Em reunião conjunta, debatedores buscam equacionar desafios da regularização fundiária

Da Agência Senado | 14/09/2021, 12h31

Como equacionar direitos dos produtores e proteção ambiental sem beneficiar grileiros que invadiram irregularmente terras públicas foi o grande desafio debatido em reunião conjunta das Comissões de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) e de Meio Ambiente (CMA) sobre regularização fundiária, nesta terça-feira (14) .

As duas comissões estão promovendo uma série de audiências públicas para debater projetos de lei sobre regularização fundiária e normas gerais para o licenciamento ambiental. Esta foi a primeira reunião para embasar a análise de projetos de lei que unificam a legislação fundiária para todo o país (PL 2.633/2020 e  PL 510/2021). A reunião foi coordenada pelo presidente da CRA, Acir Gurgacz (PDT-RO), ao lado do presidente da CMA, senador Jaques Wagner (PT-BA).

Relator dos projetos, o senador Carlos Fávaro (PSD-MT) reconheceu que o tema é polêmico e difícil, sendo preciso enfrentar a modernização da legislação.

— Temos de produzir com sustentabilidade, não transgredir em questões ambientais e não flexibilizar em marco temporal, para não sermos estímulo de novas invasões, para não dar uma mensagem errada. É hora de ajustamos a legislação, ser justos e dar ferramentas modernas para que o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] possa fazer a regularização fundiária a pequenos e médios produtores brasileiros. Não podemos incentivar a venda de terras públicas a grandes latifundiários.

Jaques Wagner e Zenaide Maia (Pros-RN) são favoráveis à regularização fundiária, mas indagaram sobre o porquê de uma nova legislação, diante de um alto percentual passível de ser regularizado com a legislação vigente (de pelo menos 88%, com até quatro módulos).

— Me parece meio anacrônico uma nova lei: vamos esgotar o estoque que é regularizável na lei atual, para só depois fazer uma nova legislação — sugeriu Wagner.

Gurgacz lembrou que Rondônia foi habitada a partir de uma grande reforma agrária e não havia conscientização com o meio ambiente na época. Hoje, porém, isso mudou, e é atualmente o estado que mais vai ganhar com a regularização.

Chico Rodrigues (DEM-RR) enfatizou que Roraima tem 64 projetos de assentamentos que nunca foram atendidos com a titulação.

— Que os produtores possam sonhar que amanhã terão a regularização das suas áreas. Que haja recursos e concurso para o Incra realizar seu trabalho — defendeu.

Números do Incra apontam que o público total de regularização fundiária e agrária é de 116 mil famílias (em 25 milhões de hectares) na Amazônia Legal, 185 mil (em 1milhão de hectares) em glebas fora da Amazônia e 688 mil famílias (em 44 milhões de hectares) em assentamentos.

Originário na Câmara, o PL 2.633 permite aumentar o tamanho (de quatro para seis módulos fiscais) de terras da União passíveis de regularização sem vistoria prévia, a partir da análise de documentos e de declaração do ocupante de que cumpre a legislação ambiental. 

Já o PL 510, do senador Irajá (PSD-TO), modifica o marco temporal para a comprovação da ocupação, que deverá ser feita pelo interessado ao demonstrar “o exercício de ocupação e de exploração direta, mansa e pacífica, por si ou por seus antecessores, anteriores a 25 de maio de 2012”. Atualmente, para regularizar a terra, o ocupante tem de comprovar que está na área (com até 2.500 hectares) desde antes de 22 de julho de 2008.

Ineficiência do Estado

A promotora de Justiça do Ministério Público do Pará e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA) Eliane Cristina Pinto Moreira afirmou que o problema da regularização fundiária não na ausência de leis, e sim na ausência de aplicação das políticas públicas, com pouca efetividade. 

Para a promotora, é preciso haver a elaboração de levantamento dos casos concretos para atendimento dentro das normas já vigentes, com imposição do respeito ao meio ambiente e à floresta como condição para o acesso à terra.

Eliane sugere ainda a criação de programa específico para atender a demanda residual, o respeito aos 2.500 hectares já definidos em lei e, por fim, a identificação das áreas do país em que o sensoriamento remoto não é capaz de alcançar as formas de ocupação existentes na área, para tratamento específico das demandas.

Os PLs retomam discussões inconstitucionais, segundo a promotora, a partir da dispensa da vistoria de 4 para 6 módulos (no Brasil, os módulos variam de 5 a 110 hectares); da autodeclaração e desvirtuamento do Cadastro Ambiental Rural (CAR), do uso do dano ambiental (muitas vezes, crimes) como mecanismo de premiação fundiária e das mudanças no marco de ocupação.

— Ambos os projetos estimulam ocupação em territórios de povos indígenas e de populações tradicionais, ao não criar travas legais efetivas.

A promotora destaca que nenhuma legislação vigente impede os que desmataram de ter acesso à terra.

— Isso estimula o desmatamento, principalmente na Amazônia. O infrator termina obtendo a terra e sendo premiado.

Criminalidade

A oferta de venda na internet, por grupos criminosos, de áreas protocoladas no Terra Legal  é um indicativo da ação ilegal dos que se mobilizam para poder ganhar em cima das legislações em discussão no Congresso, segundo o pesquisador e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Raoni Rajão.

O pesquisador apontou que, dos 107 mil imóveis na base do Incra, 22 mil constam como não ocupados, o que indica um estoque para futura regularização, fato “muito preocupante”.

É importante avançar em um verdadeiro pacote antigrilagem, segundo Rajão, com  regularização fundiária em assentamentos. Ele defende ainda o avanço do PL 6.286/2019, que dispõe sobre o crime de invasão de terras públicas a partir de fraude e falsificação de títulos de propriedade; proposição de um projeto de lei de destinação de florestas públicas; aprimoramento do Incra a partir de melhorias tecnológicas e reestruturação do órgão com novos servidores; e maior integração com órgãos ambientais e fiscalização das cláusulas resolutivas.

— Várias auditorias do TCU mostram que o Incra tem falhado, não tem agido ao par de suas responsabilidades.

Legitimidade

Ao defender a regularização fundiária, o ex-deputado federal Aldo Rebelo, relator do projeto de lei que instituiu o Código Florestal, afirmou que a deficiência do Estado ceifa de propriedade centenas de milhares de agricultores brasileiros.

— As áreas mais pobres do país são terras não regularizadas, como no Pontal do Paranapanema. Porque não recebem investimentos, ninguém vai investir em uma área irregular.

Só busca a proteção do Estado aquele que tem confiança nos meios que usou para alcançar a sua propriedade, segundo Rebelo.

— O Estado brasileiro dispõe de meios para verificar o que legítimo e o que é criminoso. Não pode acontecer o pressuposto de que as propriedades têm na sua origem a suspeição do crime. O pressuposto deve ser o da inocência — afirmou o ex-deputado, para quem a regularização valoriza economicamente não somente a propriedade, mas também os municípios e a sociedade.

Plataforma

O presidente do Incra, Geraldo Melo Filho, esclareceu que o órgão é executor e que vai se adequar às alterações deliberadas, mas apontou questões propostas nos dois PLs que proporcionam inquietações:

— Nos preocupam as alterações de requisitos legais que impactem no processo de análise automatizada de requisitos. Nos preocupa a imposição ao Incra de obrigações que excedem a sua competência fundiária, como ação ambiental. E, por fim, a perda do foco ou objetivo fundiário dessa legislação — expôs.

Ao apresentar pela primeira vez a interface da Plataforma de Governança Territorial, Melo Filho explicou que essa nova ferramenta estará em operação a partir de dezembro de 2021, para atender o público das regularizações fundiárias e da reforma agrária.

A plataforma possibilitará o acesso de informações pessoais e do imóvel; solicitação on line de títulos; análise automatizada de requisitos para a titulação, inclusive com sobreposição de áreas; geração de relatório de conformidades com o resultado de análise; e apresentação ao requerente das pendências no processo, após a conclusão do requerimento. A ferramenta deve ajudar na regularização fundiária a partir da automatização do uso do sensoriamento remoto.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)