Debate expõe divergências sobre mudanças na Lei de Improbidade Administrativa

Da Agência Senado | 28/09/2021, 13h56

Um dos mais importantes instrumentos anticorrupção vigente no país, a Lei de Improbidade Administrativa (LIA - Lei 8.429, de 1992) foi tema de debate nesta terça-feira (28) na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). A audiência foi destinada a discutir o Projeto de Lei (PL) 2.505/2021, que altera dispositivos da norma.

Uma das principais mudanças previstas na proposição é a punição apenas para agentes públicos que agirem com dolo, ou seja, com intenção de lesar a administração pública. Insegurança jurídica, revogação de práticas ilícitas, absolvição criminal e prescrição retroativa foram outros pontos levantados por senadores e especialistas, para melhor embasamento da matéria. Ainda sem consenso, a proposta está prevista para ser deliberada nesta quarta-feira (29) pela manhã na comissão e, à tarde, no Plenário.

Autor do requerimento do debate, o senador Alvaro Dias (Podemos-PR) afirmou que a modernização da legislação não pode resultar em retrocessos.

— Muitas vezes somos acusados de legislar mal; por isso, essa estratégia de partilhar o debate com especialistas. Antes da instrução da matéria, ela já está anunciada para votação na tarde de amanhã [29] no Plenário — criticou o senador, que apontou preocupações com o texto, citando que ele pode “dificultar a condenação, gerar insegurança jurídica, extinguir ação administrativa, reduzir prazos de investigação do Ministério Público”.

Relator do projeto, Weverton (PDT-MA) salientou que todos os debatedores e parlamentares têm um ponto comum: a necessidade de modernização da lei. É preciso rever, segundo o senador, “essa definição de injustiças que cometeram com gestores ou ex-gestores, que se dedicaram a dar sua contribuição na vida pública, condenados por meros erros formais, que não causaram prejuízos ao erário”.

Culpa x dolo

Primeiro debatedor, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Herman Benjamin também foi enfático ao apontar dispositivos do projeto que lhe causam preocupação. Um deles é a punição apenas para agentes públicos que agirem com dolo.

O ministro salientou que, pelo atual projeto, se cria um regime jurídico mais restrito para o combate não penal da improbidade administrativa do que aquele previsto na própria legislação penal.

— Eu começo com a transformação de todos os ilícitos da Lei de Improbidade Administrativa em ilícitos dolosos. (...) Para mandar para a cadeia, é possível a forma culposa, mas pela lei (projeto), cadeia só na forma dolosa; mais ainda, com dolo específico — expôs Benjamin.

Ele exemplificou com o caso de um médico que resolva fazer experimentos em hospital público, contrariando regras: poderá ser processado por homicídio, em caso de morte dos pacientes, mas não com base na lei de improbidade.

O ministro condenou a revogação, pelo projeto, dos incisos I e II do artigo 11 da lei vigente, que definem no rol da improbidade administrativa “praticar ato visando a fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência”, e “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício”.

— Não vejo como vamos encaixar prática de tortura por policiais, prática da rachadinha [repasse, por parte de um servidor público ou prestador de serviços da administração, de parte de sua remuneração a políticos e assessores], de auditor fiscal que atua em processo fiscal que beneficia parente, entre outros, nesses dispositivos que chegaram da Câmara dos Deputados.

Para Benjamin, o corruptor pode ter um comportamento muito mais grave do que o “corrompido”.

— Ao estabelecermos mecanismos de proteção do administrador, não podemos criar uma superproteção para as empreiteiras que são as mães da corrupção no nosso país. E muitos dispositivos aqui são para proteger essas empresas.

Mudam os administradores mas as práticas continuam, segundo o ministro, que citou a previsão, no texto, da figura da improbidade continuada  — punida, segundo o projeto, com a maior sanção dada pelo juiz, aumentada de um terço.

Absolvição criminal e indisponibilidade para essas empresas se tornam praticamente impossíveis, na convicção do ministro: “A absolvição no âmbito criminal se transplanta para juízo cível e não permite o aprofundamento das investigações, sobretudo no que se refere às grandes corporações”, explicou.

— A serem mantidos como estão esses dispositivos mais críticos, teremos pessoas corruptas puníveis no crime, mas não passíveis de punição no âmbito não penal, na Lei de Improbidade Administrativa.

Transparência

Na mesma linha, o diretor da Transparência Brasil Manoel Galdino pontuou o que chamou de retrocessos. Ao citar a questão da transparência, o economista lembrou que hoje pode haver punição do agente quando não atender pedido de informação, o que será prejudicado com o atual projeto.

— Vamos passar ainda um péssimo sinal para a sociedade se, em nome da segurança jurídica, dissermos que o que vale para as ONGs, por exemplo, não vale para o sistema político. Se queremos confiança no sistema, como uma pessoa que desviou a merenda escolar, enquanto secretário, pode ser prefeito? — questionou.

O diretor também apontou que emenda acatada pelo relator (aplicando a lei em benefício dos réus com processos em andamento) “vai causar uma enxurrada de ações judiciais”.

Galdino criticou ainda a redução de prazo para inquérito do Ministério Público, que passaria a ser de 180 dias, renovável por igual período — o que, para o debatedor, vai impossibilitar a investigação de casos mais graves, como os que envolvem envio de recursos para paraíso fiscal.

Posição convergente tem o procurador de Justiça do estado de São Paulo e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, Roberto Livianu. Ele apontou a necessidade de prazo mínimo de um ano, com possibilidade de prorrogação.

— É perfeitamente possível melhorar e modernizar a lei, mas não é plausível que essa lei seja um instrumento em que a punição prevaleça. Tem que se encontrar o caminho do meio-termo — disse o procurador, ao mostrar-se contrário à exigência de dolo específico para punição.

Responsabilidade

Prefeito de Jacareí (SP), Izaias José de Santana enfatizou que a Lei de Improbidade Administrativa não é a única legislação que combate a corrupção.

Para o gestor municipal, a atual lei “suspende direitos políticos que são fundamentais, atinge de forma mortal quem tem honra e é acusado injustamente”. Santana disse ser preciso haver a individualização de responsabilidade, não prevista em legislação.

— A legislação delega aos acusadores e ao Judiciário a função discricionária, praticamente uma negação legislativa. Os destinatários têm de saber de antemão do que podem ser acusados, ou caímos na barbárie.

Ao defender a manutenção de benefício das alterações previstas a quem já responde por processos, o advogado Lucas de Castro Rivas afirmou que as disposições de direito material, quando benéficas ao réu, se aplicam imediatamente.

Rivas ponderou que crimes como tortura e rachadinha, entre outros citados, tratam de condutas já sancionadas pelo direito penal, e não há por que serem classificados novamente como de improbidade administrativa.

O advogado Marçal Justen Filho informou que a esmagadora maioria dos casos de condenação pela LIA é de agentes públicos do Poder Executivo e que não ocupam cargo de maior hierarquia.

Para Justen Filho, eliminar a punição por conduta culposa não causa corrupção. Ele enfatizou que há pluralidade dos mecanismos jurídicos de combate a essa prática.

— Existem mecanismos específicos para combater os danos acarretados por atuação culposa do agente. A eliminação do sancionamento por conduta culposa não impede a punição penal, civil e administrativa.

Posições divididas

O senador Lasier Martins (Podemos-RS) afirmou que a LIA precisa se cingir aos princípios da administração pública. Para o parlamentar, o dolo específico é o problema crucial do projeto, porque limita a improbidade, sendo preciso demonstrar a materialidade, o que abre caminho para todos os tipos de infrações.

— Negação a processo civil quando houver a condenação por processo criminal, prescrição retroativa, restringir a competência deixando tudo a cargo do Ministério Público, permitir o retorno a uma função de funcionário público afastado, são absurdos — enfatizou Lasier.

O senador Vanderlan Cardoso (PSD-GO) considera que o projeto vai corrigir distorções.

— Os homens de bem não querem mais disputar eleição para o Executivo. Essas pessoas que têm o pensamento de usufruir da coisa pública aperfeiçoaram-se bem mais do que a lei, que pune os bons administradores.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)