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Nova Lei de Licitações é esperança contra corrupção e desperdício de verbas

Nelson Oliveira
Publicado em 5/4/2021

Uma das palavras que há bastante tempo levam o brasileiro a pensar em prejuízo aos cofres públicos e danos à sociedade é “licitação”. Devido a grandes e pequenos escândalos, pairam suspeitas sobre todo tipo de contratação de obras e serviços, compra de equipamentos e materiais de expediente e sobre processos de escolha de construtores, prestadores de serviços e fornecedores.

A voracidade dos fraudadores não respeita nem a sagrada merenda escolar das crianças. Tampouco remédios, equipamentos e insumos hospitalares. Resultado: desnutrição e vidas perdidas, entre muitos outros males.

No dia 10 de dezembro do ano passado, o Plenário do Senado aprovou um projeto de lei (PL 4.253/2020) destinado a virar essa página. A ideia é modernizar e tornar mais transparentes, além de juridicamente seguros, os certames para a escolha de agentes encarregados ou associados a diversos tipos de atividades e obras públicas.

Aprovada na forma de redação final no dia 5 de março e sancionada, com vetos, pelo presidente Jair Bolsonaro no dia 1º de abril último, a nova Lei de Licitações e Contratos administrativos (14.133/2021) também procura tornar mais claras as situações e os procedimentos em que a escolha concorrencial é desnecessária ou dispensável.

Desde 1993, as licitações eram regidas pela temida, mas muitas vezes burlada, Lei 8.666/1993, pela Lei do Pregão (10.520/2002) e pelo Regime Diferenciado de Contratações (RDC - Lei 12.462/11). A 8.666 ainda poderá ser utilizada pelo prazo de dois anos, exceto no que se refere a crimes. Depois será extinta, juntamente com a Lei do Pregão, e a parte que fala de licitações do RDC.

Relatado e modificado pelo senador Antonio Anastasia (PSD-MG), o texto do projeto de lei deu forma final a várias propostas de mudanças na lei de licitações apresentadas a partir de 1995, quando o hoje falecido senador Lauro Campos (PT-DF) detectou problemas na 8.666, então com apenas dois anos de vigência.

Enviado pela Câmara dos Deputados ao Senado em agosto, na forma de substitutivo, o projeto criou modalidades de seleção e contratação; simplificou e deu mais transparência aos processos concorrenciais, além de tipificar crimes relacionados a licitações e reuni-los em um capítulo próprio no Código Penal. Esses crimes abrangem as condutas de agentes privados e públicos relacionadas a contratações em todas as esferas do setor público, inclusive em empresas estatais e sociedades de economia mista. Entretanto, a nova lei de licitações em si, do ponto de vista dos seus procedimentos de seleção, vale apenas para os órgãos da administração pública direta da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, assim como para suas autarquias e fundações.

Estamos falando, portanto, de órgãos como ministérios, governos estaduais, prefeituras, casas legislativas e universidades públicas. As empresas estatais e de economia mista têm suas próprias regras de licitação, mas estão sujeitas às mesmas normas elaboradas para punir, por exemplo, o superfaturamento de preços e o favorecimento a este ou aquele concorrente.

Sessão do Senado em que foi aprovada a nova Lei de Licitações (foto: Waldemir Barreto/Agência Senado)

Em entrevista à Agência Senado, Antonio Anastasia mostrou-se bastante otimista em relação à nova lei:

— Felizmente o Congresso apresentou esse instrumento legal, que vai possibilitar aos governos federal, dos estados e dos municípios uma nova realidade em termos de contratação e de licitações. Acho que avançaremos, tornando menos burocrático, mais flexível, mais ligeiro, mais célere, mais racional e sobretudo mais econômico o processo de contratações. E, é claro, sempre com mais transparência. (ver a entrevista completa ao final)

Na opinião do senador, o Parlamento aperfeiçoou não só o processo licitatório, mas também a formulação e a fiscalização dos contratos administrativos firmados entre o governo e agentes privados para dar consequência às licitações e às operações avulsas:

— A legislação atual foi muito retalhada ao longo dos últimos anos e sofreu alterações. Não houve consolidação e o seu corpo principal já está de fato ultrapassado diante das necessidades tecnológicas, das novas formas de comprar, do uso da tecnologia.

Como resultado de uma legislação envelhecida e fragmentada por jurisprudências administrativas e judiciais, a sua aplicação vinha se tornando objeto de muito conflito. Responsáveis diretos por fiscalizar os contratos, os tribunais de contas, ao lado das cortes de Justiça, estão assoberbados pela investigação de atos criminosos e pelo exame de erros de procedimentos, que, na soma, levam a prejuízos bilionários:

— O cidadão muitas vezes não percebe, ele não sabe, mas ele é muito atingido por essa lei da licitação, porque tudo aquilo que ele recebe do poder público por meio de insumos como, por exemplo, serviços de ônibus, energia elétrica, serviços relativos ao fornecimento e à entrega de medicamentos, tudo isso depende da licitação de contratos administrativos. Na verdade, toda a máquina estatal vive com base nessa lei.

No bojo de um trabalho apresentado em 2015 ao curso de Tecnologia em Gestão Pública da Universidade Federal da Paraíba, Bárbara Serrano de Mendonça recorda uma série de casos fraudulentos envolvendo licitações, entre os quais os fatos investigados pela Operação Metástase: desvio de recursos públicos no valor de aproximadamente R$ 30 milhões em Três Corações (MG) e outras cidades entre 2009 a 2012. Instalada nos poderes Legislativo e Executivo, a organização criminosa atuou de forma coordenada e sistemática, “com o objetivo de sangrar os cofres públicos em proveito próprio”, segundo o estudo.

Algumas das empresas tinham, como administradores, servidores do próprio município — o que é proibido por lei. A operação Metástase analisou 100 contratos, em áreas de serviços públicos como pavimentação; shows e eventos; limpeza urbana; transporte público; merenda escolar e alimentação; artigos de escritório e mobiliário; medicamentos; serviços de internet; aquisição de softwares; publicidade; locação de imóveis e construções diversas.

Polícia Civil de Goiás, em ação no âmbito da Operação Metástase (foto: Divulgação/Polícia Civil de Goiás)

Apoiada em autores como Anderson de Oliveira e Geraldo José Lopes Macedo, além de estudos do próprio Tribunal de Contas da União (TCU), Bárbara cita as fraudes mais comuns nos processos licitatórios em geral: superfaturamento, jogo de planilha, direcionamento de licitação, irregularidades em pregões, corrupção dos servidores públicos, acordo entre empresas, entrega de material de qualidade inferior ao previsto no edital, utilização de empresas fantasmas, falsificação de documentos, simulação de licitação, preço inexequível, inexigibilidade e dispensa de licitação.

Se a licitação dá margem a atos de má-fé, as decisões tomadas a critério dos gestores, com a justificativa de que a concorrência é impossível, costumam gerar muitas dúvidas. Por isso a contratação direta, quando há dispensa de licitação ou ela não é, em princípio, exigível, foi prevista na nova lei dentro de uma série de condicionantes, entre os quais pareceres técnicos e levantamentos de preços, para que se demonstre que é a solução mais prática e não acarretará danos aos cofres públicos. Essas informações deverão ficar disponíveis em sítio eletrônico oficial. Na hipótese de "contratação direta indevida ocorrida com dolo, fraude ou erro grosseiro, o contratado e o agente público responsável responderão solidariamente pelo dano causado ao erário, sem prejuízo de outras sanções legais cabíveis”, manda a 14.133. As condutas, no entanto, serão individualizadas.

O texto da Câmara havia substituído a expressão “contratação direta indevida ocorrida com dolo, fraude ou erro grosseiro” pela expressão “contratação direta irregular” para fins de imputação de responsabilidade do agente e do contratado. Antonio Anastasia propôs a manutenção da redação do Senado. Para o relator, “é importante qualificar a irregularidade que sujeita o agente e o particular a sanções, como aquela praticada com dolo, fraude ou erro grosseiro, seguindo os parâmetros definidos na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e conferindo maior segurança jurídica na aplicação da futura lei”. Ou seja, a 14.133 vai separar as punições, conforme o prejuízo for decorrente de crime ou imperícia da parte dos agentes públicos responsáveis.

A descrição de crimes e a estipulação de penas estavam abrigadas na Lei 8.666 e em dois artigos do Código Penal. As punições eram bem mais brandas. Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter vantagem, para si ou para outrem, era crime punível, pela 8.666, com detenção de dois a quatro quatro anos, e multa. A nova lei estabeleceu penas de reclusão de quatro a oito anos, e multa.

A pena de reclusão é aplicada a condenações mais severas (o regime de cumprimento pode ser fechado, semiaberto ou aberto) e normalmente é cumprida em estabelecimentos de segurança máxima ou média. A pena de detenção é aplicada para condenações mais leves e não admite que o inicio do cumprimento seja no regime fechado. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT)

Segundo o senador Antonio Anastasia, além das brechas para fraudes que continha, a legislação anterior era excessivamente voltada para formalidades — e menos para o resultado a ser entregue aos cidadãos —, prejudicando a adequação das contratações caso a caso. Ele destaca que, em tese, as regras eram as mesmas tanto para construir uma hidrelétrica quanto um conjunto habitacional.

Do ponto de vista da modernização das normas, o relator destacou entre as novidades a permissão para a contratação pelos órgãos públicos de um seguro-garantia nas licitações, principalmente de grandes obras, de forma a evitar a paralisação dos respectivos empreendimentos.

— O Brasil é um cemitério de obras inacabadas por causa de problemas econômicos e financeiros das empresas, mas também de ordem ambiental — explicou o parlamentar.

De fato. Auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) divulgada em maio de 2019 levantou mais de 38 mil contratos referentes a obras públicas em cinco bancos de dados do governo federal. Mais de 14 mil estavam paralisadas. Ou seja, mais de um terço das obras que deveriam estar em andamento pelo país, cerca de 37%, não tinham avançado ou apresentavam “baixíssima execução” nos últimos três meses analisados em cada caso. Juntas alcançavam um investimento previsto de R$ 144 bilhões, dos quais R$ 10 bilhões já haviam sido aplicados.

Independentemente do seguro, a vigilância da sociedade sobre a aplicação das verbas públicas deve contribuir para evitar tanto o desvio de dinheiro quanto erros que levem a contratações equivocadas e má gestão dos contratos. Essa sentinela será facilitada com a criação do Portal Nacional de Contratações Públicas, um sítio que dará transparência aos produtos, serviços, valores e obras contratados e aos beneficiários de pagamentos. Sites dos próprios órgãos públicos informarão igualmente os detalhes das licitações e dos contratos, inclusive a ordem da fila dos credores e os motivos e os responsáveis pela paralisação temporária de obras, com data prevista para o reinício da sua execução.

A publicação dessas informações em jornais de grande circulação e em páginas de internet das próprias empresas contratadas foi vetada pelo governo por impor despesas aos licitantes, sendo que o portal e os sítios eletrônicos de cada órgão já seriam canais suficientes para garantir a transparência das licitações.

Outro veto no aspecto da transparência diz respeito à publicação, para livre consulta pública, de notas e documentos auxiliares relacionadas às contratações na base nacional de notas fiscais eletrônicas, sem que isso constituísse violação do sigilo fiscal. Ouvido, o Ministério da Justiça e Segurança Pública opinou pela supressão por considerar que essas informações estão cobertas pelo sigilo fiscal. O livre acesso poderia facilitar a ação de organizações criminosas com riscos, inclusive, à segurança pública e nacional.

A coerência entre o que se quer contratar e o que é oferecido foi uma preocupação dos legisladores, conforme o relator. Para isso, criaram uma nova modalidade de certame, o Diálogo Competitivo, que permitirá ao gestor público debater previamente com os candidatos e oferecer a eles elementos que permitam a melhoria ou adaptação de produtos e serviços, antes da apresentação final de propostas, principalmente no caso de novas tecnologias. O projeto previa que esse "diálogo competitivo" fosse acompanhado por órgãos de controle, como os tribunais de contas, para evitar que o sentido competitivo fosse abandonado ou a licitação contivesse ilegalidades. O governo, contudo, vetou esse ponto, no entendimento de que atribuir aos tribunais de contas o controle da legalidade sobre atos internos da Administração dos três poderes da República extrapolaria as competências desses tribunais e violaria o princípio da separação dos poderes.

A nova lei tem como um dos seus objetivos que a escolha do modelo licitatório, mesmo não sendo o diálogo competitivo, leve em conta não apenas o menor preço, sob o argumento da necessidade de economia, mas as características do que se quer licitar e as demandas em cada caso.

Uma das recomendações do TCU  em sua auditoria era que o governo realizasse estudos acerca dos projetos, “de modo a avaliar, por meio de casos concretos, inclusive de concursos e contratações integradas, a relação entre o tipo de licitação realizada e a qualidade final do projeto entregue”.

Presume-se que empresas com percentual maior de profissionais qualificados produzam projetos de melhor qualidade do ponto de vista da técnica. A adoção generalizada do tipo de licitação pelo menor preço na contratação de projetos tenderia a desconsiderar esse valor subjetivo da contratada que tem impactos na execução da obra. Embora essa constatação tenha um caráter relativamente intuitivo, não há evidências mais concretas para se avaliar em que medida a ponderação do fator preço na licitação tem influenciado negativamente a qualidade dos projetos entregues. Por outro lado, também não há trabalho específico que indique em que medida a ponderação do fator técnica assegura efetivamente a qualidade do projeto entregue. Relatório sobre obras inacabadas publicado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em 2019

A melhoria da qualidade das contratações também deve vir da obrigatoriedade de planejamento das ações a serem empreendidas pelos órgãos públicos, com base na apuração criteriosa de suas necessidades ao longo do ano. Esse planejamento terá não só de ser elaborado, mas amplamente divulgado a fim de matar no nascedouro as decisões apressadas e irrealistas.

Na mesma direção, a nova lei avança nas exigências técnicas e administrativas relacionadas ao projeto básico de cada obra, um aspecto importante do quadro de construções paralisadas no país, de acordo com o relatório do TCU:

Entre os motivos das interrupções das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o de natureza técnica representava 47% da quantidade de paralisações, envolvendo 19% dos recursos. “Apesar da definição clara já trazida na referida lei, inicialmente, não apenas a cultura de falta de planejamento da administração pública contribuía para a realização de projetos básicos deficientes, mas também interpretações no sentido de o projeto básico ser apenas um esboço, figura ou um anteprojeto do objeto a ser executado”, explica o documento.

Na verdade, conforme o texto sancionado, o projeto básico deve ser exaustivo “no conjunto de elementos necessários e suficientes, com nível de precisão adequado para definir e dimensionar perfeitamente a obra ou o serviço, ou o complexo de obras ou de serviços objeto da licitação”. Levantamentos topográficos, previsão do tipo de construção e de materiais a serem utilizados, estratégias logísticas e orçamentos são alguns desses ingredientes.

Nova lei visa reduzir número de obras públicas paralisadas (foto: Antonio Cruz/Agência Brasil)

A lei busca do mesmo modo a simplificação e o barateamento do processo licitatório. Um dos mecanismos previstos é a possibilidade de alteração da sequência usual dos passos do certame; a chamada habilitação (apresentação de documentos da empresa candidata) pode ficar para depois do julgamento das propostas. Assim, só o vencedor terá sua documentação examinada, poupando tempo e trabalho aos gestores públicos.

Tanto a Câmara quanto o Senado aprovaram a preferência pela forma eletrônica de licitação — mais transparente e acessível aos cidadãos e órgãos de fiscalização. A forma presencial poderá ser adotada desde que haja motivo razoável, mas a licitação deverá ser pública e gravada em áudio e vídeo. A Prefeitura de Timbó (SC) é um dos órgãos públicos que já estão transmitindo suas licitações pelo YouTube. Numa dessas sessões, um concorrente foi surpreendido trocando os envelopes com propostas, o que gerou repreensão por parte dos servidores responsáveis pelo certame.

Na parte da formalização dos contratos, a Câmara incluiu a exigência de que, antes de formalizar ou prorrogar o prazo de vigência de um contrato, a Administração deverá verificar a regularidade fiscal do contratado, consultar o Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas (CEIS) e o Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP), emitir as certidões negativas de inidoneidade, de impedimento e de débitos trabalhistas e juntá-las ao respectivo processo. Anastasia manteve essa mudança.

Entre os pontos negativos da nova lei, um especialista consultado, mencionou a convivência com a 8.666 por dois anos, o que pode gerar incoerência nas contratações.

Quanto aos aspectos positivos, citou a possibilidade de o Portal da Transparência fornecer referências de preços e modelos de contratos que hoje não estão acessíveis a muitas prefeituras. O texto aprovado pelo Congresso previa que os valores de referência dos itens de consumo adquiridos para suprir as demandas das estruturas da Administração Pública nas esferas federal, estadual, distrital e municipal não poderiam ser superiores aos valores de referência do Poder Executivo. Esse trecho foi vetado, com a justificativa do governo de que violaria o princípio da separação dos poderes e do pacto federativo inscritos na Constituição.

Já a possibilidade de os estados e municípios criarem margem de preferência para produtos produzidos em seu território foi vetada por, segundo o governo, violar a vedação de criação de distinção entre brasileiros ou preferências entre si, conforme a Constituição. E ao trazer percentual da margem de preferência a fornecedores sediados no Estado, Distrito Federal ou Município, a nova lei limitaria a concorrência, "em especial nas contratações de infraestrutura", de acordo com os argumentos do governo.

É positiva também, de acordo com o especialista, a publicação da lista de credores, com as respectivas contas vinculadas, para que os contratantes não privilegiem contratados em detrimento de outros. O governo vetou, entretanto, o depósito obrigatório e antecipado, em conta vinculada, dos recursos financeiros necessários a custear as despesas correspondentes à etapa a ser executada, assim como a impenhorabilidade dos valores depositados nas contas vinculadas. Alegou que essa obrigação significaria o pagamento pelos contratos antes que eles fossem cumpridos e que fragmentaria a administração dos recursos públicos, além de imobilizar verbas passíveis de utilização em emergências.

Apesar do otimismo com a nova lei, Anastasia adverte que mudar hábitos há muito arraigados em um país não depende só de alterações legais:

— Nós acompanhamos com muita tristeza, ao longo dos últimos anos, escândalos e mais escândalos de desvios, de corrupção, de maus feitos no âmbito das licitações, e especialmente dentro dos contratos administrativos. Então, de fato, a Lei 8.666 não foi suficiente. A rigor, nenhuma lei consegue, por mais rigorosa que seja, impedir totalmente [as fraudes]. O que nós temos de fazer é a formação de servidores, é punir exemplarmente os desvios, para não permitir que ocorram novos.

Ainda antes da sanção, o Tribunal de Contas da União (TCU) foi solicitado a opinar sobre a nova lei, mas, por meio de sua assessoria de imprensa, informou que não se manifestaria sobre o assunto “no momento”. Entre os pontos da nova lei que tocam aos órgãos de controle externo, a Controladoria-Geral da União e a Advocacia-Geral da União opinaram pelo veto à obrigatoriedade de manifestação favorável do tribunal de contas competente para a celebração de acordo de leniência nos termos da Lei nº 12.846/2013. Essa participação feriria o princípio de separação entre os poderes, já que os tribunais de contas são órgãos auxiliares do Poder Legislativo.

O mesmo princípio, além da defesa do Pacto Federativo, impedem os tribunais de contas estaduais e municipais de se orientarem pela jurisprudência do Tribunal de Contas da União quanto à aplicação da lei de licitações, razão pela qual o governo vetou o artigo 172 da nova lei.

Ações afirmativas

Além das questões eminentemente econômicas e financeiras e dos aspectos relacionados com a garantia de lisura, a nova lei também se presta a induzir as empresas ações afirmativas. O edital poderá exigir que o contratado destine um percentual mínimo da mão de obra responsável pela execução do objeto da contratação a mulheres vítimas de violência doméstica e oriundos ou egressos do sistema prisional. O desenvolvimento pelo concorrente de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho poderá favorecê-lo na disputa, pois é um dos critérios de desempate.


Entrevista

Antonio Anastasia (PSD-MG), relator no Senado do projeto da nova Lei de Licitações

Objetivo é tornar contratações mais ágeis e transparentes

Para Anastasia, a nova lei facilita o acompanhamento pela sociedade dos contratos (foto: Pedro França/Agência Senado)

Agência Senado – Que cenário, em termos de contratações públicas, o Congresso espera obter com a nova Lei de Licitações?

Anastasia – O Congresso avançou muito nesse tema das licitações e dos contratos administrativos. A legislação atual, de 1993, foi muito retalhada ao longo dos últimos anos e sofreu alterações. Não houve consolidação, e o seu corpo principal já está de fato ultrapassado diante das necessidades tecnológicas, das novas formas de comprar, do uso da tecnologia. Então era muito importante nós aprovarmos essa lei, que estava tramitando há alguns anos. Felizmente o Congresso apresentou esse instrumento legal, que vai possibilitar aos governos federal, dos estados e dos municípios uma nova realidade em termos de contratação e de licitações. Acho que avançaremos, tornando menos burocrático, mais flexível, mais ligeiro, mais célere, mais racional e sobretudo mais econômico o processo de contratações. E, é claro, sempre com mais transparência, como foi o grande objetivo da lei recém-aprovada.

Em que medida as leis revogadas pela nova Lei de Licitações tinham envelhecido e que problemas estavam causando, por exemplo, em termos de atraso nas contratações, preço e qualidade das obras, compras e serviços?

Na realidade, a lei, quando foi concebida, em 1993, preocupou-se muito mais com a questão formal, procedimental, do que com os resultados da licitação, com o resultado a ser entregue ao cidadão. O cidadão muitas vezes não percebe, ele não sabe, mas ele é muito atingido por essa lei da licitação, porque tudo aquilo que ele recebe do poder público por meio de insumos, como, por exemplo, serviços de ônibus, energia elétrica, serviços relativos ao fornecimento e à entrega de medicamentos, tudo isso depende da licitação de contratos administrativos. Na verdade, toda a máquina estatal vive com base nessa lei. Então o próprio cidadão, usuário, já estava sendo prejudicado com uma lei defasada, retalhada, com uma prudência administrativa e judicial já muito conflituosa. Então tudo isso não ajudava. Para dar um exemplo concreto, nós sabemos que, em tese, as regras eram as mesmas tanto para construirmos uma hidrelétrica quanto para construirmos um conjunto habitacional. Então nós sabemos que a lei de fato ficou ultrapassada e ela será substituída ao longo dos próximos dois anos pela nova legislação.

A Lei 8.666 costumava ser vista como um entrave à corrupção e ao uso ineficiente das verbas públicas? Essa imagem corresponde à realidade? A nova lei foi suficientemente debatida para que se chegasse a um texto que mantenha os recursos públicos a salvo de desperdícios e malversação?

Nós percebemos ao longo dos últimos anos que a Lei 8.666 não conseguiu atender a esse objetivo. Nós acompanhamos com muita tristeza, ao longo dos últimos anos, escândalos e mais escândalos de desvios, de corrupção, de maus feitos no âmbito das licitações, e especialmente dentro dos contratos administrativos. Então de fato a Lei 8.666 não foi suficiente. A rigor, nenhuma lei consegue, por mais rigorosa que seja, impedir totalmente [esses problemas]. O que nós temos de fazer é a formação de servidores, é punir exemplarmente os desvios, para não permitir que ocorram novos. A nova lei é muito mais transparente que a 8.666. Ela adota alguns mecanismos, como o Portal Nacional de Contratações, que deixa de maneira translúcida e cristalina toda contratação de serviço, obra e fornecimento de qualquer município do Brasil, além dos estados e da União, de maneira muito objetiva. Então o acompanhamento vai ser feito com muito mais facilidade. E a adoção também de procedimentos mais abertos, que a lei permite, vai permitir um acompanhamento pela sociedade de maneira mais efetiva.

Quais são as principais novidades dessa nova lei?

São várias, em uma lei que tem 190 artigos, mas eu queria mencionar algumas. A que eu acho mais importante é adoção no Brasil, pela primeira vez, da figura do seguro-garantia, permitindo que a administração pública, nas grandes obras, contrate uma empresa de seguros, para que, na hipótese de aquela empresa construtora ter algum problema na sua vida empresarial  uma falência, uma quebra, algum problema superveniente, algum problema ambiental  a obra não fique inacabada. Nós sabemos que, em termos de obras inacabadas, o Brasil virou cemitério. Muitos recursos foram alocados, há um desperdício imenso de dinheiro em obras inacabadas. E por isso é importante nós termos esse sistema de seguro-garantia, que é um modelo norte-americano, que está sendo adotado agora no Brasil. Mas, para além disso, nós temos uma coisa muito importante que é permitir a chamada inversão das fases: a fase da habilitação, que é uma fase complexa, muito demorada, onde os documentos dos licitantes são estudados, fica tão somente para o licitante vencedor. Isso permite uma imensa economia de tempo, de recursos e de despesas para o processo licitatório. Queria citar também a criação de uma nova modalidade, o chamado diálogo competitivo. Muitas vezes o poder público tem dificuldade para comprar uma nova tecnologia, algo inovador em termos de tecnologia, de aquisição tecnológica mais recente, porque a própria administração não consegue definir qual é o perfil daquela compra. Por esse método, de diálogo competitivo, as empresas e os especialistas são chamados, e é um processo novo, que permite de maneira muito transparente que a administração pública consiga comprar o que há de mais moderno e mais adequado para a solução daquele problema. Quero citar também, como um grande avanço, a determinação de que haja uma fase prévia de planejamento. Aliás, um planejamento anual, para que todo órgão público saiba o que vai comprar, para que não compre com pressa, para que não compre de modo açodado, para que não desperdice recursos. Essa fase de planejamento é muito importante. E, por fim, quero citar a criação desse Portal Nacional de Contratações, que é uma grande inovação, que vai permitir de fato que tenhamos conhecimento pleno, em todas as contratações feitas no Brasil, quer dos pequenos municípios, dos estados e da União Federal, sobre a identificação de quem é o contratado, quais os valores colocados, qual é de fato a dimensão para aquela determinada contratação, de maneira muito transparente e imediata, praticamente on-line. Houve a decisão do legislador, também, de retirar a matéria penal da lei esparsa, que era a Lei 8.666, e consolidá-la, tornando-a mais grave, mais rígida, numa nova legislação, colocando então no Código Penal. Então a nova lei aprova um capítulo que vai ser inserido no Código Penal tratando exatamente dos crimes que podem ocorrer  e Deus queira que não ocorram, mas, se ocorrerem, estarão ali previstos — contra licitações e contratos administrativos.

A 8.666 ainda poderá ser usada por algum tempo? Em quanto tempo a nova lei será regulamentada e passará a ser usada plenamente?

Há uma fase de transição prevista de dois anos, durante a qual a Lei 8.666 continua válida. Mas as novas licitações já podem se valer da nova legislação, que entra em vigência com a sanção do presidente da República. É uma fase natural de, vamos dizer assim, transição entre as duas leis. Mas eu acho que a sua regulamentação virá rapidamente, porque é uma lei tão inovadora e tão necessária para modernizar o Brasil que há interesse do Poder Executivo nos três níveis de implementá-la o mais rápido possível.


Reportagem: Nelson Oliveira
Pauta, coordenação e edição: Nelson Oliveira
Coordenação e edição de multimídia: Bernardo Ururahy
Infografia: Diego Jimenez
Pesquisa e edição de fotosAna Volpe e Bernardo Ururahy
Foto de capa: Divulgação/Governo do Paraná