Projeto que garante atendimento digno a vítimas de crimes sexuais vai à Câmara

Da Redação | 10/12/2020, 09h23

O Senado aprovou nesta quarta-feira (9) projeto que garante atendimento especializado às vítimas de crimes sexuais durante a denúncia e no decorrer do processo penal. O PL 5.117/2020, do senador Fabiano Contarato (Rede-ES), teve parecer favorável da senadora Rose de Freitas (Podemos-ES), com emendas.

O projeto, que segue para análise da Câmara dos Deputados, faz dois acréscimos ao Código de Processo Penal (Decreto-Lei 3.689, de 1941). O primeiro reproduz o artigo 10-A da Lei Maria da Penha, estabelecendo que o atendimento policial e pericial das vítimas de crimes contra a dignidade sexual seja feito por profissionais capacitados, preferencialmente mulheres. Rose de Freitas acrescentou que a inquirição da vítima na fase do inquérito deverá ser intermediada por profissional especializado, especialmente designado pela autoridade policial.

É de suma importância que, mesmo com séculos de atraso, nosso sistema de Justiça fique livre da estrutura machista”, destaca Contarato na justificação do projeto.

A segunda mudança na legislação penal estabelece diretrizes nos casos de inquirição de vítimas e testemunhas de crimes contra a dignidade sexual, a fim de orientar o comportamento de agentes públicos. Essas diretrizes são: salvaguarda da integridade física, psíquica e emocional do depoente; garantia de que o ofendido e as testemunhas não tenham contato direto com investigados ou suspeitos e pessoas a eles relacionadas, exceto no caso de decisão devidamente fundamentada quando a medida for indispensável à elucidação dos fatos, ouvidos o ofendido e o Ministério Público; e garantia de que, em nenhuma hipótese, o ofendido será revitimizado.

Para isso, o texto estabelece regras para a inquirição, que deverá ser feita em recinto especialmente projetado para esse fim, com equipamentos próprios e adequados à situação da vítima ou da testemunha e ao tipo e à gravidade da violência sofrida. Quando for o caso, a inquirição será intermediada por profissional especializado, especialmente designado pela autoridade judiciária. Além disso, o depoimento será registrado em meio eletrônico ou magnético, e a gravação deverá integrar o inquérito.

Rose de Freitas incluiu no texto a vedação, durante a inquirição, de perguntas sobre o comportamento sexual prévio da vítima de crimes sexuais ou de testemunhas.  

A relatora destacou que a revitimização de mulheres que sofrem violência sexual infelizmente ainda é uma prática bastante comum no Brasil. Nessas situações, segundo Rose de Freitas, para eximir o agressor de responsabilidade e culpabilizar a vítima, parte-se da premissa de que a violência sexual somente ocorreu devido ao comportamento prévio da mulher, pelo modo como se vestia, falava ou se comportava.

É inconcebível que atualmente argumentos dessa natureza continuem sendo utilizados para defender agressores sexuais. É crucial que se entenda que a prática de qualquer ato sexual sem expressa anuência da vítima configura crime. É preciso que se entenda que manter relações sexuais com pessoa que não tem discernimento para a prática do ato é estupro. Enfim, é necessário compreender que não é não”, afirma a relatora.

Rose de Freitas citou dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, segundo os quais foram registrados 53.726 casos de estupro e de tentativa de estupro de mulheres em 2018, número que representa em torno de 147 casos por dia. “Para esse cenário de tamanha violência, é imprescindível um aparato processual que impeça, ao menos, a revitimização das mulheres dentro do nosso sistema de Justiça criminal”, declara ela.

Casos

Na justificativa ao projeto, Contarato destacou como emblemático da revitimização da mulher o recente caso da jovem catarinense Mariana Ferrer, vítima de estupro. Vídeo divulgado pela imprensa no início de novembro mostra trechos da audiência em que a jovem aparece chorando, humilhada pelo advogado de defesa do acusado, que expôs o "comportamento social" da blogueira ao exibir fotos dela, tiradas antes do crime, com o que chamou de “poses ginecológicas”. O advogado Cláudio Gastão também afirmou que "não gostaria de ter uma filha do nível de Mariana". Palavras proferidas diante do juiz e do promotor de Justiça, que não teriam expressado nenhuma reação de censura diante dessa conduta.

As palavras do advogado e a omissão dos agentes públicos são tão estarrecedoras que ofendem não só a vítima, mas todas as mulheres brasileiras. Não é por acaso que esse foi o fato mais comentado e noticiado da semana. Atitudes de agentes públicos como as do promotor e do juiz são entraves recorrentes para que as mulheres denunciem crimes contra a dignidade sexual, em especial o crime de estupro”, ressalta Contarato.

Culpa

O senador menciona dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2016 que mostram que 43% dos brasileiros do sexo masculino com 16 anos ou mais acreditavam que “mulheres que não se dão ao respeito são estupradas”.

É de se destacar que os crimes sexuais estão entre aqueles com as menores taxas de notificação à polícia, o que indica que os números aqui analisados são apenas a face mais visível de um enorme problema que vitima milhares de pessoas anualmente”, afirma o senador.

No caso brasileiro, a última pesquisa nacional de vitimização estimou que apenas cerca de 7,5% das vítimas de violência sexual notificam a polícia. Os motivos para a baixa notificação são os mesmos em diferentes países: medo de retaliação por parte do agressor (geralmente conhecido), medo do julgamento a que a vítima será exposta após a denúncia, descrédito nas instituições de Justiça e segurança pública, entre outros.

Direito humano

Na apresentação de seu relatório, Rose de Freitas correlacionou a importância do projeto com a celebração, nesta quinta-feira, do Dia Internacional dos Direitos Humanos, celebrado anualmente em 10 de dezembro. Ela reiterou as condições desrespeitosas a que as mulheres muitas vezes são submetidas quando buscam defender sua dignidade.

— Nos novos tempos que vivemos, não há como se omitir de posicionamentos que hoje assegurem a dignidade, que é, sobretudo um direito humano, que trata com respeito e dignidade a condição humana.

Fabiano Contarato, ao agradecer a sensibilidade da relatora, cobrou o devido valor à palavra da vítima e lembrou que a “revitimização” de Mariana Ferrer não foi um fato isolado na Justiça brasileira.

— Na década de 70, no assassinato de Ângela Diniz por Doca Street, que era o autor, o advogado questionava a vida pessoal da vítima, como se estivesse atribuindo a ela responsabilização, e intitulando ali uma tese da chamada "legítima defesa da honra", instituto que até nem existe no direito penal brasileiro — lembrou.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)