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Abdias Nascimento revelou senadores negros que a história apresentou como brancos

Ricardo Westin
Publicado em 1/11/2024
Edição 117
Sociedade

Quando o ativista do movimento negro Abdias Nascimento (PDT-RJ) tomou assento no Senado, há 33 anos, senadores e jornalistas afirmaram que se tratava de um marco histórico, pois enfim surgia um senador negro no Brasil, o primeiro a quebrar a exclusividade branca na instituição.

O próprio Abdias, porém, fez questão de desmentir o suposto pioneirismo.

O Arquivo do Senado, em Brasília, guarda o discurso inaugural que ele proferiu no Plenário, em novembro de 1991. Abdias contou aos colegas que, após fazer uma longa e minuciosa pesquisa histórica, localizou 22 senadores negros antes dele, “aí incluídos pretos, mulatos, pardos, filhos de primeira e segunda geração”. Não foi uma tarefa simples.

— Tive de usar de uma sagacidade de pesquisador à beira da astúcia, indo a dezenas de fontes, cruzando vários dados, cotejando muitas informações, para chegar a esse número. Isso porque aqueles 22 senadores não assumiram etnicamente a sua condição de afro-brasileiros, muito menos as causas da negritude.

Entre os senadores com sangue africano, Abdias localizou Rodrigues Alves e Nilo Peçanha, que também foram presidentes da República, e Tancredo Neves, que morreu antes de receber a faixa presidencial.

Ele encontrou senadores negros até mesmo no Império, período em que a escravidão vigorava. Entre eles, destacam-se o Barão de Cotegipe e Zacarias de Gois e Vasconcelos, que foram primeiros-ministros do Brasil.

O candidato presidencial Tancredo Neves e os ativistas do movimento negro Lélia Gonzalez e Abdias Nascimento em 1984 (Reprodução/Livro Grandes Vultos que Honraram o Senado: Abdias Nascimento)

Segundo Abdias, o equívoco dos colegas e da imprensa, descrevendo-o como o primeiro senador negro do Brasil, era compreensível:

— Por um processo de autorrejeição da própria identidade, [os 22 senadores] omitiram-na em seus currículos e assentamentos no Senado. Biógrafos e historiadores tentaram mascarar identidades, driblar genealogias, omitir ascendências, dissimular traços e características étnicas. Retratistas, pintores e fotógrafos, por ordem dos senadores ou de seus familiares ou mesmo por moto próprio, falsificaram, europeizaram fisionomias, criaram cabelereiras, procurando esconder o “estigma” africano dos retratados.

Ele continuou:

— Talvez eu seja o primeiro, sim, a assumir orgulhosamente sua etnia, sua cultura e religião, suas origens africanas e, sobretudo, a luta coletiva do povo africano em nosso país.

Um dos últimos nomes daquela lista de 22 foi Tancredo Neves (MG), senador no fim dos anos 1970 e no início dos anos 1980.

— Seria leviano afirmar que nas veias do mineiro Tancredo de Almeida Neves corria também o nobre sangue africano? — perguntou Abdias, para ele próprio responder. — Creio que não, levando em consideração seus traços fisionômicos, assim como de muitos de seus familiares, conforme testemunha seu primo [negro] D. Lucas Moreira Neves, cardeal primaz do Brasil e arcebispo da Bahia.

Abdias Nascimento esteve cara a cara com Tancredo Neves na campanha eleitoral em 1984, quando lhe entregou um documento com as demandas do movimento negro, e inclusive votou nele para presidente da República em 1985. Como deputado federal, Abdias fez parte do Colégio Eleitoral que elegeu Tancredo.

Nos tempos da escravidão, pela lista de Abdias, foram seis os senadores negros: Manuel de Assis Mascarenhas (RN), o Visconde de Jequitinhonha (BA), Francisco Otaviano (RJ), o Visconde de Inhomirim (RN) e os já citados Barão de Cotegipe (BA) e Zacarias de Gois e Vasconcelos (BA).

Eles foram nomeados senadores vitalícios por D. Pedro II em diferentes momentos a partir de 1850. Já fazia tempo que a Câmara dos Deputados tinha parlamentares com sangue africano. Todos os seis senadores negros tinham sido deputados gerais anteriormente.

Abdias afirmou que senadores negros foram decisivos na derrubada da escravidão:

— Para fazer jus aos senadores afro-brasileiros que me antecederam, é preciso destacar aqueles que, mesmo escondendo a sua identidade de origem, lutaram pelo fim do abominável regime de escravidão. O Visconde de Jequitinhonha foi [como deputado] um dos primeiros parlamentares a condenar a importação de africanos escravizados e propôs o fim do tráfico negreiro, sendo um precursor da propaganda abolicionista.

Ele prosseguiu:

— Desta tribuna, Torres Homem [o Visconde de Inhomirim], filho de uma quitandeira, condenou a escravidão como sistema desumano, jurídico e anticristão. Durante a discussão da Lei do Ventre Livre, demoliu a argumentação dos escravagistas sobre a propriedade dos africanos na condição de bens semoventes, considerando-a uma “doutrina absurda e execrável”.

Nem todos os senadores negros, porém, foram exemplares na luta contra a escravidão. Abdias classificou Zacarias como “ambíguo”:

— Embora negro e abolicionista, por questão meramente partidária ele combateu o projeto da Lei do Ventre Livre.

Houve um senador negro que atuou contra a própria raça. O Barão de Cotegipe foi descrito por Abdias como “o maior escravocrata que o Parlamento conheceu”:

— Ruy Barbosa o chamou de “mulato envergonhado”. Mesmo sendo negro, lutou tenazmente contra a abolição e procurou retardá-la ao máximo. Insistiu até a sanção da Lei Áurea na indenização aos senhores escravocratas, defendendo projeto de sua autoria para essa finalidade.

Visconde de Inhomirim, senador crítico da escravidão (Justiniano José de Barros/Acervo Instituto Moreira Salles)

A historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, que é diretora-geral do Arquivo Nacional e professora da Universidade de Brasília (UnB), afirma que o Brasil imperial tinha uma população de negros nascidos livres muito maior do que se costuma supor:

— O subdimensionamento se deve a uma matriz de memória que reduz a presença negra nesse período à imagem do escravizado. Na contramão disso, hoje há estudos sobre liberdade negra na sociedade escravista que apontam que os sujeitos negros proeminentes foram bem mais numerosos do que conseguimos imaginar, embora bem menos numerosos do que tinham potencial para ser.

Autora de pesquisas sobre a população negra livre no Império, a historiadora explica que as figuras negras da elite imperial, incluindo os senadores, optavam por silenciar em relação à própria identidade racial:

— Em termos políticos, a afirmação desse pertencimento, mais que desencorajada, era constrangida. Que vantagem havia em explicitar algo que não era tratado como virtude? Personagens de destaque da política brasileira até tiveram a ascendência africana destacada em debates públicos, mas sobretudo como forma de ataque. Isso explica por que, embora todos vissem ou soubessem o óbvio, eles preferiram sustentar uma espécie de pacto de silêncio.

Na República, foram 16 os senadores negros antes de Abdias Nascimento. De acordo com ele, o primeiro foi Manuel Vitorino (BA), que, após deixar o Senado, seria o vice do presidente Prudente de Morais.

Depois dele, veio Rodrigues Alves, que em 1902, no intervalo entre seus dois mandatos no Senado, tornou-se presidente do Brasil.

— Os biógrafos de Rodrigues Alves se penduram na nacionalidade portuguesa do seu pai para ignorar a sua negritude, à qual se referem eufemisticamente como “morenice”, legado de sua mãe afro-brasileira, Isabel Perpétua, conhecida como Nhá Bela — criticou Abdias.

No discurso de 33 anos atrás, o senador também destacou o presidente Nilo Peçanha, que ocupou um assento no Senado antes de chegar ao Palácio do Catete, em 1909:

— Brígido Tinoco, numa literária e afetuosa biografia, saúda o seu nascimento com uma constatação: “moreninho como o pai”. Outro perfilador de Nilo o descreve como “um homem simples, de tez pigmentada”. Um terceiro fala do “menino pobre do Morro do Coco”.

Abdias contou aos colegas que certa vez pretendeu escrever um livro sobre “os grandes africanos que ajudaram a construir este país” e procurou um descendente de Nilo Peçanha:

— Resultado: fui repreendido por esse membro da família, que não admitia sequer a mestiçagem do “menino do Morro do Coco”, considerando tal versão uma infâmia.

Nilo Peçanha, que foi senador e presidente da República (Coleção Nilo Peçanha/Museu da República)

Além de um aguerrido militante, Abdias Nascimento era um intelectual estudioso das questões raciais. Ele escreveu o livro O Genocídio do Negro Brasileiro: processo de um racismo mascarado, de 1978. Recorrendo aos seus estudos sobre o racismo brasileiro, o senador explicou:

— A atitude desse familiar de Nilo não é de estranhar quando consideramos que ele viveu numa época não tão remota em que a intelectualidade e a liderança política do país cultivavam uma preocupação constante, beirando a histeria, com a suposta inferioridade da nossa população “mestiça”, tingida pela “mancha negra” do sangue africano “infectado”.

Abdias prosseguiu:

— Após a abolição, horrorizados com o espectro da maioria africana que naquele momento ganhava juridicamente a cidadania, trataram de embranquecer o país, “limpar o sangue”. A população brasileira precisava “fortalecer-se com a ajuda dos valores mais altos das raças europeias”, segundo Arthur de Gobineau. Desde Sílvio Romero e Oliveira Viana até Joaquim Nabuco, todos concordavam que a massiva imigração europeia e a política da mestiçagem socialmente compulsória iriam, na expressão deste último, “contribuir para elevar o teor ariano do nosso sangue”.

O senador citou outros dois intelectuais do fim do século 19 e do início do século 20:

— José Veríssimo exultou: “A mistura de raças é facilitada pela prevalência do elemento superior. Por isso mesmo, mais cedo ou mais tarde, ela vai eliminar a raça negra daqui”. João Pandiá Calógeras declarava por volta de 1930: “A mancha negra tende a desaparecer num tempo relativamente curto em virtude do influxo da imigração branca, em que a herança de Cam se dissolve”. A maior preocupação era o tempo que levaria para eliminar de nosso meio o elemento africano: 100 anos, 200, 300?

Abdias lembrou que o pensamento racista e o desejo branqueador apareceram explicitamente na Constituição brasileira de 1934, que, no artigo 138, incumbiu o poder público de estimular a eugenia, descrita pelo senador como “a engenharia biológica objetivando eliminar os tipos genéticos indesejáveis, que foi levada às últimas consequências na Alemanha [nazista] daquela época”.

Francisco Glicério com a filha e a mulher: filho de uma ex-escravizada, ele foi republicano e abolicionista no Império e deputado e senador na República (Centro de Memória-Unicamp)

A República também teve os senadores negros Severino Vieira (BA), Francisco Glicério (SP), os irmãos João Mangabeira (BA) e Otávio Mangabeira (BA), Fernando Melo Viana (MG), Fernandes Távora (CE) e seu filho Virgílio Távora (CE), Mozart Lago (DF), Antônio Balbino (BA) e Nelson Carneiro (RJ), além de Tancredo Neves.

Fecham a lista Valdon Varjão (MT) e Laélia de Alcântara (AC), que foram, no início dos anos 1980, os dois últimos senadores negros antes de Abdias Nascimento. Os três chegaram ao Senado como suplentes.

Abdias, na realidade, se equivocou quando informou que nenhum dos 22 senadores negros que o antecederam se apresentou como afro-brasileiro nem assumiu as causas da negritude.

Os papéis históricos do Arquivo do Senado revelam que Varjão e Laélia foram os únicos da lista que não se calaram e se posicionaram de forma contundente contra o racismo.

Nelson Carneiro até fez pronunciamentos contra o racismo no início dos anos 1970, mas contra o racismo na África do Sul, que vivia um regime institucionalizado de segregação racial.

Em seu primeiro discurso no Senado, em 1980, Valdon Varjão de cara se apresentou como negro:

— Somente invocando a influência da fatalidade posso explicar a minha presença nesta Casa. De origem humilde, tendo eu conhecido os degraus da dificuldade, possuindo poucos conhecimentos e na condição de homem de cor, todas as possibilidades estavam contra mim.

A data para subir pela primeira vez à tribuna do Senado foi escolhida a dedo: 13 de maio, aniversário da Lei Áurea. Varjão apresentou o tema principal do discurso:

— Abordarei o caso do racismo e do preconceito de cor no Brasil, visto pela maioria das pessoas como algo natural e comum. A história brasileira assinala hoje, em seu calendário de datas cívicas, a libertação da raça negra, desfecho de uma luta árdua que vultos dos mais proeminentes travaram com a intolerância escravizante, que pretendia, indefinidamente, manter os seus privilégios. A liberdade fora conseguida, mas começava outra luta, a da integração, a da eliminação dos preconceitos. Numa espécie de retardada vingança, os brancos puniam com a discriminação, tentando anular os efeitos da abolição da escravidão.

Senador Valdon Varjão aparece em edição de 1982 da revista Cadernos do Terceiro Mundo sobre o racismo (Reprodução/Rima-UFRRJ)

Exatamente um ano mais tarde, a recém-empossada Laélia de Alcântara leu para os colegas senadores uma reportagem sobre uma jovem de 19 anos que naqueles dias fora expulsa de uma boate em Curitiba por ser negra e afirmou:

— Neste dia em que comemoramos a abolição da escravatura, ainda vemos que há espíritos escravos de preconceitos que não deixam uma estudante universitária, porque de cor, dançar na pista de uma boate.

Em outro discurso, a senadora fez uma avaliação da situação do negro brasileiro:

— A apreciação feroz do antropólogo Sílvio Coelho segundo a qual “a atribuição dos subempregos ao contingente de cor foi incentivada por uma sociedade interessada em manter à sua disposição um celeiro de domésticas e lavadores de automóveis” ainda é repetida com visos de verdade. Os negros têm tudo para furar a barreira da penúria e da estagnação. Já é tempo de não mais “se situarem nos índices mais medíocres das estatísticas, nos parágrafos mais soturnos dos relatórios e nos segmentos mais inferiores das pirâmides”.

Tanto no 13 de maio de 1980 quanto no de 1981, Varjão e Laélia foram interrompidos por colegas garantindo que aquela avaliação era exagerada e não existia racismo no Brasil.

Os pronunciamentos antirracistas dos dois senadores foram corajosos para os padrões políticos da época. A ditadura militar promovia a ideia de que o Brasil era uma “democracia racial”, com brancos e negros convivendo em harmonia, sem uma raça privilegiada e outra marginalizada.

Laélia de Alcântara, a segunda mulher e a primeira negra a chegar ao Senado (Arquivo do Senado)

Da lista de Abdias Nascimento, pode-se concluir que os senadores negros de pele clara entraram para a história como brancos, entre os quais o primeiro-ministro Barão de Cotegipe e o presidente Rodrigues Alves, e que os senadores de pele escura, que não puderam ser embranquecidos, foram esquecidos pela narrativa oficial, como Valdon Varjão e Laélia de Alcântara.

A historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto entende que a existência de uma elite política com sangue africano não aparece nos livros de história porque a forma oficial de narrar o passado do país nunca aceitou o protagonismo negro. Essa é uma das engrenagens do chamado racismo estrutural.

— A sociedade brasileira não foi educada para se orgulhar das personalidades negras, principalmente quando elas ocupam lugares não associados à presença negra, como a política e a cultura — ela explica. — A tentativa de embranquecimento de Machado de Assis é um dos melhores exemplos. Como reconhecê-lo como o maior escritor brasileiro e ao mesmo tempo exaltá-lo como homem negro? O protagonismo negro não está previsto na forma como contamos a história deste país.

De acordo com a historiadora, um dos efeitos dessa história oficial que só valoriza as personalidades brancas é que a sociedade brasileira não consegue aceitar a sua própria imagem coletiva, que é majoritariamente negra:

— Somos o maior país negro fora da África, mas essa imagem não agrada. Lidamos mal com os traumas da escravidão e do racismo e temos uma baixa expectativa em relação à agência histórico-social do povo brasileiro. Precisamos fazer um acerto de contas com o passado e o presente para que, assim, possamos projetar futuros com mais equidade e reais condições de exercício democrático da cidadania.

Em 1983, Abdias Nascimento participa de peregrinação à Serra da Barriga, sítio histórico do Quilombo dos Palmares (Arquivo Sphan)

Naquele discurso inaugural feito em 1991, o senador Abdias Nascimento afirmou que os brasileiros, especialmente os negros, precisavam saber que o Senado sempre teve políticos com sangue africano:

— O cerne da questão está na identidade nacional. Enquanto o Brasil não assumir a rica beleza de sua identidade africana, a maioria de sua população ficará alijada do conjunto nacional.

Em outro ponto do pronunciamento, ele cobrou:

 — A verdade nos foi negada durante séculos e agora tem que ser ensinada nas escolas, para restituir ao contingente majoritário da nossa gente o seu autorrespeito, a sua autoestima e a sua dignidade, fontes do protagonismo e da realização humana.

Abdias, então, encerrou o discurso:

— Um pesquisador mais competente do que eu poderá descobrir outros afro-brasileiros na vida do Senado. Outros senadores poderão se proclamar descendentes da África. Se sou ou não o primeiro afro-brasileiro nesta Casa, se sou ou não o 23º, pouco importa. Importa, sim, que eu possa cumprir este mandato lutando pelas causas do povo afro-brasileiro, que são as causas da nossa nação. Axé!


Reportagem: Ricardo Westin
Edição de texto: Valter Gonçalves Jr.
Pesquisa histórica: Elisangela Barros da Conceição, Kaian Roberto Leite, Laura Lis Andrade de Mendonça, Tainara Maressa Antunes Martins e Thaiane Miranda dos Santos, do Arquivo do Senado
Infografia: Cassio Costa
Pesquisa de fotos: Ana Volpe
Edição de fotos e multimídia: Bernardo Ururahy
Imagem de abertura: montagem de Aguinaldo de Abreu a partir de imagens de Arquivo Nacional, Arquivo do Senado e Célio Azevedo/Senado Federal

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)