Quer receber notificações do portal Senado Notícias?
A morte do senador Petrônio Portella, 40 anos atrás, deixou a redemocratização do Brasil em suspenso. De forma inesperada, ele morreu em 6 de janeiro de 1980, aos 54 anos de idade, vítima de um ataque cardíaco. A ditadura estava no meio de um delicado processo de desmonte. Cabia a Petrônio desde 1977, em nome do regime militar, negociar com a sociedade, a oposição e até políticos governistas os termos dessa transição e, assim, viabilizar a volta da democracia.
Todas as medidas de abertura tomadas até então tinham as digitais de Petrônio: a derrubada do abusivo Ato Institucional 5 (AI-5), a volta do habeas corpus para presos políticos, o fim da censura, a proibição da cassação arbitrária de políticos, a reorganização do movimento estudantil, a anistia dos adversários do governo encarcerados ou exilados e o fim do bipartidarismo. Para o processo ser concluído, porém, faltavam os últimos e decisivos passos: as eleições diretas, a saída dos militares do poder e uma nova Constituição.
Há 40 anos, o Brasil ficou com medo de que, sem mais contar com a ação política de Petrônio, o governo do general João Figueiredo não resistisse à pressão da linha dura e a redemocratização acabasse sendo empurrada para um futuro distante ou até mesmo abortada.
Petrônio Portella tornou-se senador em 1967, eleito pelo Piauí. Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que, apesar de pertencer à Arena (partido governista) e ser alinhado aos generais do Palácio do Planalto, ele insistia, em seus pronunciamentos, que o regime militar era temporário e que a democracia precisava ser retomada. Mas fazia isso, claro, sem atacar os governos dos quais fazia parte.
— Não vou negar, aqui da tribuna, que as instituições estão sob controle. Longe ainda estamos do caminho da democracia — declarou ele, em tom de lamento.
— Vivemos momento de excepcionalidade. Não modelamos na plenitude o nosso sistema político, já aperfeiçoado, mas ainda por tomar a forma definitiva, em que a segurança se concilie com a liberdade — afirmou em outra ocasião.
— O Ato Institucional número 5 é transitório, como transitório é o processo de qualquer revolução — disse.
Da mesma forma, o senador nunca disfarçou o incômodo diante das violências praticadas pela ditadura.
— Sinto indignação — discursou ele, depois que policiais invadiram a Universidade de Brasília (UnB) para espancar e prender estudantes. — Mas faço a diferença fundamental entre o governo da República e beleguins policiais que desobedecem às autoridades e exorbitam nas diligências. Sua Excelência [o presidente Costa e Silva] fica com a nação, que pede providências e se solidariza com os estudantes, injustamente pisoteados pela política.
— Digo de forma frontal, sem subterfúgios: tanto sou contra a violência daqueles que querem regimes totalitários como sou contra a violência daqueles que, detendo o poder, dele abusam. Esta, a minha norma — respondeu a um senador do MDB (partido da oposição) que o acusara de ser crítico da violência dos “subversivos” e complacente com os abusos do governo.
Petrônio Portella presidiu o Senado duas vezes, em 1971-1972 e 1977-1978. Foi no último período que ele alcançou o posto de negociador da abertura. O presidente da vez era o general Ernesto Geisel, que havia chegado em 1974 com o plano de iniciar a “distensão” (como ele chamava a abertura do regime). Para ajudá-lo na missão, convocou Petrônio.
Era uma missão difícil. O senador precisaria dobrar tanto a linha dura (militar e política), que desejava manter a ditadura a qualquer custo, quanto a oposição (MDB e organizações representativas da sociedade), que queria dinamitar o regime militar já.
O presidente do Senado sabia que, diante das circunstâncias, a abertura só se tornaria realidade se fosse feita passo a passo, de forma controlada e com salvaguardas para aqueles que estavam no governo. Eles, afinal, só aceitariam sair do poder tendo a garantia de que não seriam vítimas de revanche. Petrônio, portanto, teria que convencer a linha dura e a oposição a ceder nas suas posições e a aceitar o caminho intermediário.
— Cometem um erro gravíssimo os políticos que tentam forçar as paredes do regime — afirmou o senador, referindo-se à tática oposicionista de bater de frente com o governo. — Precisamos ter uma atuação realística. Muitas conquistas haverão de ser pleiteadas, mas que não sejam pelo simples protesto, que em si mesmo é estéril, mas por mensagens, estudos, contribuições.
Geisel identificou no senador do Piauí todas as características de um exímio negociador político: era cordial, não tratava os adversários como inimigos, não enfiava seus pontos de vista pela goela dos interlocutores, ouvia os argumentos contrários, cumpria a palavra dada, era conciliador, agia com pragmatismo. Eram características que ele já deixava transparecer em seus pronunciamentos no Senado.
— Como defensores da política do presidente Ernesto Geisel nesta Casa, caber-nos-á ir aonde nos chamarem para a discussão os nossos nobres adversários [do MDB]. Divergentes, com certeza, são os nossos caminhos. Mas cremos nos nossos, e a força das convicções imprimirá autenticidade aos debates, que serão tão fortes e veementes quanto respeitosos — afirmou ele, antes de ser chamado para ajudar no desmonte da ditadura.
Graças à intercessão de Petrônio Portella, políticos da oposição que estavam na mira da ditadura puderam escapar da cassação. No caso do senador Leite Chaves (MDB-PR), que fizera um pronunciamento comparando o Exército brasileiro à SS nazista, Petrônio convenceu-o a discursar logo em seguida derramando-se em elogios ao Exército. No caso do presidente nacional do MDB, deputado Ulysses Guimarães (SP), que redigira uma nota pública comparando o general Geisel ao ditador africano Idi Amin, o senador correu ao Palácio do Planalto e conseguiu aplacar a ira do presidente.
Em diversas ocasiões, Petrônio já havia demonstrado o quão pragmático era. Em 1964, como governador do Piauí, ele contrariou a posição oficial de seu partido, a UDN, e condenou publicamente o golpe de Estado contra o presidente João Goulart. Pouco tempo depois, ao perceber que os militares não deixariam o poder, mudou de posição e alinhou-se ao regime.
Seu pragmatismo também havia ficado claro no primeiro período em que comandou o Senado, no biênio 1971-1972. Por causa do AI-5, editado no fim de 1968, o poder de criar leis ficou praticamente todo nas mãos do presidente da República, e o Congresso acabou reduzido a uma instituição decorativa. Vendo que não conseguiria ter uma atuação política expressiva como presidente do Senado, Petrônio dedicou-se a reforçar a estrutura administrativa da Casa.
Ele construiu um anexo para abrigar comissões e gabinetes, reequipou a gráfica, estimulou a publicação de livros sobre direito e história e fundou o Prodasen — centro de processamento de dados que tornou o Senado uma das primeiras Casas legislativas do mundo a entrar na era da informática, facilitando o trabalho dos senadores especialmente na análise da numeralha dos Orçamentos públicos anuais.
Em 1971, Petrônio abriu uma das sessões plenárias convidando os colegas a conhecerem essa maravilha chamada computador:
— Senhores senadores, na parte posterior do Plenário, encontra-se um terminal de computador eletrônico, assistido por funcionários de uma firma dentre as muitas interessadas na concorrência que o Senado vem de abrir, integrando um complexo de medidas de reformas de nossa Casa. Convidaria os senhores senadores a assistir às demonstrações que serão feitas hoje, entre as 17h30 e as 20h.
Petrônio ganhou tanta confiança dos generais que passou de mero cumpridor de ordens a conselheiro de presidentes. O deputado federal Tancredo Neves (MDB-MG), um dos líderes da oposição no Congresso Nacional, dizia que, de todos os parlamentares do país, o senador do Piauí era o único que tinha acesso direto ao “Olimpo”, isto é, ao principal gabinete do Palácio do Planalto.
A escolha de Petrônio como negociador do governo foi importante para diminuir as resistências do MDB e abri-lo para as discussões em torno da redemocratização. Justamente nesse momento, o partido começava a radicalizar. Vindo de uma vitória acachapante nas eleições de 1974 para o Senado e a Câmara dos Deputados, o MDB acreditava que poderia trazer a redemocratização na marra, contando apenas com o respaldo popular, sem diálogo com o governo.
Uma das bandeiras do partido no Congresso era a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, algo que a ditadura jamais permitiria naquele momento. O general Geisel já avisara que, sim, haveria a distensão, porém “lenta, gradativa e segura”.
Em 1977, com a carta branca dada por Geisel, o presidente do Senado deu início à chamada Missão Portella. Ele viajou pelo Brasil ouvindo entidades representativas da sociedade, que elencaram as medidas que julgavam necessárias para a abertura. A Associação Brasileira de Imprensa (ABI), por exemplo, pediu o fim da censura. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a anistia. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a volta do habeas corpus para crimes políticos, o que libertaria pessoas injustamente presas e reduziria os casos de tortura nos presídios.
Cada passo da Missão Portella era noticiado pelos jornais. Com isso, Petrônio acalmava a sociedade, mostrando que o governo estava de fato empenhado na redemocratização, e, de forma indireta, forçava o MDB a abraçar, ainda que a contragosto, a pauta do Executivo. Tal aproximação com a oposição foi uma façanha que provavelmente nenhum outro presidente do Senado daqueles tempos teria conseguido — como o senador Filinto Müller (Arena-MT), que comandou a Casa em 1973 e estava alinhado com os radicais da ditadura.
— Tenho cansado de animar a Missão Portella. Gosto exatamente de conversa. O que antes não havia eram as conversas — discursou o senador Danton Jobim (MDB-RJ). — O senador Petrônio Portella está tentando, evidentemente, fazer uma agenda. Acho que se deve conversar com toda a gente que seja representativa. A nação não está representada apenas pelo seu Parlamento, não apenas por nós aqui dentro. Hoje há toda uma realidade social lá fora, que fala, que se expressa, que pressiona os governos, que orienta os governos.
— O fato novo na política brasileira, graças à Missão Portella, é que os partidos políticos, talvez pela primeira vez em assunto de tamanha profundidade e complexidade, não estão sendo chamados para o confronto, mas convocados para um acordo que se destina a garantir estabilidade política ao país — avaliou o senador José Sarney (Arena-MA).
Seu trabalho pela abertura política era tão determinado que Petrônio contava aos interlocutores mais próximos ter a certeza de que, caso a linha dura do regime conseguisse virar o jogo e voltar a ditar os rumos do país, ele seria um dos primeiros políticos a ser cassado e preso.
Dos diálogos da Missão Portella, nasceu a Emenda Constitucional 11, de 1978, que sepultou praticamente toda a legislação abusiva da ditadura, incluindo os Atos Institucionais. A proposta que foi aprovada pelo Congresso Nacional havia sido redigida pelo próprio senador.
Graças a esse feito, ele foi convidado em 1979 pelo presidente seguinte, o general João Baptista Figueiredo, a assumir o Ministério da Justiça e dar prosseguimento à abertura política. Sob Petrônio, o ministério deixou de agir como polícia do regime, começou a fechar os porões da ditadura e passou a ter uma atuação eminentemente política. Como ministro da Justiça, ele escreveu o projeto da anistia e o do fim do bipartidarismo, que também receberam a chancela do Congresso e viraram lei.
Petrônio ocupou a cadeira de ministro por menos de um ano. Quando o ataque cardíaco o matou, no início de 1980, ele estava no auge da carreira política — Figueiredo acreditava que ele seria seu sucessor na Presidência da República — e ainda tinha muito a fazer pela abertura política. Muitos temeram pelo futuro da redemocratização. Os receios, porém, não se confirmaram. O processo continuou em execução, bem alicerçado nas medidas tomadas pelo governo graças à ação de Petrônio em seus últimos três anos de vida. O poder seria devolvido aos civis em 1985, e a Constituição democrática seria assinada em 1988.
O ex-senador Mauro Benevides, que na década de 1970 pertencia à bancada do MDB, eleito pelo Ceará, avalia hoje:
— Não é contraditório que Petrônio Portella tenha sido um democrata e, ao mesmo tempo, um homem do regime militar. No MDB, éramos muitos lutando pela abertura, mas nossa ação, como oposicionistas num momento de anormalidade, tinha alcance limitado. Ele, mesmo sendo um só, conseguiu muitas mudanças concretas por estar dentro do governo. Se Petrônio lutou pela redemocratização, ele foi, sim, um democrata.
O jornalista Zózimo Tavares, autor do livro Petrônio Portella — uma biografia, diz que o senador e ministro piauiense não tem o reconhecimento que merece:
— Diversos políticos que integravam a oposição e militantes que enfrentavam a ditadura são exaltados hoje, enquanto Petrônio permanece esquecido. É o preço que ele paga por ter pertencido ao regime. Isso é uma injustiça. O que Petrônio fez foi optar pelo pragmatismo, buscar resultados. E ele conseguiu os resultados.
A seção Arquivo S, resultado de uma parceria entre a Agência Senado e o Arquivo do Senado, é publicada na primeira segunda-feira do mês.