caso da jovem Mylena dos Santos Rocha, moradora da região do Entorno do Distrito Federal. Ela faz um curso de administração e trabalha na mesma área por intermédio da organização Ensino Social Profissionalizante (Espro).

— No curso, percebi habilidades que eu não tinha percebido na escola e não havia desenvolvido ainda. Procurei formas de me especializar e me destacar nelas. Até então eu não achava que conseguiria um emprego através da minha competência.

Além de deslanchar na vida profissional, Mylena conseguiu realizar o sonho de entrar na faculdade, graças ao equilíbrio garantido entre o trabalho e os estudos.

Mylena Rocha: trabalho como jovem aprendiz ajudou no sonho de entrar na faculdade (foto: Pedro França/Agência Senado)

Papel do Senado

Ao contrário do setor privado, órgãos estatais não são obrigados a cumprir uma cota de aprendizes em seu quadro de funcionários. Mesmo assim, a participação do setor público nesse processo é ampla: ambas as Casas do Congresso promovem a aprendizagem, assim como ministérios, tribunais, agências e empresas. Há um componente de responsabilidade social por trás dessa decisão, mas também há benefícios a serem colhidos pelos órgãos.

O Senado Federal conta com jovens aprendizes em suas fileiras de servidores desde 2015. A parceria com o Centro Salesiano do Aprendiz (Cesam) já beneficiou 293 deles.

Programa Jovem Aprendiz: Senado já proporcionou experiência de trabalho a quase 300 adolescentes (foto: Roque de Sá/Agência Senado)

Chefe do Serviço de Gestão de Estágios, Maria José Bezerra da Silva explica que a experiência de vivenciar o Legislativo é desejável para todas as partes.

— Ajudamos a expandir a instituição. Além de contribuir com a formação cidadã, estamos levando um pouco do Senado para fora. Esse jovem, estando aqui dentro, entendendo o funcionamento daCasa legislativa, também leva essa visão para sua família.

A avaliação de Maria José é compartilhada por Tatiana Furtado Gomes, gerente socioeducativa do Cesam.

— [Os aprendizes] tinham uma outra visão do Senado. Aqui eles começam a entender o que ele faz, qual é o seu papel. E muitas famílias já chegam ao Cesam pedindo para o filho ir para Senado, porque isso se expandiu entre os jovens que comentam sobre a experiência de estar aqui.



Reportagem: Guilherme Oliveira
Pauta, coordenação e edição: Nelson Oliveira
Coordenação e edição de multimídia: Bernardo Ururahy
Infografia: Cássio Costa
Repórter fotográfica: Ana Volpe
Foto de capa: Roque de Sá/Agência Senado