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Aumento da produção de lixo no Brasil requer ação coordenada entre governos e cooperativas de catadores

yolanda-pires-sob-supervisao e Nelson Oliveira
Publicado em 7/6/2021

A paraibana Maria Eneide Pereira Costa, 60, é um exemplo de que transformar o lixo e convertê-lo em valor econômico de maneira estruturada também pode levar a transformações amplas nas pessoas que lidam com ele. Não é só uma questão de aumento de renda, mas também de ganhos sociais, intelectuais, culturais e emocionais para os catadores de materiais recicláveis, que celebram neste 7 de junho seu dia nacional de luta e mobilização. A data recorda uma manifestação histórica na Esplanada dos Ministérios, à qual Maria Eneide esteve presente.

Natural de Catolé do Rocha, no Agreste, ela migrou para o Distrito Federal em 1975. Por causa dos solavancos que a vida dá, em 2000 acabou parando no agora desativado Lixão da Estrutural, próximo ao Jóquei Clube. Teve dificuldades para criar os dois filhos sozinha, mas hoje eles estão casados, têm “algum estudo” e já lhe deram cinco netos. A filha inclusive adquiriu casa própria.

O que mudou na vida da catadora é que em 2005 a paraibana deixou de trabalhar só, separando materiais e vendendo pequenas quantidades para empresas, e passou a fazer parte de uma cooperativa, atuando na companhia de outras pessoas e obtendo sua parte num volume maior de materiais.

Maria Eneide Pereira, presidente da associação de catadores Recicle a Vida, em frente a uma das esteiras de recolhimento da cooperativa. Foto: Nelson Oliveira/Agência Senado

— No lixão, nós fazíamos a reciclagem no saco e vendíamos por saco. A Recicle a Vida me transformou — diz, corrigindo o termo “reciclou” utilizado numa entrevista anterior postada na página que a cooperativa mantém no Instagram.

As palavras “reciclar” e “transformar” são do mesmo campo de significados, mas a mudança que a associação operou na vida da catadora é algo mais elaborado do que fazer de um plástico um outro plástico, em geral de qualidade inferior.

A trajetória de Maria Eneide mudou tanto que ela é hoje a presidente da Recicle a Vida, cargo no qual tem como uma de suas atividades mostrar aos visitantes aspectos que passam daqueles usuais em um galpão de separação de resíduos sólidos urbanos (RSU). Além do restaurante, o prédio da associação dispõe de salão de beleza, sala de informática e ateliê de corte e costura. E esses serviços estão disponíveis não apenas para as cooperadas e cooperados, mas para a comunidade da Ceilândia, cidade de 400 mil habitantes localizada a 26 quilômetros do Plano Piloto de Brasília, que nasceu em 1971 para abrigar moradores de invasões remanescentes da construção da capital do país.

A profissional de reciclagem sai diariamente do Recanto das Emas, cidade do DF distante 17 quilômetros de Ceilândia, e chega sempre às 7h30 na Recicle a Vida. A rotina é geralmente a mesma: toma café da manhã com outras catadoras, faz as orações de costume e vai para a rua, onde acontece a maioria dos trabalhos dela e das outras 73 pessoas que integram a associação, formada majoritariamente por mulheres moradoras do Distrito Federal e do chamado Entorno, que engloba municípios de Goiás e Minas Gerais.

— Trabalhar no lixão é trabalhar só. Trabalhar na cooperativa é trabalhar em parceria, o que é uma grande diferença. No lixão a gente não tem uma vida mais ou menos social, e na cooperativa você tem — analisa.

Lixão da Estrutural (à esquerda) e esteira de separação na cooperativa de catadores Recicle a Vida, na cidade de Ceilândia (DF). Fotos: Edilson Rodrigues/Agência Senado e Nelson Oliveira/Agência Senado

Antes de ser fechado pelo Governo do Distrito Federal (GDF), o antigo local de trabalho de Maria Eneide deteve o título de maior lixão a céu aberto da América Latina. O depósito ficava a 15 quilômetros da zona central da capital e ao lado do Parque Nacional de Brasília, uma unidade de conservação ambiental com mais de 42 mil hectares.

Como o Lixão da Estrutural, ainda há 2.663 lixões em cerca de 2.500 municípios espalhados pelo Brasil, segundo o Atlas da Destinação Final de Resíduos, levantamento publicado em 2020 pela Associação Brasileira de Empresas de Tratamento de Resíduos e Efluentes (Abetre).

O entulhamento fétido ocupava uma área de aproximadamente 200 hectares, o que corresponde a cerca de 243 campos de futebol, e chegou a acumular mais de 40 milhões de toneladas de lixo, uma montanha de quase 55 metros de altura — equivalente a um prédio de aproximadamente 16 andares.

Maria Eneide conta que, quando deixou de trabalhar no lixão, passou a fazer parte da cooperativa Catamare, localizada em Ceilândia. Da Catamare, foi para a Recicle a Vida, onde exerceu diversas atividades antes de ser escolhida para presidir a associação:

— Eu fui fazendo cursos, fui entendendo mais um pouco do mundo da reciclagem, fui me aventurando mais, me aprofundando mais. E aí hoje sou presidente, mas passei por várias etapas, como catadora da Recicle a Vida, mobilizadora, [integrante do] conselho fiscal.

Atualmente ela oferece cursos e treinamentos para catadores voltados à reciclagem de isopor e lixo eletrônico e à triagem dos materiais nas esteiras.

A associação é contratada pelo Serviço de Limpeza Urbana do GDF para fazer a coleta seletiva em algumas quadras de Samambaia, região administrativa próxima a Ceilândia e Taguatinga. Juntas, as 75 catadoras e catadores que trabalham na instituição contribuem para a coleta de cerca de 5 toneladas de materiais recicláveis por dia. Esse volume vem dos grandes geradores, como restaurantes, shoppings e demais comércios locais, e da coleta seletiva.

Depois de coletados, os materiais recicláveis são transportados para a associação, onde é feita a triagem. Após a separação, são prensados ou triturados, e, finalmente, enviados para indústrias em Belo Horizonte e São Paulo. Mas, segundo Maria Eneide, ainda falta muito para que se alcancem as metas e demandas dos catadores do DF:

— Existem muitas cidades satélites que não têm coleta seletiva. Eu acho que nós ainda precisamos trabalhar muito com os governos, para ver se a gente alcança pelo menos um terço dessas cidades satélites, para a gente fazer a coleta seletiva. Porque a gente depende do governo, né? Provar que a gente sabe fazer o trabalho, nós já provamos. Depende [agora] do governo chamar mais cooperativas para fazer parte dessa coleta seletiva, desse trabalho que é dos catadores.

O valor que Maria Eneide atribui à nobre tarefa de limpar as cidades e dar uma destinação econômica e social aos resíduos em boas condições vem crescendo no Brasil, ainda que não na mesma proporção em que cresce o volume produzido a cada ano pela população e pelas empresas.

Não há dúvida de que o brasileiro está mais consciente da necessidade de reciclar resíduos, embora não haja tanta consciência da necessidade de reduzir o consumo e reutilizar o que puder ser reutilizado. E ainda não atenta muito a detalhes que podem ajudar o trabalho dos catadores, como embalar papéis picados e objetos de pequena dimensão em sacos específicos. Outra providência útil é limpar as embalagens plásticas engorduradas com guardanapos usados e deixar que recebam a água da própria lavação de louças, tornando-as aptas à reciclagem e protegendo a saúde do pessoal da limpeza pública.

O olhar para esses profissionais também tem mudado em razão de projetos educativos, da ação de sindicatos e ativistas e também do trabalho da imprensa. Em 16 de maio, a 20 dias da data em que se celebra o Dia Mundial do Meio Ambiente (5 de junho), o noticiário e as páginas de redes sociais divulgaram uma série de eventos relacionados ao Dia do Gari, uma categoria profissional cujos membros, não faz tanto tempo assim, eram chamados de “lixeiros”. Em Divinópolis (MG), eles ganharam um café da manhã num parque ecológico; no Rio de Janeiro, uma celebração religiosa na base do Cristo Redentor, que foi iluminado na cor laranja, a mesma dos uniformes dos profissionais.

Garis posam em frente à estátua do Cristo iluminada de laranja. Foto: Ricardo Cassiano/Prefeitura do Rio

O papel dos catadores e a valorização dos garis fazem parte da atenção que gestores e organizações do mundo todo vêm dando nos últimos anos à geração e à destinação do lixo produzido nas cidades. No Brasil, a Lei 12.305, de 2010, instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). Entre os objetivos, estão a não geração, a redução, reutilização, reciclagem e tratamento dos resíduos sólidos, bem como disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos — a parte que não pode ser reaproveitada e tem de ir para aterros sanitários, locais bem diferentes de lixões. Além disso, a PNRS exige a transparência no gerenciamento de resíduos sólidos urbanos (RSU) dos setores públicos e privados, tendo em vista o aumento constante da geração de resíduos.

Esse aumento, que em 2010 motivou a criação da PNRS, manteve-se nos anos que se seguiram à implementação da lei. Segundo dados do Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil 2020, a geração saiu de 66,7 milhões de toneladas em 2010 para 79,1 milhões em 2019, uma diferença de 12,4 milhões de toneladas. O mesmo estudo diz ainda que cada brasileiro produz, em média, 379,2 kg de lixo por ano, o que corresponde a mais de 1 kg por dia. As informações foram coletadas e publicadas pela Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe).

O Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), unidade com abrangência nacional vinculada à Secretaria Nacional de Saneamento do Ministério do Desenvolvimento Regional, publicou em 2020 o 18º Diagnóstico do Manejo de Resíduos Sólidos Urbanos, também com dados de 2019. Segundo o documento, disponível para consulta no site do SNIS, mais de mil dos 3.712 municípios participantes do estudo não disponibilizam a coleta de lixo domiciliar para toda a população urbana, enquanto apenas 484 municípios têm 100% de cobertura de coleta domiciliar em relação à população total (urbana e rural).

Apesar das falhas, o cenário é de melhorias. Segundo a Abrelpe, a cobertura da coleta de resíduos sólidos urbanos passou de 88% em 2010 para 92% em 2019, e a quantidade de municípios que contam com o serviço de coleta seletiva passou de 56,6% para 73,1% na comparação entre os dois anos.

O avanço do processo de destinação de resíduos sólidos urbanos tem esbarrado, porém, na própria política ambiental brasileira.

Em novembro de 2018, a Organização das Nações Unidas (ONU) realizou a COP-14 (14ª Conferência das Partes), que reuniu representantes de 190 países integrantes da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), tratado internacional do qual o Brasil é signatário. Na ocasião, 187 nações assinaram um acordo pelo combate à poluição plástica. Foram contrários à iniciativa apenas o Brasil, os Estados Unidos e a Argentina.

De acordo com um levantamento feito pelo WWF (Fundo Mundial para a Natureza), feito com base em dados do Banco Mundial, o Brasil é o 4º maior produtor de lixo plástico do mundo, atrás apenas de EUA, da China e da Índia. O fato de o governo brasileiro não aderir ao acordo internacional contraria os objetivos instituídos pela Política Nacional de Resíduos Sólidos em 2010, além de impossibilitar a criação de outras políticas públicas que visem à reciclagem e destinação adequada de lixos plásticos.

No Senado, dois projetos que têm como objetivo melhorar a coleta e a destinação de resíduos sólidos foram paralisados pela pandemia de covid-19. Caso sejam aprovados, as propostas trarão benefícios para cooperativas e associações de catadores de lixo. Um deles, o PL 4.868/2019, do senador Styvenson Valentim (Podemos-RN), prevê que edifícios dos órgãos e entidades da União passem a ter recipientes para a separação do lixo reciclável.

Já o PLS 90/2018, apresentado pela senadora Rose de Freitas (MDB-ES), determina que grandes geradores de resíduos sólidos, como shoppings, supermercados e restaurantes, sejam obrigados a destinar o lixo reciclável que produzem a associações, cooperativas ou organizações de catadores que tenham infraestrutura para separar e classificar os resíduos.

Coleta de resíduos em centro de compras e lixeira de coleta seletiva com separação de elementos: tema é objeto de propostas em tramitação no Senado. Fotos: Gabriel Jabur/Agência Brasília e Marcos Oliveira/Agência Senado

Catadores e cooperativas no Brasil

Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontam que os catadores são responsáveis por quase 90% do lixo reciclado no Brasil. A atividade é objeto do estudo Os Desafios da Reciclagem e da Logística Reversa de Embalagens — contribuições para discussão e análise de cenários diante do PLS 90/2018, que analisa gargalos da atividade dos catadores de materiais recicláveis na coleta, seleção, separação, guarda, transporte e beneficiamento dos materiais recicláveis comercializáveis.

Nem sempre, porém, as condições de trabalho desses profissionais se assemelham às do pessoal da Recicle a Vida, que recebe assistência médica por um convênio firmado com a Universidade de Brasília (UnB) e ainda tem plano de saúde, segundo Marie Eneide. De acordo com as autoras Carolina Falluh, Deborah Camara Batista, Monique Cardoso e Sabine Milioni, “a catação de materiais recicláveis é uma atividade desprotegida, exercida em grande medida em condições de precariedade e insalubridade extremas: riscos sanitários, ergonômicos, acidentes, violência física e moral, dentre outros. Também existe um desgaste psicológico pelo forte estigma que a figura do catador continua carregando”.

O estudo diz que a Política Nacional de Resíduos Sólidos deu lugar ao protagonismo das cooperativas e associações de catadores de baixa renda na gestão integrada de resíduos sólidos municipais, mas, muitas vezes, essas atividades se dão sem apoio por parte dos governos locais.

As autoras do estudo afirmam igualmente que a gestão integrada de resíduos, com um viés social de inclusão de trabalhadores precários, constitui um dos traços mais destacados da PNRS, que tem se tornado uma referência internacional. “De forma paralela aos avanços legais e institucionais, o Estado desenvolveu políticas públicas de apoio aos catadores, com investimentos significativos em capacitação e estruturação de cooperativas”.

Dados do Ipea publicados em 2012 indicam que, entre 2007 e 2010, o governo federal destinou mais de R$ 280 milhões a ações de gestão de resíduos sólidos. Recentemente, o atual governo informou que foram investidos R$ 7 milhões no segmento em janeiro de 2021, destinados a 40 municípios em 8 estados da Federação.

Além disso, nos últimos 15 anos, o trabalho dos catadores foi favorecido por leis que transformaram significativamente o exercício da atividade no Brasil. Em 2002, a Classificação Brasileira de Ocupações passou a reconhecer a profissão de catador(a) de material reciclável, e em 2003 foi criado o Comitê Interministerial de Inclusão Social dos Catadores de Lixo (que depois adotou a nomenclatura “catadores de materiais recicláveis”).

No último Censo Demográfico, feito em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 387.910 pessoas declararam ter como atividade econômica principal a coleta e comercialização de materiais recicláveis. Estimativas anteriores, realizadas a partir da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico de 2008, mostraram que cerca de 30 mil catadores integravam 1.175 cooperativas e associações no Brasil. O que significa que menos de 10% dos catadores de materiais recicláveis trabalham de forma associada.

Caso sejam aprovados, os dois projetos que tramitam no Senado deverão beneficiar os catadores e as cooperativas, que poderão agregar mais catadores aos quadros de cooperados.

Senadores Rose de Freitas e Styvenson Valentim: parlamentares apresentaram projetos de lei para facilitar coleta seletiva. Fotos: Geraldo Magela/Agência Senado e Jefferson Rudy/Agência Senado

O PL 4.868/2019, do senador Styvenson Valentim, foi aprovado pela Comissão de Meio Ambiente (CMA) do Senado em dezembro de 2019. Na justificativa do projeto, o senador diz que “falta educação ambiental no âmbito institucional para oferecer instruções básicas sobre o descarte dos resíduos no recipiente correto, bem como para destacar a elevada importância da reciclagem para a sustentabilidade do planeta e as baixas taxas de reciclagem observadas no país”. Por isso, ele propõe que órgãos e entidades públicas separem o lixo reciclável dos demais.

“De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), aproximadamente 160 mil toneladas de resíduos sólidos urbanos são geradas por dia no Brasil. Do total de resíduos gerados, cerca de 30-40% são passíveis de reutilização e reciclagem, porém apenas 13% deles são efetivamente encaminhados para a reciclagem”, argumenta o senador Valentim.

A outra proposta, da senadora Rose de Freitas, ainda aguarda votação da CMA. Segundo a justificativa do PLS 90/2018, a proposta é “estimular de maneira direta o acesso, pelos catadores, dos resíduos sólidos recicláveis produzidos por algumas categorias de geradores desses resíduos que, por força da Lei 12.305, de 2010, estão obrigados a elaborar seus planos de gerenciamento de resíduos sólidos”.

O projeto da senadora propõe que, entre os conteúdos mínimos desses planos, esteja prevista a destinação do lixo reciclável a associações, cooperativas ou organizações de catadores, “de modo que seja estreitada a distância entre os produtores desses resíduos e aqueles que, por meio de sua triagem e classificação, podem deles obter retorno econômico”.


Pauta, coordenação e edição: Nelson Oliveira
Coordenação e edição de multimídia: Bernardo Ururahy
Edição e tratamento de fotos: Ana Volpe
Foto da capa: Nelson Oliveira/Agência Senado
Infografia e ilustrações: Cássio Costa